6/30/2019

A última ceia do Doutor Fausto (Conto), de Alberto Pimentel


A última ceia do Doutor Fausto

Ihr naht euch wieder, chwankende Gestalten,
Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt.

Goete - Fausto

*** 
Ressurgis outra vez, vagas figuras,
Vacilantes imagens que à turbada
Vista acudíeis dantes?

    Tradução do Visconde de Almeida Garret.

***
Tornai-me a aparecer, entes imaginários,
Que me enchíeis outrora os olhos visionários!


Tradução do Visconde de Castilho.


Fazia nessa noite setenta anos.

Ele era o mais distinto, o mais elegante, o mais popular e o mais respeitado dos médicos. Alto, magro, pálido, com as faces ligeiramente avincadas, bigode nevado como os cabelos, não raros, e ainda penteados com distinção, vestindo quase sempre casaca, e trazendo arregaçadas sobre os ombros as lapelas do seu largo paletó alvadio, calçando luva escura, fumando continuamente os melhores charutos de contrabando, tendo uma voz sacudida, firme, sonora, trazendo à flor dos lábios uma amabilidade para cada mulher que encontrava, um dito conceituoso e inocente para cada homem, sabendo festejar as crianças e animar os doentes, sereno, risonho, impávido, chegara a atingir na sociedade uma dessas invejáveis posições de fausto e consideração, sem ressentimentos, sem despeitos, sem malquerenças, enfim.
Toda a gente o conhecia pelo apelido: o doutor Filipe Súlivan.
Ninguém pensou nunca em saber de quem era filho, que parentes ou que ligações de família ele tinha. Vivia só, servido por criados de lenço branco e casaca. Apareceu na escola médica como estudante assombroso. Os jornais começaram a falar dos seus brilhantes exames e das suas teses magníficas. Acontece aos nomes o que acontece ao dinheiro. Desde que são lançados à circulação, como qualquer pequena moeda de ouro ou de prata, quem pode saber a que destino terão de chegar? Umas vezes esse nome tem a felicidade de merecer uma apoteose, como certas moedas a de perpetuarem uma época esplendorosa na história das civilizações; outras vezes esse nome abisma-se no vasto sorvedouro dos povos, como certas moedas revoluteiam nos abismos escuríssimos da miséria ou do crime. Mas o nome de doutor Filipe Súlivan estava fadado para o destino glorioso dos homens imortais. Começaram todos os doentes a chamá-lo, a querê-lo, a disputá-lo, porque ele começou também a não chegar já para a sua glória, — deliciosa contrariedade que acontece a todos os grandes homens nos países pequenos. Toda a gente requer o médico fulano, quando esse médico é distinto como o Dr. Filipe Súlivan, e o país é tão pequeno como Portugal; um hábil estadista principia a ser importunado para todas as comissões de serviço público, como um ator notável para todos os espetáculos de beneficência. Em França, na Inglaterra, na Alemanha há médicos especialistas, que tratam apenas moléstias de olhos, de peito ou de coração. Nenhum médico, nesses vastos países, pode ter a felicidade de ser disputado por todos os doentes da sua pátria, e daí vem a necessidade de aplicar-se exclusivamente a um só ramo da sua difícil ciência, para dar na vista, para chegar a entrar nas academias e nos institutos.
No curso do Dr. Filipe Súlivan houve repases de subido talento, que no dia das últimas teses se dispersaram remando cada um ao sabor de sua imaginação. Uns fizeram-se médicos, unicamente médicos. Outros, para quem a medicina era apenas uma profissão, dedicaram-se ao jornalismo, à política, às finanças, à literatura propriamente dita. Em todos esses espíritos, mais ou menos levantados e instruídos, havia a mais profunda, a mais leal e a mais perdurável adoração pelo Dr. Filipe Súlivan. Ele tinha sido presidente de quantas sociedades acadêmicas se constituíram durante o seu curso; ele fora o ardente orador de todos os comícios escolares; o lecionista voluntário e gratuito de todos os companheiros mais destituídos de fortuna ou de inteligência; ele chamara às suas festas de estudante sempre premiado todos os amigos, condiscípulos e contemporâneos; ele adquirira, finalmente, a mais espontânea e a mais firme popularidade com que se pode sair das escolas para entrar na sociedade, por mais difícil que a sociedade seja. Estes homens novos e inteligentes, socialmente distribuídos consoante as suas aptidões naturais, começaram por lembrar ao país que tinham sido amigos ou companheiros desse grande médico que estava destinado a ser uma das primeiras notabilidades do seu tempo e da sua pátria. Então pulularam de toda a parte os livros de ciência, as dissertações, os romances, os folhetins, os versos dedicados a ele, ao Dr. Filipe Súlivan, com as mais elegantes e mais ardentes dedicatórias que um rapaz sabe escrever ao entrar na sociedade. A anedota, esta grande mola da celebridade, foi ao encontro do Dr. Filipe Súlivan, receosa de que tamanho homem conseguisse imortalizar-se sem o seu velho e pitoresco auxílio. Um dia, numa época em que o doutor fizera cinco ou seis operações tão difíceis como felizes, encontrara à sua porta, no momento de sair de casa, uma elegante equipagem, cuja libré não reconheceu no primeiro momento. Acendendo vagarosamente o seu charuto, o Dr. Filipe Súlivan perguntou se aquela carruagem o esperava. Responderam-lhe que era sua. O doutor olhou fito no trem, e viu as iniciais F. S. Ao mesmo tempo descia da boleia o cocheiro e perguntava respeitosamente:
