A lavadeira
Chamava-se
Raimunda da Outra-banda.
Outra-banda
do rio — pois lá nascera.
Conhecia-a
assim:
Um
dia eu levantei-me cedo.
Abri
a janela do meu quarto e olhei para a terra e para o céu.
O
dia estava belíssimo. O céu azul e rosa, a terra alegre. Os passarinhos
trinavam nas árvores e o vento agitava de leve as franças das palmeiras.
Respirei
ávido os perfumes da floresta que traziam as brisas da manhã.
Por
debaixo da minha janela passaram duas mulheres: pareciam mãe e filha.
A
mãe não me atraiu a atenção: era uma velha vulgar.
A
filha era mais bonita do que a manhã.
Era
de estatura meã. Tinha a fronte breve como a de Vênus pagã, cabelos pretos,
olhos também negros, gordinha, cara alegre, o nariz pequeno e um tanto achatado
na ponta.
Trazia
na cabeça um balaio cheio de roupa, o que fazia-a corada.
Tinha
atrás da orelha um pequeno ramalhete de jasmins, isso tornava-a sedutora.
Vestia
uma saia amarela com florezinhas azuis sobre a camisa branca como a pena da
garça, debruada por uma renda larga que deixava ver-lhe o soberbo colo.
Tirei
os olhos dela e olhei para o dia, a manhã era belíssima.
Olhei
para a lavadeira, ela era mais bela que a manhã.
Depois
ela voltou uma esquina e desapareceu.
As
auras trouxeram-me ainda em seu regaço um aroma dos jasmins de seus cabelos.
Quanto
tempo levei a respirar esse aroma, não sei.
Entretanto
de novo no meu quarto, vi a minha espingarda a um canto.
Maquinalmente
vesti-me, tomei os preparos de caça, pus a espingarda ao ombro e saí.
Nunca
havia acertado um tiro, essa espingarda era um luxo campestre; um pretexto para
gozar dos encantos das florestas.
Parti.
Segui
o caminho que levara a lavadeira. Havia nele ainda o perfume dos jasmins dos
seus cabelos negros.
Segui-o
distraído.
A
suçuarana — a rainha da mata virgem — podia atravessar-se-me no caminho, sem
que eu me lembrasse que trazia uma espingarda.
Leitor,
se algum dia tu fores a... e te disserem que há aí um lago, não crê. É uma
mistificação.
Houve,
é verdade, em outras eras, um lago aberto, grande, franco, belo, a acariciar
com suas pequenas ondas a fina e branca areia das suas margens.
Hoje
a aninga, as ninfeias, e outras plantas aquáticas, como o mururé e o capim,
cobrem totalmente a sua superfície.
Somente
aqui e ali se forma uma bacia de que se aproveitam os banhistas e lavadeiras
de... para lavarem a roupa e o corpo.
Mas,
apesar disso, convido-te, leitor, caso fores a... a não deixares de ir visitar
o lago ou antes, as diversas bacias que ele forma: há aí paisagens de uma
perfeição acabada.
Esse
caminho levava ao lago.
Segui-o.
Foram
primeiro infrutíferas as minhas pesquisas.
Com
a cabeça pendida, voltava — sonhando mil sonhos da mocidade — quando um
delicioso cheiro de jasmim e uma risada argentina me fizeram, como a um cão de
caça, levantar a cabeça e dilatar as narinas.
Procurei
por todos os lados. Por entre a folhagem vi como um lençol prateado e nele
alguma coisa que se movia.
Aproximei-me
e olhei.
Ela
estava ali.
As
águas do lago formavam nesse lugar uma bacia.
O
fundo era de areia alva como a pétala do bogarim.
As
bordas eram formadas pelas magníficas esmeraldas das folhas do mururé, coroadas
por suas garbosas flores.
Junto
à margem, com as águas a lamber-lhe o tronco, espalhando sua sombra nas águas
de cristal da bacia, elevava-se airosa uma palmeira miriti.
Em
uma das palmas do miriti um caraxué cantava.
Mais
longe erguia-se uma grande árvore, de cujos ramos pendiam os ninhos
arboriformes dos japins, que saltavam de galho em galho, soltando aos ares os
seus alegres cantares.
O
japim é o garoto dos pássaros; seu canto é irônico, galhofeiro e, às vezes,
insolente.
O
sabiá cantava no miriti e um canto semelhante partia do meio dos japins.
O
sabiá exasperava-se, sacudia frenético as asas e arrancava da garganta as suas
mais belas notas.
