6/04/2019

A confidência da avó (Conto), de Conde de Arnoso



A confidência da avó

Desde que há quatro anos os padecimentos da avó se agravaram por forma a não a deixar por pé na rua, mudou os seus quartos para o lado da casa que defronta com o Tejo. E, como tivesse de viver sempre entre as quatro paredes da sua sala, não houve conforto, nem requinte de elegância, que à filha esquecesse na ornamentação daquele cárcere – como a avó lhe chamava.

Nas paredes forradas, desde a sanca do teto até ao friso do rodapé de madeira envernizado, por uma seda clara e salpicada de ramalhetes de flores, sorriam em caixilhos de veludo miniaturas de família, ao lado de severos relevos de marfim, emoldurados em ébano, e de floreiras reluzentes de Talavera e do Rato. Velhos leques abriam as finas varetas rendilhadas de madrepérola, desdobrando em semicírculos graciosos os pergaminhos pintados pelos delicados artistas do século dezoito. Rendas caras e antigas, presas à seda das paredes por pequenas joias de valor, seguravam, numa disposição caprichosa, fotografias estimadas. Um retrato a óleo da avó, tamanho natural, feito aos dezessete anos, dominava toda a sala olhando com meiguice do fundo oval da larga moldura de madeira dourada, para o busto nu da netinha, executado em mármore e que do alto da sua coluna de carvalho torneada espreitava curioso por entre as folhas iriadas das begônias, que estiolavam em vasos ricos da China e do Japão. Em cima dum contador hispano-árabe descansavam em atitudes cismadoras figurinhas de Saxe e de Sévres. Um piano coberto por uma colcha de cetim azul bordada a matiz e caída em curvas ondeantes cortava um dos cantos da sala. Um antigo tapete unido, oriental, de cores vivas e dum desenho complicado abafava as passadas dos que entravam. Sobre o mármore duma consola dourada, de puro estilo Luís XV, encimada por um espelho da mesma época, um relógio de bronze marcava as horas, tocando alegres minuetes. No teto pintado, representando um céu de outono, fugia um bando de andorinhas. A seda dos reposteiros e das cortinas, um pouco mais escura que a das paredes, quebrava a monotonia dos tons claros dominantes. Mesas dos feitios mais diferentes e cadeiras e sofás ferrados dos estofos mais diversos enchiam a casa. Quando instalaram a avó nos seus novos aposentos fartou-se de ralhar com a filha e com o genro:

– Aquilo era mais para uma noiva do que para uma velha caduca.

A filha então observava-lhe que não havia nada de novo:

– Eram tudo coisas antigas da casa; somente no tempo da Mamam não as sabiam dispor por forma a fazê-las realçar.

Mal conformada com tanta elegância, ali passava os seus dias, sentada numa cômoda poltrona ao lado da janela. Um reumatismo persistente e incurável tolhera-lhe os movimentos. Não podia andar, mal podia mesmo mexer os braços. Logo de manhã cedo, as criadas, depois de a vestirem, conduziam-na, impelindo a cadeira, ao pouso favorito.

A neta, no primeiro intervalo das lições, vinha assistir-lhe ao almoço. Depois, mais tarde, sabia sempre roubar uns momentos ao passeio e às próprias horas da brincadeira para fazer companhia à avó.

