Redivivo
Leonardo
Pereira era um velho agiota, um desses ferozes egoístas, que perpetuam a lenda
dos milagres de poupança produzindo milhões por vinténs acumulados, grandes
fortunas, em cujos alicerces misteriosos se encontra, quase sempre, um crime,
como pedra angular.
Todos
os atos de sua triste vida de solitário, roído pelo verme da desconfiança, que
é um miasma do isolamento, estavam subordinados a regulamentos e horas certas
com uma disciplina, um rigor austero, que constituíam a essencial preocupação
do seu desolado espírito.
—
O tempo, o nosso rico tempo — costumava ele exclamar quando o caceteavam com
prolongadas lamúrias — é o mais precioso dom de Deus.
Como
não tivesse mulher, nem filhos, nem afeições, que o distraíssem dos métodos
adotados, podia observar, sem mínima discrepância, as prescrições a si mesmo
impostas, no intransigente empenho de conservar a saúde, prolongar a existência
e, principalmente, poupar o dinheiro amontoado com muita limpeza, com
indizíveis sacrifícios.
Gabava-se
de não ter gastado um vintém com doutores e drogas. A sua sobriedade
arquiespartana o preservara das indigestões, dos efeitos dos condimentos
irritantes, das intoxicações pelo álcool, pelo tabaco, e das dispepsias
consecutivas a tais desregramentos sólidos e líquidos.
Parecia
construído de ferro aquele homenzinho, mirrado como um cigarro vazio, metido
consigo, com a sua lisura, as suas hipotecas e as suas apólices, tendo por gozo
único a inefável delícia de ver proliferar o seu limpo dinheiro, regado com o
suor do rosto engelhado, como um pergaminho amarrotado, e à custa de abstinência
daquilo que constitui, para os outros homens, a alegria do viver.
Nunca
lhe passara pelo coração o arminho de um afeto, nem a garra da paixão nele
deixara dolorosa cicatriz. Nunca lhe ensombrara o lume vivo e plácido dos
pequenos olhos amarelos de ave de rapina a sinistra visão de mulher cobiçada.
E, não conhecendo o acre sabor capitoso dos frutos dos pomares do amor,
refratário ao aguilhão dos desejos despóticos, não tendo depurado a alma no
crisol do sofrimento, não se compadecia das dores alheias, das mágoas
cruciantes, que foram, muita vez, rebentar junto dele em lágrimas, como rebenta
em flocos de espuma o escarcéu do dorso impassível da rocha.
Achava
nimiamente ridículo o pranto, a imprecação contra a sorte mesquinha, as
lamentações da pobreza envergonhada, os transes mortificantes das acerbas necessidades
da família, as opressivas injunções da honra e do dever.
Quando
lhe expunham contingências irremediáveis de acudir mulher doente, educação de
filhos, adquirir o pão ou enterrar algum deles, respondia placidamente:
—
Por que não fez como eu? Olhe, meu amiguinho, eu não passo por semelhantes
maçadas... Vocês comem a polpa saborosa e se engasgam com o caroço da fruta.
Quando
lhe inchava a ambição espicaçada pelo excessivo lucro em perspectiva, e
garantido por meticulosas cautelas, ele fazia o negócio, ponderando invariavelmente:
—
Veja bem que lhe empresto o meu limpo dinheiro de cara alegre; não faça cara
feia quando lho cobrar. É bem certo que quem dá se parece com Deus: quem cobra
tem feições de Satanás.
Não
tinha amigos para não passar pelo dissabor de perdê-los: os amigos são ilusões
que fogem depois do primeiro empréstimo.
Um
dia, ao regressar da Caixa da Amortização, o rígido velho esteve em risco de
ser esmagado pela colisão de dois caminhões, em disparada, na confluência das
Ruas Direita e dos Pescadores. Salvou-o, milagrosamente, um guapo cavalheiro;
mas, ao chegar a casa, verificou faltarem vinte contos do dinheiro recebido.
Leonardo
ficou como cobra que perdeu o veneno: gritou; berrou como um possesso; voltou
ao sítio do sinistro a procurar o maço de dinheiro, e passou muitos dias e
noites pelas ruas, cafés, restaurantes e, até, pelos teatros, a ver se
encontrava o caridoso salvador, de quem suspeitava.
Todas
as pesquisas, feitas por ele, pessoalmente, ou com o auxílio da polícia, foram
infrutíferas. E o desgraçado, sacudindo todo o organismo anquilosado pela
tortura dessa mágoa, entrou a sofrer crises, em que, aos acessos de melancolia,
sucediam superexcitações de epilético, perseguido pela visão diabólica do guapo
cavalheiro, ou refinado gatuno, desperdiçando em orgias, cercado de: formosas
mulheres lúbricas e radiante de gozo, o rico dinheiro, um pedação de sua alma
mesquinha.
Melhor
fora ter morrido, triturado pelas pesadas rodas e pelas patas dos burros.
Depois
de alguns meses desse penar atroz, numa fulgurante manhã de junho, a sol alto,
o velho permaneceu encerrado no quarto.
A
megera, que exercia junto dele todas as funções domésticas, ficou sobressaltada
com essa primeira infração tio ferrenho regulamento, e comunicou o estranho
fato à vizinhança, muito interessada no desenlace trágico daquela existência,
inútil para ela e para a sociedade.
Houve
enorme rebuliço de curiosidade perversa. Encheu-se a casa. Os parentes,
separados do velho por ódio intransigente, acorreram pressurosos ao faro da
herança, agradecendo, sinceramente, piedosamente, a Deus, o haver liquidado
aquela criatura, que não iria parar ao inferno por não ter alma: era um pedaço
de carne seca que apodreceria, inspirando repugnância aos vermes e à própria
terra da cova que tivesse a desgraça de o encerrar.