Dir-se-ia
que no bando de japins havia um sabiá, porque um canto idêntico, de notas tão
belas, respondia ao cantor pousado na rama do miriti.
E
assim continuavam esses mimosos duelos à face da natureza.
A
roupa havia sido lavada e estendia-se agora sobre a macia relva que bordava a
praia. A lavadeira estava no banho. Viam-se no chão seus vestidos.
A
saia amarela com raminhos azuis devera ter sido solta de uma só vez da cintura
e caíra, formando um círculo, aos pés de sua dona. Com ela e por baixo dela
caiu também a anágua. A camisa essa estava atirada à beira da praia, bem perto
d'água, onde, com medo de molhar-se — a ingrata — teria abandonado aquela cujo
corpo cobria.
Sobre
a saia repousava — e sentia-se que ali fora posto com todo amor — o ramo de
jasmins.
Do
regaço líquido das águas surgia um corpo trigueiro e esbelto.
O
que se via primeiro era uma cabeça emoldurada por uns cabelos negros e
lustrosos como as asas da araúna, a espalharem-se úmidos sobre o colo e ombros;
Em
seguida o pescoço roliço e belo como o da garça, entroncando-se no colo
soberbo, moreno e aveludado;
Depois
os seios esféricos, túmidos, de uma admirável pureza de linhas, terminando em
ponta aguda, desafiando desejos e pedindo beijos;
Dois
braços torneados e bem feitos acabando por umas mãozinhas microscópicas, que
cobriam os seios com esse pudico recato da mulher bonita.
Tudo
isto, todas estas belezas, envoltas no manto líquido formado pelas águas,
cobertas de pingos d'água onde o sol irradiava fingindo diamantes, fazia-me
pensar na iara da lenda indígena e a mim mesmo perguntava se não era eu o
mancebo da lenda, a quem a mãe-d'água aparecia com todos os seus encantos para
seduzir.
Foi
na taba dos Manaus.
"Um
dia um moço tapuio, filho do tuxaua, seguiu em uma igara o igarapé que banha a
ponta do Tarumã.
Era
o mais valente, o mais forte e o mais belo da tribo.
Na
ponta de sua flecha pairava certeira a morte.
O
seu tacape era o terror da onça e do mundurucu.
E
um dia, em uma igara, o moço seguia o igarapé que banha a ponta do Tarumã.
A
tarde ia linda, e o sol, mergulhando por detrás da colina, onde se erguia a
floresta, dourava as águas do rio Negro.
E
a igara, impelida pelo braço robusto do moço manau, cortava ligeira, como a
seta do seu arco, as águas do riacho.
De
noite, alta noite, o moço voltou.
Estava
triste e não dormiu.
A
mãe dele chorou por ver a tristeza de seu filho e quis conhecer o motivo de
suas mágoas.
O
moço falou assim:
Ouve,
mãe, ouve, porque só a ti posso contar a dor que me vai n'alma.
Era
uma moça linda... como nunca vi nem entre as filhas dos Manaus, nem dos
Mundurucus. Quando a igara vogava, ouvi um canto longínquo, mais doce do que o
do caraxué, mais terno que o arrulho da juriti. Era dela. Estava sentada à
margem do rio. Tinha os cabelos cor da pedra amarela e nele enlaçadas flores do
mururé e cantava como jamais ouvi cantar. Depois seus olhos, verdes como a
pedra das icamiabas, fitaram-se em mim.
Um
momento olhou-me e em seguida estendeu-me os braços, e... o seu corpo, esbelto
como o açaizeiro, mergulhou nas águas do igarapé, que resvalaram-lhe pelo dorso
branco como as penas da garça.
E
o moço calou-se.
A
velha ouviu, chorou e disse:
Não
voltes, filho, não voltes ao igarapé do Tarumã. Essa virgem é a iara, a
mãe-d'água. Seu sorriso mata como a flecha do guerreiro e sua voz é traidora
como a pepeúa que se oculta nas folhas. Filho, por Tupã, não voltes ao igarapé
do Tarumã.
A
cabeça do moço inclinou-se sobre o peito e ele ficou mudo.
E
no dia seguinte, quando o sol se punha, a igara cortava ligeira as águas do
Tarumã.
O
moço manau nela ia e não voltou mais à taba de seus pais.
Não
souberam mais dele.
Ousados
pescadores contavam à noite, junto ao fogo da oca, que, ao passarem de volta de
suas pescarias pelo igarapé do Tarumã, quando a noite vai alta, viam ao longe o
vulto de uma mulher que cantava, e junto dela o de um guerreiro moço.