Aquela doce velhinha, com o seu vestido negro e simples de viúva, com a touca preta a enquadrar-lhe o oval do rosto muito pálido, tendo nos olhos cansados, para cada graça da neta, lágrimas de alegria, pagava-lhe com o mais entranhado amor, e, nos instantes que a tinha a seu lado, esquecia todos os sofrimentos! Não havia meiguice com que a não acariciasse, vontade que lhe não fizesse ou mesmo desejo que o seu coração de avó não adivinhasse. A pequena também, com a fácil intuição das crianças, sabia-a distrair. Falava-lhe das suas lições, dum carrinho que a Mamam lhe ia encomendar para Paris e um pônei que o Papá mandaria buscar à Inglaterra para ela no verão passear na quinta. E convidava-a para esses passeios, afirmando que para esse tempo já a vovó havia de estar boa. E, quando se cansava de tagarelar ou de ver as estampas das edições de luxo dos livros dispersos sobre as mesas, sentava-se ao piano como uma pequenina senhora e principiava a tocar as peças do seu infantil repertório. Era a neta todo o seu encanto. Nas horas que passava sem ela, lia os seus livros favoritos e meditava essas leituras olhando para o Tejo. Se as águas do rio tinham a cor azul dos olhos da sua neta e o sol caindo em cheio prateava a esteira dos barcos que iam singrando; se lá ao longe a curva da serra da Arrábida se desenhava nítida no claro céu e as casas do Seixal, Aldeia Galega e Barreiro brilhavam como uma fita branca desenrolada à beira do rio; se os montes da outra banda, mais próximos deixavam ver na aridez do seu conjunto as manchas verdes das modernas plantações, o seu espírito, refletindo essas belezas, alava-se para as serenas regiões ideais onde não há desgraças, nem lágrimas, nem pesares e aonde tudo é alegria!

Mas, se pelo contrário, o vento soprando rijo do sudoeste, levanta em ondas as águas do Tejo, negras das enxurradas caídas dos montes distantes, fazendo jogar os pesados navios presos às suas amarrações; se só de quando em quando passam os vapores de Belém e Cacilhas despovoados na tolda e se apenas a vela dum catraio atrevido se arrisca a afrontar a fúria do temporal, e as nuvens carregadas de chuva escondem Palmela, São Paulo e o monte de Córdoba; se os negros montes da outra banda parecem prestes a esboroar-se sobre o rio arrastando na sua queda o castelo de Almada e a torre esguia da igreja, então no seu espírito passam todas as recordações angustiosas da sua vida, as saudades cruéis dum tempo que passou, o irremediável, o irreparável, a fatalidade do destino, e assusta-se, confrange-se-lhe o coração no seu seio decrépito, pensando que a sua querida netinha, o seu amor, a sua vida, o seu enlevo, poderá vir ainda a ser mais uma vítima inocente das ilusões deste mundo!

Por isso não pensa senão nela e tem medo que a mãe, que nunca soube senão o que era a felicidade, que casou com o homem de quem gostava perdidamente e que a merecia porque ele próprio era honrado e bom e lhe queria muito, tem medo que ela não saiba evitar à filha os perigos da vida, por isso mesmo que os desconhece, porque nem sequer os presume! Com o genro não conta, não é o homem, no seu entender quem educa, quem forma o coração da mulher. A excessiva delicadeza da sentimentalidade feminil necessita cuidados tais que só por uma mulher podem ser compreendidos. Sendo o seu destino dominar, carece de ter o espírito formado de maneira a dominar-se a si, se porventura não consegue dominar o homem. Tal é o segredo das grandes virtudes. Saber perdoar e imolar-se!

Assim ela, se passa os olhos por toda a sua vida, não condena o marido que não soube fazer-se amado, sacrificando a amores fáceis a felicidade do seu lar. Esqueceu as ofensas recebidas e pela fortaleza do seu proceder encontra agora, na tranquilidade da sua consciência, o premio de todos os seus sofrimentos. Padeceu o seu orgulho, mas triunfou a sua virtude. Convencendo a sociedade que ignorava todos os desgostos que o marido lhe dava, evitou assim a sua humilhante compaixão. Agora só desejava viver até à idade de poder prevenir a neta contra os riscos da vida. Era essa toda a sua ambição.

