5/04/2019

Histórias de Futebol (Ensaio)


Histórias de Futebol

Autoria: Salomão Rovedo

INTROITO

O momento é do esporte e o esporte mais popular do país é o futebol. Desde os campos nos lugares mais remotos, nas aldeias indígenas, nos bairros e favelas miseráveis, nas praias, nas várzeas, com chuva ou sol – lá está o ‘campinho’, lá está a turma preparada para dividir dois times, botar a bola no meio de campo e dar o pontapé inicial. Daí pra frente tudo é emoção, alegria, raiva, suor, elementos que se misturam e provocam as mais diversas reações que, infelizmente, muitas vezes se transformam em violência. Mas isso é conta menor, o que mais se vê é a confraternização, o comentário, a arbitragem honesta mesmo sem juiz – na maior parte a pelada, o futebol, tudo leva à harmonia.

Não acredito que tenha tido em minha vida mais alegrias das que tive jogando ou assistindo partidas de futebol. Desde esse ‘estádio do Covão’, até o futebol nas areias das praias do Olho D’Água, depois Copacabana, os jogos nos campos oficiais do Aterro do Flamengo (Parque Eduardo Gomes), onde os campos de futebol predominam, a alegria do futebol é a mesma, traduzindo amizade e confraternização. Um bom churrasco, cerveja gelada, um pagode para encerrar a partida, trazem o ambiente de novo à paz e paz e à alegria.

A ideia de criar um grande parque na área do aterro foi da paisagista Carlota de Macedo Soares, com projeto paisagístico de Burle Marx. O parque foi destinado a atividades esportivas, tendo quadras de futebol, tênis, vôlei, basquete, pistas de skate, de aeromodelismo e modelismo naval. Os campos de futebol no trecho inicial da Praia do Flamengo foram criados por iniciativa de Rafael de Almeida Magalhães, outro apaixonado pelo futebol.

Por isso resolvi agrupar estas histórias de futebol. Que elas despertem em cada um também a vontade de contar as aventuras nos campos, de capim, gramados ou de terra, campos em que o limite é o mar, desde as areias fofas de

Copacabana às areias duras da praia do Olho D’Água. As boladas e faltas que levaram, nos gols espetaculares, as bolas perdidas, as divididas cujas dores deixam calombos nas pernas, dedos doloridos e estufados, o abraço caloroso das comemorações. Ainda de sobra muitos podem contar também as aventuras amorosas e paixões desencadeadas, cuja trajetória começou nos campos de futebol, se transformando em namoro, culminando em festa, em família, com as bênçãos do padre e dos amigos.


Rio de Janeiro, Cachambi, julho de 2014.

***

O ESTÁDIO DO COVÃO

"O destino do homem não está no futuro e sim no passado." (Havelock-Ellis)

A turma bairro batia bola em qualquer cantinho espaçoso que achasse – na frente da igreja, no terreno baldio da Rua 12, em qualquer esquina ou várzea. A cada novo dia, porém, foram chegando novos vizinhos, muitas mudanças, que causaram grande aumento da população do novíssimo bairro do Filipinho.

De modo muito rápido o grupo de peladeiros aumentou e não era pouca gente – quanto craque tinha querendo bater bola, não dava mais para dividir por dois times. Tirando o dono da bola mais nova, que tinha sua vaga garantida, sempre sobrava mais gente do que time para jogar, mesmo que o jogo fosse com tempo marcado. Foi providência a ser tomada para evitar bate-boca, disse me disse.

Com o passar do tempo deu para reparar o impressionante modo como discriminavam, não só os donos das velhas bolas carcomidas pela piçarra, pelos paralelepípedos das ruas, pelo concreto das calçadas – surradas, afinal, pelo muito serviço prestado aos peladeiros – mas também os amadores, a maioria pernas-de-pau, que eram desprezados sempre que alguém chegava com bola nova.

A hierarquia discriminatória seguia as próprias leis, invisíveis, mais ou menos assim interpretadas:

a) quanto à bola:
- a bola de couro tem preferência sobre a bola de borracha;
- a bola oficial tem supremacia sobre as bolas de tamanho não oficial;
 - a bola não remendada, seminova ou menos consertada, vale mais que as remendadas;
 - a bola redonda é preferível às bolas que o uso e o tempo tinham tornado ovais ou elipsoidais;
 - as bolas sem câmara ganham preferência sobre as com câmara ou costuradas;

b) quanto ao jogador:
- o dono da bola sempre escolhe um dos times;
- na seleção, o craque tem primazia sobre o perna-de-pau;
- o de físico mais avantajado tem supremacia sobre o mais fraco;
- o mais rico manda no mais pobre (exceto se este fosse craque);
- o culpado pela derrota era sumariamente execrado;

Descobriu-se que descendo o Covão e chegando lá embaixo, antes do juçaral e do olho d'água, dava-se no terreno uma descaída semiplana. Então, as cabeças da turma começaram a plantar ideias, discutir planos, sonhar. Primeiro armaram-se todos com enxadas, foices, facões – o que fosse útil para começar a desmatar, desentocar e planar aquele pedacinho de chão. A vontade era muita, mas o trabalho era maior.

