6/04/2019

A fé é que nos salva (Fábula), de Ana de Castro Osório



A fé é que nos salva

Conta-se que uma vez um saloio adoeceu. Vai daí chamou o médico.

O doutor entrou, com toda a gravidade e, depois de bem observar o doente, pediu pena e tinta e pôs-se a escrever a receita.

O homem não o perdia de vista, e tudo quanto o médico fazia julgava que era para o curar.

Este escreveu a receita, deitou-lhe areia para secar a tinta e depois, voltando-se para o doente, disse-lhe:

— Você não se esqueça do que lhe recomendo, nem faça como outros doentes que me incomodam. Querem receita que depressa os cure, mas não fazem nada do que lhes mando!

— Ora essa, senhor doutor (protestou logo o saloio), cá por mim hei de fazer tudo quanto me mandar.

— Bom, pois então faça o que está aqui.

Foi-se embora, e, como a doença não era de muito cuidado, não voltou a casa do homenzinho.

Um dia, estava muito descansado, entrou-lhe pela porta dentro o lapônio.

— Então você já está bem de todo?

— Sim senhor! E venho agradecer ao senhor doutor o remédio tão bom que me deu, que não me custou dinheiro e há de durar para enquanto eu for vivo.

— Que está para aí a dizer, homem?! Com certeza não fez o que eu lhe mandei.

— Ah isso fiz. Desculpe o senhor doutor, mas fiz. Todos os dias.

— Mas o quê, que foi que vossemecê fez, homem de Deus?! Então na botica não lhe levaram nada?

— Eu para que havia de ir à botica, se tinha o remédio em casa?!

— Não o entendo (exclamou o médico).

Explique-se melhor.

— Ó senhor doutor, então vossa excelência não deitou areia no papel que escreveu e não me disse que fizesse o que ali estava? Foi o que fiz. Todos os dias deitava areia no papel e depois tornava a pô-la no tinteiro e o papelinho debaixo da chave. De modo que me curei e venho agradecer-lhe por me ter dado um remédio tão bom e tão barato, que cura a gente sem dar incômodo.

O doutor riu-se muito e por fim mandou o homenzinho embora, ficando com a certeza de que a fé é que nos salva, muitas vezes...


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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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