***

Como a neta ia completar treze anos para Agosto, combinou-se que no dia trinta e um de Maio faria a primeira comunhão em São Luís. A avó, apesar do seu estado de saúde, quis preparar a neta para o grande dia. A partir do primeiro de maio diminuíram à pequena as horas das lições. O tempo assim ganho passava-o com a avó. Eram as cartas de Monsenhor Gaume, lidas pela neta e comentadas com uma tocante simplicidade pela avó, que pouco a pouco iam iniciando aquele espírito no sacramento por excelência da religião católica. Algumas vezes fazia-lhe também uma pequena pratica tomando por tema uma página do livro da infância cristã da condessa de Flavigny. E era de ver, como de dia para dia, a neta ganhava em compostura e interpretava com clareza as palavras das piedosas leituras. Assim, quando chegou o momento de fazer o seu retiro nas irmãs de caridade, tinha inteira consciência do ato que ia praticar. Na véspera da comunhão, ao chegar das irmãs, pediu perdão a todas as pessoas da casa das faltas cometidas, e foi deitar-se ansiosa pelo momento de receber a sagrada hóstia que contém o corpo, o sangue, a alma e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Logo de manhã cedo estava acordada. Depois de dizer as rezas da manhã e de se reconciliar com Deus, saltou abaixo da cama e principiou a vestir-se. Quando a criada chegou, e pouco depois a mãe, estava quase pronta. Tinha já o seu vestidinho branco de cassa, simples e liso sem um único arrebique. A mãe pôs-lhe a touca atada na frente por duas fitas estreitas e pregou-lhe o véu. Estava um encanto! Beijou-a na testa e tomando-lhe a mão levou-a ao quarto da avó, que a apertou nos seus braços enternecida e a chorar!

Assim abraçadas uma à outra, faziam pensar nos destroços dum navio coberto de flocos de espuma e prestes a naufragar!...

Realmente a avó estava mais abatida, tinha-se cansado com o trabalho a que se dera durante todo aquele mês. As forças diminuíam a olhos vistos, passando horas inteiras caída numa grande prostração, e, chegando até o próprio medico, que havia muito a tratava, a recear um fim próximo. Entretanto naquele dia estava mais animada. Enquanto a neta não chegava de São Luís, foi dispondo sobre a bancada, colocada diante de si, os numerosos presentes que tinha para lhe dar. Entre todos sobressaía uma lindíssima cruz de ouro fosco sobre a qual agonizava um Cristo artisticamente burilado pregado com cravos de diamantes e com os espinhos da coroa representados também por pequenas lascas de brilhantes.

No verso da cruz lia-se em esmalte azul a data daquele dia. Mal a neta entrou, deu-lhe logo todos os presentes, perguntando-lhe se tinha pedido a Deus por ela.

– Que pergunta vovó?!

E, lançando-se-lhe ao pescoço, cobriu-a de beijos, agarrando depois nos presentes que foi doida de alegria mostrar aos Pais.

A avó ficou só, olhando para o Tejo, que, naquele momento, refletia as nuvens de trovoada grossas e pesadas, que corriam pelo ar, e lembrava-se com tristeza do dia da sua primeira comunhão!

Tirou do seio uma cruz bem singela e que notavelmente contrastava com a que acabada de dar à neta. Beijou-a comovida. Era a da sua primeira comunhão. Quantos anos tinham passado!... Relanceando o olhar em volta de si, toda aquela elegância lhe fazia recordar com saudade o seu quarto despido e nu de rapariga! Depois, e à medida que de memória folheava o livro da sua mocidade, só o nascimento da filha lhe sorria. Mais nada. Os gozos da velhice esses compensavam bem os sofrimentos do passado. Via a filha feliz e tinha a sua queridíssima neta! Mas em toda a sua existência sentia um vácuo imenso e indefinido, que agora a perseguia como um remorso! Aflita inquiria a consciência e não se percebia culpada! E foi assim, fantasiando escrúpulos, que passou aquele compridíssimo dia tão ardentemente desejado! Com as sombras da noite mais funda se lhe tornou a tristeza. Para se iludir mandou que lhe acendessem todas as luzes da sala. Era um dia alegre, queria tudo alegre em volta de si!...