E
se alguém mais atrevido se aproximava, as águas do rio abriam-se e os vultos
desapareciam nelas."
Esta
poética lenda dos filhos de Tupã estava-me na memória.
E
ao ver banhando-se a linda lavadeira de... lembrei-me da iara.
Apesar
de sozinha, a gentil lavadeira não estava sossegada.
Ora
seu corpo cortava airoso como o da irerê as águas claras da bacia sobre as
quais boiavam seus negros cabelos, quando não repousavam úmidos no dorso
lustroso.
Ora
fazia de uma folha, que a sua mãozinha travessa ia buscar aqui ou ali, uma canoazinha,
que punha-se a impelir com o sopro de sua boca mimosa até ela ir ao fundo. E
quando se dava este naufrágio, como se ele a divertisse muito, seus lábios
arroxeados abriam-se em um riso alegre e ruidoso, deixando ver duas ordens de
dentes pequenos, apontados e alvos como os jasmins que usava em seus cabelos.
E
o brinquedo continuava.
Brincava
e ria sozinha como as aves suas companheiras que cantam na solidão.
Como
era bela assim!
E
o sabiá cantava e ela escutava-o.
O
pássaro notou essa atenção e estimulado soltou uma escala nítida, estridente,
argentina, clara.
Depois
começou uma ária, melodiosa, sublime, em que a sua voz alcançava todos os tons
com uma clareza e perfeição dignas de reparo, sobre os motivos talvez de alguma
Lúcia dos bosques.
Às
vezes o canto tomava uns acentos clássicos, que recordavam Haendel ou Mozart;
outras, havia nele uma melodia terna, que lembrava Verdi.
Os
japins escolheram o seu melhor cantor para zombar da ave-rei das matas. Ele fez
fiasco. Não conseguiu arremedá-lo. O chilro do pássaro passava do lírico ao
épico, do épico ao bucólico. Ora era pastoril, terno, apaixonado. Ora era
altivo, arrogante, heroico. Havia algumas notas que pareciam uma risada. Tinham
seu quê de chacota. Offenbach misturava-se com Rossini.
Os
japins estavam mudos, corridos de vergonha.
E
a gentil lavadeira parara de folgar e escutava, com a bela cabeça erguida, o
canto do caraxué.
Eu
também escutava-o e olhava-a. De repente estremeci.
Por
detrás da linda lavadeira apareceu, primeiro uma cabeça, e depois um corpo,
redondo, negro, luzidio, asqueroso.
Era
a sucuri.
Tinha
a boca aberta e deslizava branda e cautelosa sobre as folhas verdes do mururé.
E aproximou-se.
Alongou
o pescoço, esmagou com a repugnante cabeça uma flor, escancarou as fauces e...
E
a horrível cobra ia morder no colo airoso da Raimunda da Outra-banda.
Levantei
a espingarda e, rápido, trêmulo, precipitado, atirei.
O réptil
estorceu-se, girou sobre si mesmo e caiu com a cabeça esmigalhada sobre o
mururé.
A
lavadeira deu um grito, correu para a margem, envolveu-se instintivamente nas
roupas e fitou os olhos pasmos na serpente, com as mãos amparando o seio
ofegante, como se o coração lhe quisesse saltar fora. Foi esse o primeiro tiro
que acertei. O povo da minha terra crê que ninguém erra um tiro, em cobra.
Voltei
à cidade.
Perguntei
pela lavadeira.
Disseram-me
seu nome e contaram-me quem era.
Era
casta e pura como a Mani da lenda indígena.
Passaram-se
dois anos.
Eu
voltei...
Uma
tarde estava sentado no parapeito do alpendre da linda capelinha do Bom Jesus,
edificada em uma risonha colina.
Do
sol apenas uns raios tênues vinham bater nas paredes brancas da capela.
Era
Ave-Maria.
As
lavadeiras, com seus balaios na cabeça, voltavam do lago e passavam em minha
frente no lado oposto da praça.
Lembrei-me
então da gentil lavadeira que eu vira outrora banhando-se nas águas do lago.
Meu
amigo A... estava aí.
Perguntei-lhe
pela Raimunda da Outra-banda.
Respondeu-me:
Morreu!
Eu
estremeci e, com esse acento de quem não quer crer uma verdade dolorosa, tornei-lhe:
—
Morreu!?... Como?...
—
Vive hoje com um regatão, comerciando nos lagos de Faro.
Disse
e calou-se.
Alguma
coisa oprimiu-me o coração. Era o toque plangente de Ave-Maria no sino da
capela.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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