5/14/2019

A bicha de sete cabeças (Fábula), de Teófilo Braga



A bicha de sete cabeças

Era uma vez um filho de um rei que era muito amigo do filho de um sapateiro; brincavam sempre juntos, e o príncipe não tinha vergonha de acompanhar com o filho do sapateiro por toda a parte. O rei não estava contente com aquela confiança, e disse ao sapateiro para mandar o filho para muito longe, dando-lhe muito dinheiro. O rapaz foi-se embora, mas o príncipe assim que soube disto fugiu do palácio e foi por esse mundo além à procura do amigo. Encontrou-o passado algum tempo, abraçaram-se e foram ambos de jornada. Indo mais para diante, encontraram uma formosa menina amarrada a urna árvore. O príncipe assim que a viu ficou logo muito apaixonado, e perguntou-lhe quem é que a tinha deixado ali. Ela respondeu que não podia dizer nada, mas só pedia que a salvassem. O príncipe conheceu que ela era de sangue real, e pensou em casar com ela. Pô-la na garupa do seu cavalo e foram caminhando todos três. Pernoitaram naquela noite em um bosque onde estavam três cruzes; o príncipe e a donzela adormeceram, mas o filho do sapateiro deixou-se ficar acordado para o que desse e viesse. Lá por essa noite adiante viu vir três pombas e pousarem cada uma na sua cruz.

A primeira pomba disse: — O príncipe cuida que há de casar com a donzela, mas em ela passando ao pé dum laranjal há de pedir uma laranja, e em a comendo há de arrebentar:

E quem isto ouvir e não se calar
Em pedra mármore há de se tornar.

A segunda pomba disse: — Ainda não é só isso; ela há de passar por pé de uma fonte e há de querer beber água, e logo que a beba há de arrebentar:

E quem isto ouvir e não se calar
Em pedra mármore há de se tornar.

A terceira pomba disse: — Ainda não é só isso; se ela escapar de tudo, assim que chegar a casa, na noite de noivado há de vir uma bicha de sete cabeças que há de matá-la.

E quem isto ouvir e não se calar
Em pedra mármore há de se tornar.

Ouviu o filho do sapateiro isto tudo, e quando amanheceu disse ao príncipe que era melhor voltarem para o reino, porque o rei devia de estar muito amargurado, e que lhe daria o perdão e licença para casar com a donzela, que era de sangue real. O príncipe deu pelo que disse o filho do sapateiro e metraram-se a caminho. Passaram por um laranjal, e aconteceu o que a pomba tinha dito; mas o filho do sapateiro disse que aquelas laranjas não se vendiam, e foram andando. Passaram por uma fonte, a menina quis beber, como a outra pomba tinha dito, mas o filho do sapateiro disse que não havia com que tirar a água. Até que chegaram ao palácio; o rei ficou muito alegre quando viu o filho, perdoou-lhe, e sabendo que o conselho do filho do sapateiro é que o fizera voltar para casa, deu-lhe licença para viver no palácio em companhia do seu amigo. O príncipe pediu licença ao pai para casar com a menina que tinha salvado, porque ela era de sangue real; o pai disse que só dava licença ao fim de seis meses depois de a conhecer melhor e ver as suas qualidades. O certo é que o príncipe casou com ela, e perguntou ao filho do sapateiro o que é que queria de dom no dia do casamento. Ele disse que só queria uma coisa, e era dormir na noite do noivado no mesmo quarto. Lá lhe custou isto, mas o príncipe sempre consentiu. O amigo deitou-se à porta do quarto, com uma espada escondida, e quando os noivos estavam dormindo sentiu entrar pelo quarto dentro uma grande bicha de sete cabeças. Como ele já esperava isto, descarregou um golpe certeiro e matou o monstro, mas sempre uma gota de sangue espirrou e foi bater na cara da princesa que estava adormecida. O filho do sapateiro tratou de limpar o sangue que estava pelo chão, e como visse a gota de sangue na cara da princesa foi lho limpar com a ponta de uma toalha molhada. A princesa acordou com aquela friagem, e gritou sobressaltada para o marido:

— Vinga-me do teu melhor amigo, que me deu um beijo.

O príncipe levanta-se furioso para matar o amigo que ele julgava traidor; mas ele pede-lhe que demore o seu rigor, para contar a toda a corte o caso acontecido. Ajuntou-se toda a gente do palácio; o rapaz começou a relatar tudo, e ia-se tornando pouco a pouco em pedra mármore. Ficaram todos com muita pena de ser tão mal paga aquela fidelidade, e o príncipe resolveu colocar a estátua de mármore, que fora o seu maior amigo, no jardim do palácio. O príncipe costumava levar os filhos a brincarem no jardim, e sentava-se ao pé da estátua chorando com pesar, e dizia:

— Quem me dera o meu amigo outra vez vivo.

— Pois se queres o teu amigo outra vez vivo (disse-lhe uma voz) mata esses teus filhos, e unta esta pedra com sangue inocente.

O príncipe hesitou, mas cheio de confiança no poder da amizade, degolou os meninos, e a estátua mexeu-se logo e apareceu ali o amigo outra vez vivo. Abraçaram-se muito, e quando o príncipe se voltou para o lugar onde estavam os filhos achou-os muito alegres a brincarem, tendo apenas em volta do pescoço uma fitinha vermelha. Nunca mais se separaram, e dali em diante viveram todos muito felizes.

(Algarve)

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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