***

Quando à mesa se servia o Champanhe, o pai lembrou irem todos fazer uma saúde à avó. Entraram os três. A neta ia adiante. Ao chegar defronte da avó, olhou para trás com ar de quem ordena que lhe sigam os movimentos, fez uma mesura muito de senhora, e, levantando o copo, exclamou: – à saúde da minha querida vovó!

A avó, enternecida, beijou-os a chorar. Que eram muito bons para ela, que morreria, quando Deus quisesse, feliz, contente e satisfeita!

– Ninguém fala aqui em morrer – acudiu o genro; e, passando os dedos pelos cabelos macios da filha, acrescentou:

– Vossa excelência há de ainda assistir-lhe ao casamento.

A avó abanou tristemente a cabeça.

– Não gosto nada de ver a vovó chorar!

– Não é chorar... é alegria! Vai tu acabar de jantar com teu pai enquanto a mamã fica um instante a enxugar-me estas lágrimas.

Apenas os dois saíram, pediu à filha que se sentasse ao seu lado, e, como quem se confessa, principiou:

– Vai talvez parecer-te estranho tudo quanto vou dizer-te. Um pressentimento porém diz-me que morrerei cedo.

A filha, que ia a interrompê-la, retraiu-se a um gesto da mãe.

– Então, quando a morte se avizinhe, é possível que as forças me faleçam. Mais vale aproveitá-las agora, e tira do que vais ouvir a lição que eu aprendi para assegurar a tua felicidade. Que ela te sirva para a minha querida neta.

Filha única, como tu, nunca ninguém me contrariou nem nos mais insignificantes apetites. Como era rica, quando aos dezoito anos teu pai, que era rico também, me pediu em casamento, consentiram porque era esse o meu desejo. Casei muito nova, bem vês. Passado pouco tempo, fácil me foi reconhecer que ambos nos tínhamos enganado. Não nos amávamos. Deus, porém, misericordiosíssimo, concedeu-me a tua existência para me consolar do isolamento a que a fatalidade do destino me tinha condenado. Nem por sombras culpo teu pai. Sempre o considerei tão infeliz como eu, e se os negócios da tua casa te levaram um dia a saber, por teu marido, que ele teve uma vida de dissipação, não queiras mal à sua memória. Procurava apenas estontear-se com o pleno direito que a fácil moral da sociedade dá aos homens. E, como eu, também te queria muito. Que lhe guardei a fidelidade que toda a mulher bem nascida deve ao seu marido, escuso dizer-to. Mas não te devo esconder que, enquanto estes cabelos não embranqueceram, e pouco tempo levou, mercê de Deus! senti no meu amargurado coração a ardência de desejos ideais a que me não era dado nem sequer aspirar! Esse crime, se o é, cometi-o fantasiando na solidão do meu viver todas as venturas que o amor correspondido entorna nas almas dos eleitos do Senhor e que para mim passaram como fruto proibido! Porque sofri extraordinariamente, é que só te deixei casar, depois de bem certa da tua inclinação por teu marido. Receava que te iludisses como me sucedeu a mim!

Não vejas, filha, nestas lágrimas mais que a dor de não ter sabido amortalhar o meu coração com a primeira desilusão da vida!

E chorava como a Madalena arrependida, ela que não tinha um pecado na sua consciência impoluta! A filha chorava também; e, ao ver aquela velhinha falar assim do amor, não despegava os olhos do grande retrato suspenso da parede, e intensamente iluminado, que representava a mãe nova, na força da beleza, com um sorriso de meiguice a brincar-lhe na boca, esperando a cada momento vê-la, desprendida da tela em toda a plenitude da formosura e da mocidade, abraçada a si, continuar-lhe ao ouvido a confidência da avó!...




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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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