5/15/2019

A Mirra (Fábula), de Teófilo Braga



A Mirra (Múmia)

Um rapaz muito folgazão quis dar uma grande festa no dia dos seus anos; foi por casa de todos os amigos convidá-los para virem jantar e cear com ele. Quando vinha para casa, encontrou ainda um amigo em frente do cemitério e depois de convidá-lo ficou a conversar muito satisfeito. Estando nisto deu com os olhos em uma mirra, ou esqueleto ainda revestido de carne que estava junto de uma parede, e disse-lhe mofando:

— Se quiseres vir também ao banquete dos meus anos…

— Lá irei, respondeu-lhe a mirra.

O rapaz ficou espantado, e perguntou ao amigo se tinha ouvido alguma voz. Como este lhe dissesse que nada tinha ouvido, ele também não se atreveu a revelar-lhe o caso. Dali se foi cheio de susto, e ao passar por casa do prior, fez confissão do que lhe acontecera:

— O que foste fazer homem! Não sabes que não se brinca com os mortos?

— E agora?

— Agora não tens remédio senão sujeitares-te ao que acontecer. Manda por na mesa mais um talher, ainda que não seja senão como satisfação.

A noite correu no meio de danças, até que os convidados foram para a mesa; ao soar a primeira badalada da meia noite, bateu-se à porta; o rapaz tremendo foi ver quem era e recuou, abrindo. A mirra entrou vagarosamente, e dirigiu-se para a mesa, e sentou-se no lugar que estava desocupado. Comeu, comeu, comeu, e depois levantou-se e disse para o mancebo:

— Pois bem, já que fizeste o favor de me convidares para o banquete dos teus anos, também te peço que amanhã a esta mesma hora vás cear comigo.

Ditas estas palavras partiu.

O rapaz ficou ainda mais aterrado do que de antes; não pôde dormir, até que ao outro dia foi ter com o confessor para lhe contar o sucedido.

— Não tens outro remédio senão ires; sai-te mais mal se faltares. O que te posso fazer é emprestar-te a capa com que digo missa para te defenderes.

Lá por alta noite o rapaz foi para o adro da igreja, a tremer como varas verdes; e ao dar da meia noite em ponto, o rapaz bateu à porta, e a mirra apareceu, e levou-o consigo para dentro.

— Vês estas duas covas aqui?

— Vejo.

— Pois uma é a minha e a outra seria para ti; mas o que te vale é vires vestido como Cristo. Mas sempre te digo que nunca mais brinques com os mortos.

O rapaz, sem saber como, achou-se fora da igreja, como se acordasse de um pesadelo, teve uma grande doença, e em toda a sua vida nunca mais brincou com os mortos.

(Algarve)

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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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