E, afinal, a impossibilidade: o terreno não era tão plano assim como se pensava. Se conseguissem, depois de pronto, o terreninho só dava para fazer a área e brincar de linha de passe. Uma ideia puxa outra. Passasse a máquina ali – uma Patrol – com certeza se conseguiria o campinho quase tamanho oficial. Quase. Era só aproveitar que as eleições estavam se aproximando e conseguir arrancar o favor de algum candidato.

O primeiro que apareceu no palanque, fazendo discursos, lançando slogans (Dê sua ripada na onça), foi ovacionado e escolhido para Cristo. O grupo mais influente do bairro, aproveitando-se do ritual da despedida do comício, chamou o candidato a um canto e entre cachacinhas, cervejas e pratos de mocotó, arrancou-se a promessa. Aliás, promessa não: dívida.

– Se vencer a eleição, faço o campo! Inauguro a arquibancada. Vai ter futebol para todos.

Um par de semanas depois, com direito a plateia e tudo, a Patrol estava roncando, com seu potente motor Caterpillar lá no Covão, a pá gigantesca arrancando com a maior facilidade os arbustos mais resistentes, os tocos mais vigorosos, causadores de muitas unhas do dedão do pé arrancadas, muito couro da sola do pé esfolada, muito geme-geme, muito ai-ai, ui-ui, muito esparadrapo.

O ânimo era tanto que até as mulheres apareceram e não deixavam faltar nada ao maquinista, nem aos trabalhadores auxiliares. O bairro se mobilizou, ninguém deixou de dar uma pá de ajuda, até frei Alberto dedicou sermão ao tema. Êita, que era bilha de água fresquinha, almoço reforçado, tiquira para abrideira, a galinha ao molho pardo, farinha d'água de Carema, docinho de buriti na sobremesa e de quebra o cafezinho.

Com essa notável infraestrutura, não houve como o maquinista, emocionado, se recusar a aderir de corpo e alma ao projeto, dar todo capricho no trabalho, alisando o chão, deixando o campo um tapete! E assim foi. Além de ser profissional competente, fez o serviço com muito gosto. Numa semana o campinho estava pronto, bem aplainado, com direito a acostamento em toda a volta que dava até para construir a miniarquibancada. Na despedida o maquinista prometeu que viria ao churrasco de inauguração – e veio mesmo.

Fizemos a tradicional vaquinha entre os moradores, para dar presente de agradecimento na despedida com tapinhas nas costas e vigorosos abraços. E agora ao trabalho. Encomendar, comprar, colocar e pintar as traves. Fazer a marcação do campo a cal. Comprar as redes. No entrementes os clubes floresciam, entre assembleias e reuniões que varavam a noite. Era muita animação: um, dois, três, quatro equipes foram formadas, com ata de assembleia, escudo desenhado na camisa, meião, tênis – chuteira ficou proibida.

Entre um cafezinho e outro, entre lanches fartos fornecidos pelas esposas e logo estavam registradas nas atas as certidões de nascimento: todos os capítulos dos estatutos. Comprava-se jogo de camisa, bola oficial, tornozeleira, arrumava-se o quintalzinho para a sede, elegia-se a diretoria, arregimentavam-se os melhores craques locais. Os pernas-de-pau corriam desesperados atrás da vaga, nem que fosse para reserva.

Entre a tentativa de conquistar um craque e outro, ocorreu mesmo princípio de mercantilização do que começou como brincadeira, com espírito esportivo. Corria favorecimento nos bastidores: o emprego aqui, o dinheirinho ali, o namorico e até casamento! Os clubes nasceram com mania pelos erres: Real, Renner, River, Radar, mas para quebrar a monotonia tinha também o glorioso FAC – Filipinho Atlético Clube!

Depois vieram as dissidências e, como o Flamengo (que nasceu no Rio de Janeiro de uma cizânia do Fluminense), o Radar surgiu de briga interna do Real, este vindo de dissidência do River. Depois, a assembleia de clubes decidiu, de modo unânime, proibir tais movimentos, porque já ameaçavam a iniciativa esportiva, o amadorismo, a característica amistosa que permeava a criação dos times e, depois, da Liga.

E assim foi inaugurado o Estádio do Filipinho, mais popularmente conhecido por Estádio do Covão. Não com todos aqueles times: de começo eram apenas dois (logo mais dois), entre o foguetório, notícia de jornal, churrasco depois da partida, abraços, bebemorações. Como não poderia deixar de ser, esteve presente, efusivamente cumprimentado por todos, o herói daqueles dias: o maquinista da Patrol, que trouxe com toda a família, esposa, filhos, cachorro, papagaio.

Para dizer que não cumprimos a promessa, elegemos o Deputado: o Filipinho em peso deu sua "ripada na onça". Outra coisa importante: naqueles idos dos anos 1950/1960, quando ninguém ainda pensava nisso (nem mesmo nós), acabava de ser inventado o futebol soçaite.

O resto é matéria para historiador e não para contador de folclore como eu...

***

A PRIMEIRA VEZ DE ZOCA – O ARTILHEIRO

"Existem derrotas mais triunfantes que as vitórias." (Montaigne)

– Vai! Vaaiii!