Chamada
a polícia, foi arrombado o quarto com todas as formalidades legais.
O
desgraçado estava estirado no leito sórdido, hirto, inerte, na placidez do
derradeiro sono, conservando, nos lábios lívidos, aquele terrível sorriso, com
que emprestava a dez por cento ao mês o rico dinheirinho, bem limpinho e
amalgamado com o honrado suor do rosto.
Morrera
sem sofrer, sem agonia, por uma absurda injustiça do destino, pois a opinião
geral era que ele deveria morrer aos poucos, martirizado por um cancro, ou uma
dessas moléstias atrozes, que vão mastigando, lentamente, uma a uma, todas as
fibras do organismo. Os parentes sugeriram, logo, a busca do testamento, a
arrecadação dos bens e os preparativos do enterro, ' mas a criada, por instinto
ou pelo desespero de ver desaparecerem com aquele cadáver o teto, o pão, a
roupa, exigiu a presença de um médico: ao que a polícia acedeu por ser
indispensável a verificação do óbito.
Defunto
sem choro era triste, quanto mais sem médico, quando lhe sobravam posses para
essa derradeira extravagância.
Penetrando
no quarto mortuário, como quem vai convicto de não ser útil, o médico mandou
abrir portas e janelas para que ar e luz lavassem a espelunca; ordenou fossem
retiradas as roupas nauseabundas, molambos infectos, e ficou só no quarto,
fitando olhos de professor no esquálido corpo, abrindo-lhe depois as pálpebras,
palpando-lhe o pulso e curvando-se, solenemente, para auscultar-lhe o tórax.
Súbito
um clarão de vitória irradiou no semblante do médico, e um grito terrível
estrugiu nos ouvidos dos parentes atônitos, da criada aflita e dos curiosos
desiludidos.
—
Este homem está vivo!...
—
Vivo?!... É possível?!... — bradaram todos numa explosão de assombro.
—
Sim, bem vivo, tornou o médico. Trata-se de um caso vulgar de catalepsia...
Dentro
em meia hora, após injeções e fricções, Leonardo respirou fatigado e voltou à
vida, como quem desperta de pesado sono, e muito contrariado por ter ficado na
cama como um mandrião, até tamanho meio-dia.
***
A
segunda mágoa daquele homem anestesiado foi a de pagar um conto de réis ao
médico, que o salvara.
Pagou,
depois de muito regatear, por lhe ponderar a criada — "que o doutor o
arrebatara à morte terrível, ao martírio indizível de despertar dentro do
túmulo ou de acordar morto. Demais era uma dessas despesas que se fazem uma vez
na vida e outra na morte, porque isso de salvar um homem, ou ressuscitar um
morto não é coisa que acontece todos os dias".
Desde
aquele ataque, porém, Leonardo ficou apreensivo, dominado pela ideia fixa de
adoecer outra vez, não pelo medo da morte, mas pela hipótese de lhe vasculharem
a burra, e, principalmente, pela contingência de nova despesa.
Quebrara-se
o encanto da saúde de ferro do empedernido capitalista: não tardou o segundo
ataque, novas esperanças dos parentes, regozijo dos vizinhos, desespero da
criada, desilusão sobrevinda pela intervenção do médico, e a conta de outro
conto de réis.
—
Se isto continuar assim, — murmurou Leonardo com pranto na voz angustiada —
toda a minha fortuna será consumida em ressurreições!...
Depois
da quarta crise, ele achou que era demais. Que fizera a Deus para ser assim
castigado tão cruamente? Não; não era possível viver ameaçado daquela
despesa... A morte, mil vezes a morte, irremissível, definitiva...
—
Olha, Teresa — disse ele à criada — se eu adoecer à quinta vez não chames
aquele doutor unhas-de-fome, que me rói por uma perna... Vai nisso a tua
felicidade — um farto quinhão no meu testamento...
Ao
quinto ataque, a vontade do homem foi respeitada. Teresa não tinha que se
arrecear da miséria e bem se lhe importava que o generoso patrão voltasse à
vida, o que já seria um escândalo.
Foi
chamado outro médico, que atestou, a olho, — síncope cardíaca.
Um
coche de primeira classe, à frente de longa fila de carruagens, conduzia para o
cemitério do Caju o cadáver do usurário.
Seguia
o préstito lentamente, imerso em nuvens de pó, ao trote fatigado de burros,
banhados de suor, quando se ouviu uma voz desesperada a gritar:
—
Para!... Para!...
Era
o médico, que lera nos jornais a notícia do enterro, e vinha em um tílburi a
desesperada carreira.
—
Este homem está vivo! bradou ele. Não é a primeira vez que lhe acontece
morrer!... Vão enterrar um vivo!...
—
Horror!... exclamaram os convidados.
E,
antes da intervenção dos parentes, que protestaram contra a perturbação da
cerimônia fúnebre e a profanação do cadáver, o médico subiu ao coche, violentou
o caixão e aplicou as injeções do costume ao suposto morto.
Despertando
da catalepsia, Leonardo fitou, assombrado, olhos de ressuscitado, no médico
salvador, que era o seu espectro...
—
Ui!... bradou ele num ronco de horror. — O senhor!... O senhor!... Até no
caminho do cemitério me persegue?!... Vamos, diga logo... quando lhe devo?...
—
Dez contos — respondeu o médico.
—
Siga!... Siga o enterro!... bradou o usurário, caindo de costas dentro do
caixão, e fechando com as mãos hirtas as tampas agaloadas.
---
Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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