
O hipogrifo

Além desta fauna
amabilíssima, regalo de vates bucólicos ou românticos, outra havia,
terrificante, composta de dragões flamívomos, hidras de sete cabeças, medusas
vipericapiladas, polifemos de um olho só, e que tais.
No Penedo da Lamúria
morava uma orca horrenda. Para que não assolasse as paragens circunvizinhas, os
solícitos piratas da ilha d’Ebuda todos os dias lhe serviam, à guisa de tributo
propiciatório, uma linda virgem nua. E viveria a orca a vida inteira sempre a
almoçar esses régios pedaços, se não se engasgasse certa vez com a formosíssima
Angélica, amada de Rolando.
Ariosto fez-se o fiel
cronista dessa era de maravilhas, no poema em que estudou a alienação mental do
conde Rolando, par de França e dono de uma espada cuja têmpera se perdeu, para
alívio do crânio dos mouros.
Narra-nos Ariosto
maravilhas sobre maravilhas — e era cidadão de muito conceito em Reggio para
que lhe duvidemos das afirmativas. A agapesada gente de hoje não entende
assim. Metida a cética, ignora ou ri-se de Ariosto como os incréus sorriem da
aparição de Jeová a Moisés numa touceira de sarça em fogo, ou da parada do sol
ao gesto do general israelita.
Em paz os homens de
má-fé, e vejamos como Ariosto nos conta do hipogrifo que Bradamante, a formosa
donzela guerreira, com os seus lindos olhos viu.
Essa belicosa dama,
revestida de cintilante armadura e montada em fogoso corcel, andava
peregrinando por montes e vales à procura de Rogério, seu amado, quando houve
por bem repousar os membros lassos numa estalagem das proximidades de Bordéus.
Albergou-se e, a recato, pôs-se a cismar no seu fadário estranho. Súbito lhe
chega aos ouvidos um inusitado rumor. Assusta-se, e exclama a correr para donde
vinha o estrépito:
— Que será isto, virgem
santíssima?
O estalajadeiro e toda a
família, uns à janela, outros fora de portas, lá estavam de olhos no céu,
pasmados, como se nele rabeasse um cometa.
O prodígio, entretanto
era outro — e incrível! Um grande corcel de asas fendia os céus, montado por um
cavaleiro de brilhante e luminosa armadura. Voava na direção do poente, onde
por fim desapareceu atrás das montanhas.
Contou então o
estalajadeiro que já vira aquele corcel voar muitas vezes, sempre encavalgado
pelo nigromante do castelo vizinho, o qual nele se elevava até às estrelas, ou
voava resvés do chão, raptando as mulheres bonitas da zona; disso vinha que as
míseras donzelas do país, quando formosas, cuidavam de ficar bem escondidas
enquanto fazia sol.
Era o hipogrifo,
impetuoso cavalo com cabeça e asas d’águia, que representou papel de vulto na
aviação da época e permitiu a Orlando salvar Angélica das garras da orca.
Os céticos negam tudo
isto — mas ninguém nega a vivacidade da cena descrita por Ariosto, e muito
menos eu, que vi reproduzir-se fielmente o quadro, na roça onde andei.
Certo dia, um vozear
estranho chamou-me à janela do casarão da fazenda. Homens e mulheres esparsos
pelo terreiro olhavam para cima como quem olha cometa. Olhei também e vi... o hipogrifo!
Era Edu que passava, a
mil metros de altura, na sua primeira viagem de São Paulo ao Rio, — feito de
alta monta na época.
O espetáculo constituía
novidade absoluta para os roceiros ingênuos. Aquele avejão, zumbidor qual
besouro, desnorteava-lhes a imaginativa.
Um mais fantasioso
sugeriu logo:
— Gavião-pato!...
— Daquele tamanho?
contraveio outro, que além de caçador de gaviões criava patos.
O je-sais-tout emendou:
— Gavião-rei, urubu-rei.
É assim qualquer coisa como o minhocão do Paraíba.
Edu riscava o espaço,
tal qual o hipogrifo de Ariosto, e breve escondeu-se atrás das montanhas,
deixando os pobres matutos a olharem-se uns para os outros com as mais assombradas
caras que ainda vi em vida minha.
Hoje está vulgarizado o hipogrifo
de hélice em vez de bico d’águia, e planos de tafetá em vez das asas de penas.
Seu zumbido já ergue para o ar somente metade dos narizes que lhe passeiam sob
o raio de ação, e um dia não erguerá nenhum. Voarão como os urubus, sem que os
pedestres lhes liguem maior nota que aos automóveis da rua.
Mas não é para dizer
isto que tantas linhas se traçaram. Quero frisar que os monstros de Ariosto
começam a voltar, embora mecânicos e despidos da velha poesia.
A orca têmo-la nos
submarinos. Não se alimenta de virgens, mas vem custando à humanidade um pesado
tributo de vidas masculinas.
O hipogrifo aí está,
pondo o Rio a algumas horas de Recife.
Os silfos do ar,
invisíveis, tão amigos de cantar e tanger o alaúde, a radiotelefonia os restaurou; e se não cantam
maviosos como os da ilha de Prospero, lá chegarão — no dia em que o último ressaibo
a gramofone for extirpado das radiolas.
Só os bosques permanecem
ermos de ninfas; ou tão amáveis criaturas se fizeram anofelinas ou as
anofelinas as expulsaram de lá.
Ninfas hoje só nas
avenidas, disfarçadas em mulheres modernas pelos costureiros inventivos. Dado,
porém, o progresso do nu, vitorioso já nos trololós do Glória, e quiçá um dia
também nas ruas, ninguém perca a esperança de ver restaurada na terra a fauna
inteira de Ariosto — para regalo de todos nós e reabilitação da memória de tão
insigne fantasista.
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In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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