Zoca se deslocou. A bola delineou uma trajetória em forma de arco elíptico, foi lançada no ponto futuro. Quantas vezes aquele lance se repetiu, com pequenas variações, na sua imaginação. Quantas vezes ele se tornou real nas partidas. Para ele era coisa íntima, bem conhecida, como café com leite, pão massa grossa, camarão seco. O passe saído da perna esquerda de Careca era tão perfeito que dava a chance de finalizar de duas formas:

se o beque estivesse distante, sobrava espaço para matar a pelota no peito, preparando-a para o arremate com o peito do pé ou de trivela.

se estivesse sendo pressionado pela marcação, apoiando-se na perna esquerda, encostaria no marcador e, usando o ombro como alavanca, dispararia antes da bola cair no chão.

Qualquer dos tipos de chute que fosse escolhido, já era meio gol andado. Zoca escolheu a segunda opção e se preparou para correr até a área de arremate, como ele havia calculado, a seis ou sete metros à frente do goleiro. Ultrapassou o primeiro marcador, sem pressa, para não cometer erros. Agora sim, viu que o espaço entre ele e a bola estava livre de percalços, tudo caminhava bem para executar o seu plano.

– É minha! Deixa que é minha!

Zoca tomou para si a responsabilidade, antes que outro jogador tentasse o chute. A plateia estava atenta. O torcedor sabe que, apesar de todos os defeitos, de ser varapau, o artilheiro sempre pegou aqueles lançamentos na veia. Ai do goleiro! Um deles foi arremessado ao fundo das redes com bola e tudo, devido à potência do chute. Envergonhado, nunca mais frequentou as três traves. Mas a história tem o seu dia de traição e muda sem prévio aviso...

Depois desse dia e até hoje Zoca sonha o pesadelo com o lance: a bola vinha, redonda, redondinha, pedindo para dormir no fundo da rede. Mas eis que as pernas de Zoca, num vexame supremo, não obedecem ao seu comando e injustificadamente bambearam logo nas primeiras passadas. Zoca suou frio. O campo se transformou num deserto de areia sob seus pés. A roupa pesava como armadura de cavaleiro andante.

Lá vai a bola caindo, caindo, quicando no chão uma, duas vezes e nada de Zoca chegar nela. O artilheiro trocava as pernas como bêbado largado na noite, os músculos perderam a elasticidade, o joelho doeu, uma fisgada correu-lhe as pernas. A plateia gemeu de dó ao ver o craque perder o passo e tentar, num derradeiro e hercúleo esforço, aproveitar o terceiro quique para finalmente arrematar – ainda dava tempo de fazer o golaço.

Mas as canelas estavam mais moles que perna de mamulengo e foi ele que, recebendo o tranco do beque – que tinha surgido ninguém sabe de onde – foi ele que se viu arremessado para longe da bola, levado pela cambalhota pela lateral afora. A pelota, bem protegida pelo zagueirão, e pelo goleiro, saiu pela linha de fundo, em tiro de meta.

– Disgrama! Puta que pariu!

O banco de reserva reclamou, o técnico xingou, os colegas de campo chamaram ele de uma porção de nomes feios, o beque riu debochado, o goleiro chamou ele de perna-de-pau. A torcida murmurou um ganido de incompreensão, que logo se transformou em vaia. Ante tanto dissabor junto, o ás lembrou-se de fingir que tinha sentido a fisgada, levou a mão no posterior da coxa esquerda (ou direita, nem lembrava), se arrastando na lateral.

Caído fora do campo o ponta chorou, não de dor, mas de vergonha, vergonha de ter perdido o gol feito, vergonha de ter fingido o estiramento, vergonha por saber que nem seus colegas do time, nem a torcida, iriam acreditar na farsa. Mesmo se verdade fosse, estavam acostumados a vê-lo despender todas as forças em busca do gol. Deitado de costas, Zoca sentiu o áspero chão ferir-lhe, o sol bater de cheio no rosto. Suor e lágrimas misturados empapavam a camisa empoeirada.

– Mascarado! Levanta, Zoca!

O craque clamou pelo massagista pedindo o linimento pel'amor de Deus. Tudo nele doía. A partida acabou para ele, não dava mais. O técnico já tinha providenciado a substituição. Não havia mais tempo nem ambiente para ele tentar se recuperar. Com o corpo esbagaçado daquele jeito, iria perder tantos gols quantas bolas lhes passassem, mesmo que ficasse cara a cara com o goleiro. Não dava mais.

Zoca gemeu como o bebê abandonado, mas continuou só e desprezado na lateral do campo, ninguém o socorreu. Alguns torcedores mais atrevidos, fanáticos pelo clube, bancavam valentia, se chegando para perto só para dar esporro. O jogo iria recomeçar e em breve tudo estaria esquecido. Mesmo assim, Zoca quase foi agredido...

– Ai-ai, ui-ui! A dor era lancinante.

Finalmente, depois de fazer o aquecimento, dar as instruções e fazer a substituição, só depois de deixar o mascarado de o Zoca sofrer um bocado, o técnico autorizou o massagista a atendê-lo. O negão jogou éter e linimento por sobre a coxa esquerda, massageou, massageou e aquelas mãos enormes, que mais pareciam manoplas, castigaram tanto a coxa machucada que acabaram por trazer mais sofrimento que alívio. Tinha sido justiçado, ali no chão, por perder o gol.

– Chega, para, chega!

