5/24/2019

Monteiro Lobato: O nosso Dualismo (Ensaio)



O nosso Dualismo 

O futurismo apareceu em São Paulo como o fruto da displicência dum rapaz rico e arejado de cérebro: Oswald de Andrade. Turista integral, alternando estadias em Paris com estadias em Ribeirão Preto, leituras de Marinetti e outros com leituras de “O Democrata”, de Pilão Arcado, visões de mármores de Mestrovich com santos de olho arregalado feitos na Bahia, apachismos elegantes de boulevard com o mumismo urbano de Marianas e Diamantinas — sentiu melhor do que ninguém a nossa cristalização mental e empreendeu combatê-la.

Mas combatê-la como? O velho processo do riso, da sátira, do sarcasmo sempre se revelou inútil entre nós. Dá resultados nos países de cultura disseminada, onde um riso como o de Voltaire se propaga em ondas hilariantes dum extremo do país ao outro. Aqui morre nos lábios de quem o arrepanha, porque a incultura não ondula coisa nenhuma.

Mas Oswald, psicólogo de fartos recursos, teve uma ideia genial: recorrer ao processo da atrapalhação.

— Esta gente, refletiu ele, está a jogar uma partida de xadrez que não tem fim; sempre as mesmas pedras, sempre as mesmas regras, sempre as mesmas saídas de peão do rei; sempre os mesmos xeques de rainha e torre. O riso, a piada de quem lhes sapeia o jogo de nada vale: não ligam, estão absortos demais. O recurso é um só, meter as mãos no tabuleiro e mexer as pedras como quem mexe angu.

E se justificava o angu com teorias metafísicas, transcendentalíssimas, tais teorias não passavam duma peninha (o futurismo), cujo fim era atrapalhar inda mais.

Sabem o caso da peninha?

Um sujeito propôs a outro esta adivinhação: “Qual é o bicho que tem quatro pernas, come ratos, mia, passeia pelos telhados e tem uma peninha na ponta da cauda?”

Está claro que ninguém adivinhou.

— Pois é o gato, explicou ele.

— Gato com peninha na cauda?

— Sim. A peninha está aí só para atrapalhar.

As teorias estéticas dos futuristas são esta peninha...

Assim pensou e assim fez Oswald. E os enxadristas, com grande indignação, tiveram de interromper a partida interminável. Xadrez exige calma, repouso, ordem, regra, sistema, boa educação, e do mexer do angu nascera a desordem, a molecagem, o barulho, a extravagância.

O rei passou para o lugar do peão, a rainha deu de pular como o cavalo, o cavalo a ter movimentos de bispo e no fim de tudo quem levava o xeque-mate era quem saía ganhando.

“A besta de Homero... A cavalgadura do Shakespeare... O cretinismo do Anatole...”

Inversão, ou melhor, atrapalhação, angu completo dos valores assentes. Dos valores e das regras. A gramática, a boa ordem, a justa medida, a clareza — pilhérias! Por que é que o pronome reflexo não há de abrir períodos? E zás: “Me parece que...” E o “você” expeliu o “tu”, e a velha asneira, que andava no refugo porque só os asnos a manuseavam, foi reabilitada, vestida à moderna e veio à tona de livros e jornais, toda garrida, provando mais uma vez que tudo vai da apresentação, e que um urubu preparado por Vatel pode saber melhor ao paladar do que uma perdiz assada pelas nossas cozinheiras do trivial.

São Paulo é um meio muito rico de vitaminas mentais e só lá era possível que o gesto de Oswald criasse escola. Assim é que brotou do Bom Retiro, Brás, Bexiga e adjacências uma legião de asseclas. Como sempre acontece, poucos dos legionários compreenderam o alcance da “batalha de Ernani” oswaldina, puro “meio” para a consecussão de um “fim”. E esses bravos guerreiros de 18 anos, e menos, com raríssimas exceções adotaram o meio como fim. Atrapalhar, para Oswald, era o meio de conseguir descristalizar a mentalidade. Só. Mais nada. Ela depois que criasse o que lhe aprouvesse, livremente, sem nenhum dogma, nenhum quadro, nenhuma autoridade que a constrangesse. Não foi outro o objetivo de Oswald, embora ele próprio no calor da luta se iludisse e tentasse construir, esquecido de que as duas funções, a destrutiva e a construtiva, jamais cabem juntas a um mesmo homem. Oswald revelava-se aquele fecundo Nietzsche do “Vademecum? Vadetecum!” Queres seguir-me? Segue-te!

Em vez disso a plêiade futurista, coesa no bloco do Quebra-Vidraças, deu de seguir Oswald, atrapalhando também, mas errada. Errava adotando a atrapalhação como fim supremo, objetivo de todas as manifestações artísticas modernas, e não como simples meio, único eficaz numa terra onde o riso de Voltaire, em vez de matar, engorda.

Por instinto, Oswald sempre repeliu os sectários e sempre refugiu de transformar sua colher de mexer, hoje colher de pau-brasil, em paradigma, em maracá sagrado. E passa a vida a criar cismas dentro do grupo, a dividi-lo, a renegar sumos pontífices, a expulsar adesistas — a impedir, enfim, que o chamado futurismo se cristalize em escola e passe a ser fim em vez de simples meio de combate.

