5/23/2019

Monteiro Lobato: Vatel (Ensaio)



Vatel

Se houvesse entre nós mais amor à cultura seria o Rio um formidável consumidor de livros.

O excentrismo topográfico da cidade obriga seus moradores talvez ao maior movimento de locomoção ainda observado em centro urbano. O carioca devia chamar-se naveta, já que a ir e vir passa a vida, como a lançadeira das máquinas de costura. Carioca que morre sessentão, três anos pelo menos morou no bonde. Outros chegam a morar vinte ou trinta; mas estes não contam, motorneiros e condutores de profissão que foram.

Ora, se este tempo de bonde, em regra perdido a olhar com displicência o desfile das casas margeantes, fosse empregado na leitura, que grandes ledores não seriam os cariocas e que ótimo negócio o dos livreiros!

O bem far-se-ia duplo: desencrostar o espírito do cascão que Manuel, Cunhambebe e pai João nos legaram e encurtar as distâncias. Do centro à Tijuca, a ler, dura a viagem cinco minutos, se o livro é bom, ou quinze, se medíocre. A olhar as casas, parvoamente, como se foram palácios, dura horas.

Porque nada mais elástico que isto de hora. A marcação mecânica dos relógios difere da única marcação verdadeira, que é a psicológica. As horas de amor têm cinco minutos, as de seca literária, cento e vinte e às vezes mais.

Muito esmói o cérebro dos nossos prefeitos, que o têm, o problema do encurtamento das distâncias — e nada de vir solução que preste. É que procuram solução mecânica num caso em que só é possível a solução psicológica.

Ensine-se a ler ao povo e forneçam-se-lhe livros interessantes, portáteis, em brochura para o bolso do revólver. E que cada condutor de bonde nos dê em troca da passagem, em vez do papelucho colorido que nos destacam à vista e o vento leva, um livrinho acomodado à extensão da viagem.

Linda Mentira, de Ahelmar, a quem vai à Lapa; o Rocambole, a quem vai ao Leblon. E ninguém murmurará jamais contra as distâncias, psicologicamente suprimidas.
As boas soluções são essas, as indiretas.

Isto o digo por experiência própria. Meu bonde me consome vinte inexoráveis minutos de relógio em levar-me de casa ao centro. Se vai comigo um livro, não percebo o desfalque do meu capital-vida; se vou a olhar casas, sinto-me roubadíssimo.

Além de que é uma delícia o refugir pela imaginação ao ambiente de asfixia em dobro, que nos dá estado de sítio em cima de calor. Leituras tópicas: Guilherme Tell, de Schiller e Viagem ao Pólo, de Amundsen.

Somem-se as barreiras do espaço e do tempo. Com a mesma facilidade com que pulamos do Rio à Grécia e lá assistimos à greve das mulheres contra o ardor dos maridos, contada por Aristófanes, saltamos do dia de hoje ao século dezoito e ouvimos de Mme. de Sevigné a história da morte de Vatel, caso único de morte por hipertrofia de ponto de honra culinário.

Meu bonde ontem foi de palestra com Madame. Esta senhora imortalizou-se de verdade com um punhado de cartas escritas à filha e a outros figurões, todas elas modelos de graça, leveza e feminilidade.

Os franceses têm a palavra pimbêche para designar a mulher de ânimo belicoso que vive em guerra aberta com todos da família. A criar-se lá o antônimo de pimbêche seria fatal o sevignêche, tal a adoração que Madame indicia nas cartas pela filha e pelos seus. Adoração que acaba enjoando o leitor, como os doces doces de mais. Já não é mais sentimento porque é sensiblérie pura, da só possível naquela antissocialíssima vida de corte em que um enxame de cortesãos zumbia em torno do décimo quarto Deus-Luiz.

Quando, porém, um fato de nota ocorria, a correspondência da Sevigné escapava à bombonização rósea do pensamento e narrava com muita naturalidade e graça.

Numa de suas cartas ocupa-se da morte de Vatel, chefe supremo da cozinha da casa de Condé. O rei fora visitá-lo, a Condé, e houve caçada, passeios, colação ao luar num sítio poético tapetado de junquilhos. À noite, ceia.

Mas a comitiva apareceu maior do que a esperada e o assado faltou a algumas das mesas.

Isto foi para Vatel um golpe de morte.

— Estou desonrado; não poderei suportar este desastre... murmurou ele.
Mais tarde disse a um Gourville:

— A cabeça me vira; há doze noites que não durmo; ajude-me a dar ordens.

Gourville o consolou como pôde.

O assado não faltara à mesa do rei, e sim a mesas subalternas. Mesmo assim Vatel definhava de dor.

O príncipe de Condé foi até seu quarto consolá-lo.

— Tudo vai bem, Vatel; a ceia do rei esteve maravilhosa!

— Monsenhor, vossa bondade me confunde; mas eu sei que o assado faltou a duas mesas.
— Tolices, não te aborreças, tudo vai bem, concluiu o príncipe.

A noite chega. Há um fogo de artifício que falha por causa do mau tempo. (O fogueteiro, que era parente de Vatel, nem por isso perdeu o sono).

Às quatro da madrugada Vatel, já em movimento de cá para lá, encontra um fornecedor de peixe que lhe traz algum.

— É tudo? pergunta Vatel. E ao saber que era acha pouco e superexcita-se inda mais. Impacienta-se. Não espera que os outros pourvoyeurs, mandados a todos os portos de mar, cheguem a tempo. Cruza-se com Gourville e diz:

— Não sobreviverei a esta nova afronta, tenho honra e reputação a perder...

Gourville caçoa dos seus escrúpulos e segue caminho.

Vatel sobe ao seu quarto, encosta a espada à parede e traspassa o coração. Três enfincadas deu, conseguindo a morte na última, como diria Mr. de La Palisse.

Mal expira o intendente, eis que começam a chegar de todos os lados os pourvoyeurs — e é peixe a dar com pau. Correm à procura de Vatel; esbarram na porta do seu quarto fechada; arrombam-na e lá o encontram morto, num lago de sangue. Compusera o seu último prato: Vatel em molho pardo...

A tristeza foi imensa. Condé adorava-o e via nele a coluna mestra do seu prestígio de príncipe. A deserção do Shakespeare da cozinha viria certamente diminui-lo na consideração do estômago real e dos estômagos azuis da corte. Não se suicidou entretanto. Apesar de príncipe não sofria de hipertrofia do ponto de honra, como o seu cozinheiro.


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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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