Aquilo só tinha uma explicação: Açucena. Lembrou-se de Açucena e sentiu saudade. Será que era a saudade que deixava ele tão desligado, sem reflexos para se deslocar, para exibir o maravilhoso controle de bola que sempre foi o seu forte? Ou será que era o amor, que o deixava sem coordenação, a ponto de sentir acorrentadas as pernas ao chão, como foram presas as mãos de Cristo na cruz?

– Um garoto de 13 anos, promessa do futebol, ficar com as pernas assim em frangalhos!

Zoca entrou em pânico. Cabeça entre as pernas, Zoca se afastou dos colegas silenciosos, com olhar de maldade e chamou o técnico resmungão de lado. Ali ele pediu desculpas, humilhado diante de todos, confessou tudo.

– Não entendo! Não, não dá para entender...

– Desculpe Seu Mano. Desculpe. Nem sei o que aconteceu. De repente fiquei fraco. Fiquei cego, não vi nada. E baixinho no ouvido: a culpada só pode ser Açucena.

– Culpada o cacete! Açucena? Como pode ser culpada, aquela coitadinha?

E então Zoca contou, contou tudinho. Contou como de uns meses para cá o velho seu pai achou de proteger, a pedidos, a filha do Seu Mário, amigão do interior – e deu acolhida a Açucena. Ela mesma, aquela de peitinhos empinados que todo dia de manhã vai à padaria e deixa Seu Manoel e todos os fregueses arrepiados. Como eram muito amigos, compadres até, o velho e Mário, seu pai cuidou dela como a filha que não teve. Um quarto só para ela, carinhos, pouco trabalho, escola, bonitos vestidos.

– Desde aquele dia quede sossego Seu Mano? A menina tá nova, quer namorar toda hora. Quando ela passa na rua, todo mundo fica entesado por aqueles cabelos negros levemente ondulados, brilhantes, massageados com óleo de amêndoa doce. E todos sabem que ela é mocinha – ainda não completou 16 anos – ainda tem muito para crescer e incomodar a Deus e o mundo.

Se for assim perturbador com todos os mortais que passam por ela nas ruas, imagina com ele, Zoca, que passou a viver ali, dentro de casa, todo o dia juntinho com aquele amor de pecado. De começo eu ficava de longe espiando ela arrumar os cabelos. Um dia ela me pediu para pentear a parte de trás, me inebriando com o cheiro do óleo. Sabe que até para comer manga-rosa a menina deixa a gente tonta? O amarelo da manga na boca rosada, os dentes alvos afastando a casca para morder a carne.

– Então, um dia ela viu que eu estava espiando ela tomar banho. Anjo infernal, mais lânguida que a onda errante, boca de estrela, flor amorosa, mais que divina, inocente almejo, poço de desejos, flor de formosura, não reclamou, fingiu que não viu, até deixou.

– Meu Deus! Seu Mano se arrepiou. Como foi?

– Não teve jeito, fui me aconchegando, chegando de mansinho, até descobrir que era gostado e estava gostando. E foi tomando banho juntos que descobri que ela não era mais mocinha, quer dizer, era, mas não era muito. Aliás, diga-se a verdade, foi ela quem confidenciou. Alguém fez mal a ela lá no interior, no centro. Sabe que é neta de índia? Não tem um pelo no corpo!

– Por isso que papai me mandou para cá... – Ela me falou confidente como foi a brutalidade, a dor, a lágrima, o sangue.

Então o artilheiro não teve mais desconfiança que estava apaixonado. E paixão daquelas grudentas, que agarra dia e noite com a gente e não larga nunca, jamais. Tinha, portanto, que aproveitar aquelas duas horas em que ficavam a sós em casa, ele e Açucena: os manos iam para escola, o velho ia para a praça jogar dama até seis horas da tarde. Zoca e Açucena não se perdiam um do outro todo o tempo.

E como não tinha outro lugar adequado, nem naqueles tempos tinha hotel nem motel, Zoca e Açucena se encontravam no banheiro, pés descalços no piso úmido e frio, nas duas únicas horas que ficavam sós em casa. Tomavam banho a dois no chuveiro, esfregavam sabonete no corpo, passavam xampu nos cabelos. A água escorria pelo corpo de Açucena como cachoeira sem pedras.

– Larguei até de ir à pracinha bater prosa com a turma. Essas paixões de começo não escolhe dia. Ou melhor, tem: é todo dia.

E durante todos esses meses Zoca e Açucena se amaram diariamente, duas ou mais horas em pé! Em pé! Trancados no banheiro, o artilheiro enfrentava o calor como quem frequenta a sauna. Metia a cabeça entre os peitos de Açucena (era o lugar mais alto que o artilheiro conseguia alcançar) e ficava ali lambendo o perfume que descia pelo pescoço dela. Só largava quando ficava com o corpo febril tremendo, despejando suor por todos os poros, frio como laje de cemitério. Mas se sentia feliz, felicidade mesma que jogar futebol.

Foi aí que Zoca começou a sentir as canelas bambas, o corpo fraquejando, as coxas desobedientes, o joelho como dobradiça enferrujada, manquejando como o passarinho de asa ferida. Já no treino sentiu dobrarem os joelhos, as pernas arriando igual pneu murcho, até achar repouso recostado, desfalecido, como no azulejo frio do banheiro. Em pouco tempo Zoca não era mais o mesmo, deixou de ser craque, nem menino era mais – era homem.