Esta brincadeira de crianças inteligentes, que outra coisa não é tal movimento, vai desempenhar uma função séria em nossas letras. Vai forçar-nos a uma atenta revisão de valores e apressar o abandono de duas coisas a que andamos aferrados: o espírito da literatura francesa e a língua portuguesa de Portugal. Valerá por um 89 duplo — ou por um 7 de setembro. Nestas duas datas está exemplificado o modo de falar da escola antiga, francesa, e da nascente nacionalista.

Por que é estranho isto de permanecermos tão franceses pela arte e pensamento e tão portugueses pela língua, nós os escritores, nós os arquitetos da literatura, quando a tarefa do escritor de um determinado país é construir um monumento que reflita as coisas e a mentalidade desse país por meio da língua falada nesse país.

Formamos, os escritores, uma elite inteiramente divorciada da terra, pelo gosto literário, pelas ideias e pela língua. Somos um grupo de franceses que escrevemos em português — absolutamente alheios, portanto, a uma terra da América que não pensa em francês, nem fala português.

A eterna queixa dos nossos autores, de que não são lidos, vem disso — dessa anomalia de que não se apercebem. O público não os lê porque não lhes entende nem as ideias, nem a língua. Têm eles que se contentar com um escol muito reduzido de leitores também educados à francesa, os quais em regra preferem ir logo às fontes, aos franceses de lá, aos Anatoles e Verlaines.

Este dualismo de mentalidade e língua tem de cessar um dia. Os gramáticos hão de se convencer afinal de que a língua portuguesa variou entre nós, como acontece todas as vezes que um idioma muda de continente. Como o mesmo latim variou em França dando o francês, em Portugal dando o português, em Espanha dando o espanhol. E que continuará a variar, a distanciar-se mais e mais da língua mãe, até que um dia fique em face dela como está ela hoje em face do latim de Cícero. Seria fato virgem no mundo persistir imutável, apesar da mudança de continente, o instrumento língua — que é eólio e varia até quando muda para um país fronteiriço.

Em casos tais, frequentes na história, a regra é a língua velha ir ficando cada vez mais confinada entre os eruditos, enquanto a nova se expande no povo. Por fim vence o povo, que é o número e a força. Nos países europeus de base latina o latim resistiu quanto pôde, escorado pelos sábios e eruditos, desprezadores da “corrupção” popular. Dia houve, porém, em que toda a resistência foi inútil e de alto abaixo a língua se tornou una, pela vitória popular.

Entre nós estamos inda longe de tempo em que o português será língua apenas de um ou outro abencerragem feroz e não lido, mas tudo caminha para isso. O dissídio já está patente. O povo fala brasileiro e os próprios escritores que escrevem em português, não o falam em família. Em casa, de pijama, só se dirigem à esposa, aos filhos e aos criados em língua da terra, brasileiríssima.

Contou-me Bastos Tigre que a Rui Barbosa ouviu dizer de um autor numa livraria:

— Já conheço ele.

E ai de quem não falar assim no trato comezinho da vida! Não só ganha fama de pedante, de “difícil”, como não é bem entendido. Sobretudo ao telefone. Dada a necessidade de extrema clareza, ninguém ao telefone fala em português, se quer evitar complicações.

Bastos quis um dia falar, depressa, depressa, caso urgente, e esqueceu-se de que estava no Brasil.

— Alô! Se o excelentíssimo X está, obséquio, e grande, far-me-á o atendente, chamando-mo.

Ninguém pescou. Bastos insiste. Nada. Berra. Nada. Por fim manda às favas frei Luiz de Souza e diz:

— O sêo Coisada tá aí? Quedele ele, então? Me chame ele já, sim, meu bem?

O Coisada acode pressuroso e Bastos jura nunca mais falar ao telefone em língua de escrever.

Já temos dois grandes escritores que escrevem na língua da terra, em mangas de camisa, e pensam de chapéu de palha com ideias da terra: Cornélio Pires e Catulo.

A elite franco-portuguesa ilha-os com o mesmo desprezo que tinham os faladores de latim em França e Itália para com os Dantes e Ronsards latinófobos.

Em 1559, um Thomaz Sebillet publicou uma coisa com este título: “Défense et Illustration de la Langue Française”, onde havia este pedaço: “Nossa língua não deve ser desprezada, même de ceux auquels elle est propre et naturelle, et qui en rien ne sont moindres que les Grecs et les Romains.”

Entende-se mal e mal o que o homem queria dizer, mas deduz-se que o francês nascente era “desprezado” pela elite latinizante.

O mesmo se dá entre nós. A língua de Cornélio e Catulo só merece sorrisos — e é no entanto a que vai vencer! Já a falamos e acabaremos, cansados de resistir, por escrever como falamos. Só então a literatura será entre nós uma coisa séria, voz da terra articulada e grafada na língua das gentes que a povoam.

A resultante da campanha futurista vai tender para apressar este “processus” de unificação. Mas não o realizará. Não é isso obra de um homem, nem de um grupo. É obra do tempo.


---
In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...