– Em pé? Duas horas? Mentiroso, filho da puta!

– Verdade, Seu Mano, juro pelo que me é mais sagrado!

E quando o fogo do amor se apagava Zoca e Açucena ficavam se rindo um para o outro que nem dois bobos. Mas ele tinha de ir ao treino. Açucena ia até à porta se despedir dele. Era aquela moleza, vontade de nem não sair de casa. Olhando aquela morena lá na porta, sorrindo, batendo o adeusinho, sacudindo todo o corpinho moreno, quem disse que dava vontade de treinar lá coisa nenhuma? Adeus campeonato!

Mesmo assim Zoca ia ao campo com o corpo todo tremendo de saudade. As pernas bambeavam como pernas de mamulengo e não tinha massagista que desse jeito. No treino ainda dava para mascarar, mas no jogo, bem, no jogo foi aquele papelão que se viu. Uma bola daquelas que cem vezes colocou entre as traves, passes que costumava matar no peito e chutar antes que a bola tocasse o campo – não viu que era coisa incomum, um destrambelho?

– E por causa de um Casanova de merda, tomamos um chocolate, uma pitomba daquele time de qualiras!

Zoca aturou a esculhambação cabisbaixo. Assumiu a culpa, mas se rindo de amor por dentro. Valeu a pena. Estava feliz. Valeria à pena perder dez partidas iguais aquela. Porque uma coisa ele não contou, guardou para si o segredo para toda a eternidade: foi a primeira vez dele. Depois que contou tudo a Seu Mano, sentiu a alma mais leve. Agora todos iriam saber o porquê daquela falha, resposta pra os muitos erros de passe, até laterais mal batidas.

Sim, foi com Açucena a primeira vez, a primeira de milhares de vezes seguintes que viriam – com as graças de Deus! Foi como soube por que Adão cagou e andou ao ser expulso do Paraíso. Foi quando descobriu que a vida não é o mar de rosas, mas que vale a pena viver. Foi como tomou conhecimento de que o amor é lindo e que é a virilha – e não o cérebro – o centro da nossa vida. E nesse idílio consigo mesmo, distraído, acabou pensando alto, quase gritando:

– Vale a pena! Vale mil vezes a pena!

Com essas palavras, saltou e socou o ar como se tivesse feito o gol. O gol que o sol não assistiu, em sua cabeça virou sonho, não mais um pesadelo. Mal acabou de pronunciar o pensamento em voz alta, tomou do técnico um cascudo na cabeça. Gesto que lhe pareceu mais um carinho do que agressão. E assim foi que o ex-artilheiro Zoca foi solenemente expulso do time. Mas pelo menos deu para sair na fotografia oficial da primeira formação do Real Futebol Clube.

Não dá para notar na foto se as pernas estão bambas ou não. Só que, naquela aparição inaugural com a equipagem de listas finas verticais, de cor amarelo-ouro e preta – igualzinha à lata de óleo Salada, que estava em toda propaganda nas ruas – o time ganhou da galera a alcunha de Óleo Salada FC e dessa pecha jamais se livrou, mesmo depois de inaugurar o novo e completo jogo de camisas.

Óleo Salada FC como consolo, para sempre.

– Quem iria querer jogar num time chamado Óleo Salada?...

***

DIABO LOURO

"Se você não diz a verdade sobre si mesmo, não pode dizê-la sobre os outros." (Virgínia Woolf)

Antes de encerrar sua gloriosa carreira no futebol filipinense, acelerada por grave derrame de menisco, Zoca ainda teve uma alegria. Quer dizer, teve muitas alegrias. Foi convidado para treinar no Moto Clube e de fato participou uma semana de treinamento entre os reservas.

Mas, quando sentiu que iria levar muita porrada de veterano, ele largou os treinos. Ademais, fora disso, ganhou muitos títulos e vários torneios, muito torneio início. Nas partidas que disputou jogando no gol (os técnicos aproveitavam sua alta estatura para mantê-lo como goleiro reserva ou regra três), engoliu memoráveis frangos.

Por outro lado, quando estava inspirado no goleiro do América FC do Rio de Janeiro, Pompéia – cognominado a Águia Voadora – salvava o time de algumas derrotas, defendendo até pênaltis decisivamente importantes.

Depois, muito tempo depois, foi ser vizinho do famoso arqueiro no baixo Cachambi e chorou ao conhecer a casa em ruínas em que Pompéia morava. Engoliu o medo de saber que a Águia Voadora vigiava o passado glorioso com porres contínuos de cachaça e assim viu como ia ele acabar seus dias, tremendo e atacado de alguma cirrose irreparável.

Em meio aos recortes de jornais, às fotografias de vários ângulos, pose de campeão com faixa e tudo, Pompeia mantinha o cigarro entre os dedos da mão trêmula. Cadê os clubes para apoiar o craque? Cadê o glorioso América Futebol Clube? Cadê o Sindicato dos Jogadores? Nada, Pompeia morreu só, pobre, bêbado.

Um dia o time se viu sem goleiro e lá foi Zoca ser titular debaixo dos três paus. A equipe toda atuou bem e havia se preparado ao campeonato com esmero. A essa altura o futebol do Filipinho estava bem cotado e foi fundada até a Liga esportiva para representá-lo junto à Federação de Futebol.

Clubes de outros bairros, vendo o sucesso que alcançaram, pediram – e foram aceitos – para participar do campeonato. Agora tinha o Flamenguinho, Rabreu, Rianil. Começou o campeonato e o Real FC ganhou o titulo do Torneio Início com o pênalti defendido por ele. Mas uma coisa ficou clara para toda a direção: não dava para disputar todo o campeonato com um só goleiro, ainda mais improvisado.

Foi assim que chegou ao Filipinho para jogar no Real FC o famoso goleiro de futebol de salão, campeão estadual da temporada, o afamado “Diabo Louro”. Ganhou a alcunha porque portava a vasta cabeleira, loura, naturalmente, tinha os olhos azuis – era arisco, rápido nos movimentos, tinha boa colocação e defendia mais que o próprio Capeta.

Goleiro de estilo, logo nos primeiros treinos demonstrou porque era ambicionado até por times do Sul. Era alto e elegante como a garça e voava defendendo as bolas mais impossíveis. Com ele ninguém comemorava gol por antecipação, pelo alto era impenetrável. No chão era bom também: era impressionante como caía com rapidez, mesmo se a bola era chutada com violência, rasteira a seus pés.

Zoca ficava ali, quieto, atrás do gol vendo o “Diabo Louro” voar, querendo ser igual a ele. Outras equipes protestaram: o Real FC estava profissionalizando o campeonato, coisa que ninguém queria. É verdade que, aqui e ali, sempre corria o dinheirinho, o favor, a chantagem, para aliciar os jogadores mais famosos. Mas era diferente de profissionalizar.

Veio o primeiro turno, o Real FC venceu e se classificou para a grande final. Mas aí o Diabo Louro, aguerrido como era, foi entrar numa dividida, caiu mal, por cima da clavícula e lá se foi o braço para tipoia.

Não podendo haver mais inscrição de jogadores, o jeito foi manter o goleiro reserva, Zoca, como titular durante todo o segundo e decisivo turno. Os outros times reagiram, aproveitaram as deficiências e fraquezas do goleiro e o Real FC perdeu feio. Jogando debaixo de muita pressão, veio a finalíssima e o Real FC perdeu também.

O “Diabo Louro” foi defender outros clubes mais famosos e Zoca, o arqueiro, encerrou prematuramente sua carreira de goleiro. Agora, nem para quebrar galho...

***

EPÍLOGO AO SOM DE RÉQUIEM

“A vida só se compreende mediante um retorno ao passado, mas só se vive para diante.”  (Soren Kierkegaard)

Quase trinta anos depois de ter saído do Filipinho, um Zoca emocionado pisou o chão do aeroporto do Tirirical. Aliás, Zoca, não, Dr. José Carlos, advogado, bacharel em Direito Internacional, que estava justo encerrando a carreira para se dedicar ao ócio. Em seu projeto não existia qualquer possibilidade de voltar a morar no bairro em que os acontecimentos de sua adolescência ocorreram, mas garimpava lugar para pendurar uma rede e descansar os ossos.

Antes mesmo de partir para o Rio de Janeiro, ele viu a Liga do Filipinho ser empastelada por ordem judicial, em que a apelante era a Federação Estadual de Futebol. A alegação era de só poderia haver uma autoridade desportiva constituída, confederada à entidade nacional – exatamente a FEF. Pela razão, não houve resistência, senão a mínima cabível, provocada pela indignação. A quem iria interessar saber que se tratava apenas de um grupo de adolescentes querendo organizar o que um dia começou como bate bola de várzea, uma pelada?

Os times se dispersaram, as pessoas cresceram, tomaram rumo – como ele – cada qual cuidando dos afazeres da vida, que vêm atrelados ao calendário do tempo. Zoca escolheu estudar e residir no Rio de Janeiro, as notícias mínimas que recebia foram escasseando, umas por falta de resposta, outras porque o remetente se viu impedido ou porque desapareceu na curva da sobrevivência. E agora Zoca retornava como o ex-advogado José Carlos, pretendendo transitar a aposentadoria e a velhice na pacatez modorrenta que ainda minava de suas memórias.

Não foi assim tão exato. Mal desceu as malas no hotel, pegou um táxi e se dirigiu ao bairro que foi palco de suas molecagens e alegrias de garoto. Pôs-se de pés no chão com intuito de caminhar anônimo, relembrar de algum modo as coisas, os prédios, as casas – talvez ver um rosto de expressão familiar. A igreja, embora reformada e com ares modernos, ainda estava lá, mas de portas fechadas. O que tinha sido um átrio desapareceu, a pracinha foi ocupada por lojas comerciais, bares, restaurantes – os bancos da praça eram mesas e cadeiras de plástico.

Quando chegou ansiado ao antigo Estádio do Covão, se assustou com o que viu: centenas, milhares de casebres, entulhados um sobre o outro, enfavelados junto com barracos mais pobres ainda. Só que, ao contrário dos morros do Rio de Janeiro, esta se afundava no solo, descendo até onde o grotão sumia da vista, em intermináveis becos. Em todas as ruelas se via o mesmo fio de água e esgoto, que corria entre os casebres, ao lado de moradores e crianças que brincavam. Perturbado por ver derrubada a maior das expectativas, Zoca procurou um bar onde pudesse sentar e puxar conversa.

Só uma coisa começou a parecer-lhe familiar, embora tivesse esquecido: o calor. Zoca suava por todo lado. No bar de cadeiras na calçada, pediu água mineral e escancarou os ouvidos, esperando respostas. Não encontrou nenhum rosto familiar, nenhum tipo conhecido. Esperança. Esperança – era assim o nome do que seria aquele bairro novo – informou o garçom. Foi essa a única informação que ele teve. Tudo ali era novo, as casas, as ruas, os prédios comerciais. Os homens, os rapazes, as moças de caras alegres, os passantes que agora eram muitos – estava em outro bairro, outra cidade.

De volta ao hotel, Zoca arrumou programa para os dias seguintes. Largou-se no centro, foi à Igreja Matriz, fazer o que mais gostava: admirar a decoração barroca, gozar o prazer do silêncio. Ao sair pôde repetir alguns gestos da adolescência: benzeu-se com água benta, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz – tudo isso sem algum resquício de fé. Depois, anda teve tempo de passar por antigas fontes e praças e ir ao Mercado Central, onde a sujeira e imundície impediram-no de entrar.

Cansado e suado, sujo de poeira e fuligem, arfando da caminhada, Zoca retornou ao hotel, descansou por sete dias e sete noites antes de voar ao Rio de Janeiro, para nunca mais voltar.

***

O MARACANÃ DE PASTILHAS AZUIS

“Num passe de mágica, conseguiram ludibriar estrangeiros durante a Copa do  Mundo, escondendo o Brasilquistão (violento, desigual, pobre, sujo, sangrento, corrupto). Mostraram o Brasildinávia (que está virado para a Escandinávia)”.
Luiz Flávio  Gomes

A primeira vez que ouvi falar sobre o Estádio do Maracanã foi em 1950. Mas não foi por causa da derrota contra o Uruguai e sim porque meu tio rico tinha ajudado a campanha de arrecadar fundos para a sua construção, com a aquisição de quatro cadeiras perpétuas. Eu estava com oito anos de idade e sabia pouco sobre futebol, mas quando o tio voltou do Rio de Janeiro desolado com a derrota entendi a frustração dele, não pela derrota em si, mas pelo retorno negativo ao investimento.

Mal ele sabia que anos depois eu iria aproveitar aquelas cadeiras cativas, emprestadas por meu primo para assistir jogos no Maracanã. Porém, a facilidade era aparente e logo dispensei, depois de descobrir que nas cadeiras não tem o principal: o calor da torcida. Ademais, cada pulo que dava era uma joelhada no ferro, com consequentes hematomas. E o bar era longe... Assim não dá, né?

A Copa do Mundo de 1954 já me pegou com algum entendimento. A seleção brasileira era boa, mas perdeu nas quartas de finais para a Hungria de Lantos, Kocsis, o goleiro Grosics e companhia. A máquina húngara de jogar futebol estava há 29 partidas sem perder, ganhou Medalha de Ouro nas Olimpíadas de 1952. Ao fim da partida, húngaros e brasileiros saíram no pau. Na final da Copa de 1954, com toda a nossa torcida, a Hungria ganhava da Alemanha por 2x0, mas - vergonha - foi garfada e perdeu de 3x2. Um brasileiro foi manchete nas semifinais: Paulo Amaral, cuja foto de chuteira em punho para agredir o juiz circulou por todos os jornais esportivos.

A Copa de 1958 foi sensacional. Eu já ia aos estádios ver jogo, acompanhei toda a trajetória daquela equipe sensacional, desde as eliminatórias sul-americanas. Brasil, argentina, Paraguai e México eram os representantes da América Latina. O Brasil passou pós vencer o peru por 1x0 no Maracanã, após empate de 1x1 em Lima. A terceira seleção do grupo era a Venezuela, que desistiu. Botava-se o rádio na calçada, em volta bem umas 50 pessoas, cada vitória era uma festa. Na final com a Suécia, mal acabou a partida e fizemos uma charanga percorrer o bairro pra comemorar o primeiro campeonato mundial vencido pelo Brasil.

A Copa do Mundo de 1962 - conhecida como a Copa de Garrincha - no Chile, foi contaminada pela corrupção, vaidades, rasteiras e outros trinques. João Havelange era o Presidente da CBD, a equipe contava 22 jogadores e 22 cartolas. Tudo paulista e carioca. Mauro e Bellini brigaram à vera pela vaga de zagueiro. O homem da mala preta atuava nos bastidores. Pelé se contundiu, Mané passou a ser o craque do time (ele sempre foi melhor que Pelé, mas era cachaceiro... e pobre).

Sangue quente, Mané foi expulso por encher de porrada um jogador chileno: não iria à final contra a Tchecoslováquia. É hora de chamar o “home” da mala preta! Assim, graças à esperteza de Paulo Machado de Carvalho, Garrincha não foi julgado e pôde jogar a final: o Brasil foi bicampeão. A “esperteza” foi dar uma grana para que o bandeirinha que dedurou a agressão sumisse, sem depor. No ano seguinte o bandeirinha, agora juiz, reapareceu apitando jogos em São Paulo, contratado pela FPF com alto salário.

A primeira vez que vi o Maracanã estava no ônibus 254, Praça XV-Quintino, rumo a Piedade, para visitar Waldir. Foi nessa época que comecei a usar o Guia Rex. Com esse guia de ruas eu aprendi a conhecer o Rio de Janeiro, nos mais longínquos recônditos. O Guia Rex tinha nomes de ruas, bairros, mapas e a linha de ônibus ou bonde para chegar aos locais desejados. No trajeto o ônibus 254 rodeava o estádio quase todo; de repente vejo o monumento azul, de pastilhas cintilando ao sol. Aquele instante mágico me fez fã eterno do Maracanã.

Desde os antigos “Torneio Início” – prévia do campeonato carioca – aos grandes jogos entre times e seleções do Rio-São Paulo; o maior Fla-Flu da história (1963), 200 mil torcedores; a partida Brasil-URSS (1965), que Bob Kennedy viu nosso goleiro Manga bater o tiro de meta na cabeça do adversário e a bola entrar no seu próprio gol! O jogo da Rainha Elizabeth II, Cariocas x Paulistas (1968), os paulistas venceram com pênalti duvidoso dado por Armando Marques; o jogo da estreia de Garrincha no Flamengo (1968), o canto de cisne do Mané, os portões foram derrubados por torcedores fanáticos sem ingressos.

Nos jogos costumava ficar no último degrau da arquibancada neutra. Bem ao lado tinha o bar, cerveja gelada, o banheiro e bate-papo agradável. Do lado oposto via-se a Tribuna de Honra, as cadeiras especiais e mais abaixo as cabines de rádio. Tudo isso dividia as torcidas rivais. Mas na saída os dois grupos se encontravam no início da grande rampa. Os grupos vinham de lados opostos e ali se fundiam num só. Dependendo do resultado do jogo e dos ânimos, começava um empurra-empurra, corre-corre, às vezes a porrada comia. A técnica de salvamento era buscar proteção atrás de uma coluna e se defender com os braços, sem agredir, apenas afastando a horda sem rumo. Jamais fazer como um torcedor que, apavorado, saltou para o jardim, esquecendo-se que a altura era de um prédio.

Depois do furdunço era só sair no rumo da Rua São Francisco Xavier para pegar o ônibus de volta. Se o público fosse daqueles difíceis de escoar, caminhava até a Praça Sáenz Peña, onde era certo ter chope gelado, belas tijucanas e bons bares.

Agora, em 2014, o estádio Mario Filho (Maracanã) é outro. Foi arrumado a peso de ouro para realizar a Copa do Mundo que o Brasil comprou da FIFA – todo mundo sabe que é um jogo de cartas marcadas. O futebol agora é um negócio que tem o aval dos governos, dos políticos. Em algum tempo o Congresso quis se intrometer com a máfia do futebol, mas foram apenas arremedos que incrementaram o legislativo com mais uma lei: o Estatuto do Torcedor. Onde tem lei tem corrupção. Então tá.

Os governos estadual e municipal se aproveitaram da ocasião da maneira mais idiota possível: batendo de frente com a população. Derrubar o Museu do Índio (o local nos primórdios chamava-se “Aldeia Maracanã”), pôr abaixo o Estádio de Atletismo Célio de Barros (jornalista, diretor de esportes do Jornal do Brasil e cartola da antiga Confederação Brasileira de Desportos), pasmem com as notícias: “A Escola Municipal Friedenreich (homenagem a Arthur Friedenreich (1892-1969), um dos maiores craques do futebol brasileiro), referência na rede de ensino, está para ser demolida por conta da obra do Maracanã”.

E mais: “Cerca de 200 alunos do Parque Aquático Julio Delamare protestaram contra o fechamento do parque aquático. A maioria dos manifestantes é de idosos e deficientes físicos que denunciam o fechamento do parque onde faziam tratamento e ginástica hidroterápica. Júlio Delamare, jornalista e locutor esportivo da Rede Globo, primeiro diretor do departamento de Esportes da emissora, morreu no acidente do voo Varig 820 na França, em 1973. Em merecida homenagem o Parque Aquático recebeu o nome de Júlio Delamare”.

Contra a demolição muitos protestos e atos públicos foram promovidos. O governo gastou milhares em dinheiro para mobilizar a força pública contra os manifestantes, coisa de idiotas, enfim, como disse acima. Tudo em nome da corrupção que assola o país, que abrange desde as presidências dos Três Poderes ao flanelinha da esquina. A dinheirama, porém, não conseguiu se impor, isso porque as ‘autoridades’ começaram a perceber que o custo para demolir aquilo tudo iria consumir considerável volume da quantia já direcionada aos próprios bolsos.

O recuo diante das demandas populares é o sinal de que a mobilização pela manutenção do complexo esportivo e educativo que envolve o Maracanã funcionou e deve ser mantida. Entidades de caráter popular, voltadas com foco exclusivo em defesa do espaço se organizaram e estão atentas. A maioria das reivindicações – como se viu – foi atendida, antes tarde do que nunca os governantes perceberam a estupidez que era se contrapuser às causas populares.

“A rua é nosso lugar e de lá não sairemos até a vitória completa. Governo do estado, Odebrecht, IMX e AEG devem ter consciência disso. Pela anulação imediata da privatização do Maracanã! Por um Maraca Público e Popular! O MARACA É NOSSO!!” – diz uma publicação do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro.

Como diria um poeta: – Resistir, quem há-de?

Rio de Janeiro 2014.

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