— Vossa excelência para onde quer ir?
Nunca pôde descobrir quem lhe oferecera a equipagem. Os seus doentes operados pertenciam a famílias nobres e opulentas, todas elas na prospera situação de tão largo presente. O caso divulgou-se imediatamente, toda a gente começou a fazer conjecturas, e a carruagem do Dr. Filipe Súlivan principiou a gozar uma celebridade que fazia parar na rua para se ficar a olhar para ela, como se fosse dentro o mistério, — a pessoa que a oferecera.
Dizia-se alto e bom som:
— Foi o visconde de...
— Foi o marquês de...
— Foi o conde de...
E à boca pequena:
— Foi a viscondessa...
— Foi a marquesa...
— Foi a condessa...
O que é certo é que o Dr. Filipe Súlivan não sabia quem fora.
Tinha vagado na escola médica um lugar de professor duma das mais importantes cadeiras. Ninguém concorreu a não ser o Dr. Filipe Súlivan, porque ninguém podia e queria esgrimir com ele para ficar indubitável e fatalmente vencido. Se o corpo catedrático pudesse ir a casa buscá-lo e trazê-lo levantado nos braços para a cadeira do professorado, o corpo catedrático havê-lo-ia feito. Mas a lei exigia concurso, e não havia remédio senão satisfazer à lei. Os jornais anunciaram com grande antecipação o dia do concurso, e não tardaram a referir que um médico francês, então residente entre nós, pedira licença ao Dr. Filipe Súlivan para traduzir a sua dissertação a fim de ser conhecida e devidamente apreciada nos primeiros estabelecimentos médicos de França. Houve grande empenho em ser admitido na sala dos concursos. Foi preciso reservar lugar para as senhoras, porque foram muitas as que assistiram desde o primeiro dia. O Dr. Filipe Súlivan era então um rapaz em todo o vigor da sua gentil mocidade. Poderia haver quem lhe pusesse a pecha de extremamente pálido, mas não faltava quem achasse na sua face a mórbida doçura que caracteriza vulgarmente os homens de grande coração e maior inteligência. Diante do corpo catedrático grave e atento, em face do público numeroso e recolhido, ele tinha a naturalidade da expressão, a fluência do dizer, as imagens pitorescas e claras, os arrebatamentos científicos, e por vezes poéticos, o gesto vigoroso e próprio, e ao mesmo passo a modéstia sincera e cativante que em toda a parte davam maior relevo às suas profundas qualidades médicas. Momentos houve em que ele, respondendo brilhantemente a hábeis e repetidas objeções, fora acolhido por um longo e voluntário murmúrio da multidão, agitada por as grandes contrações nervosas que nos invadem o cérebro diante dos mais assombrosos espetáculos de prazer ou dor.
Quando ele se levantou, agitaram-se no ar centenas de braços, de professores, de estudantes, de amigos, de conhecidos e desconhecidos, como se todos pudessem em verdade abraçar ao mesmo tempo, e no mesmo lugar, um só homem. Nessa mesma noite, posto faltassem ainda as últimas provas, teve sob as janelas uma ruidosa serenata de estudantes, que entusiasticamente vozeou as mais calorosas e delirantes aclamações, diremos mesmo os mais doidos gritos que o entusiasmo pode arrancar de peitos de vinte anos. Ó boa, ó santa, ó louca mocidade! como são grandes os teus hinos, as tuas apoteoses e os teus delírios! Ó meigo leão, como és imponente e formidável, quando lambes majestosamente as plantas do teu deus ou do teu herói! Ó onda alegre e sonora, que vais espraiar-te sob a janela do novo Fausto dos teus poemas eternos e mandar-lhe as fervidas notas da tua rumorosa serenata, tu és a grande voz da história, tu és o olímpico hino da glória, que se antecipa no coração da mocidade!
A primeira vez que regeu a cadeira, os estudantes de todos os cursos ofereceram-lhe um jantar, em que ele, ao levantar-se para agradecer num só brinde as saudações que de toda a parte lhe foram dirigidas, rompeu, pronunciada a primeira palavra, numa convulsão de choro e riso, de que brotou, como entretecida de saudades e esperanças, a mais arrojada e torrentosa eloquência que de improviso pode jorrar de lábios humanos.
Não vinham longe as eleições gerais. O nome simpático do Dr. Filipe Súlivan começou a ser apresentado em alguns comícios e recomendado por algumas classes extremamente influentes. Pessoas havia porém que lamentavam esse criminoso roubo da política à ciência, e que tinham sincera mágoa de privar a sociedade dum médico por tal modo distinto para dar ao parlamento mais um orador. Todavia a onda eleitoral foi crescendo com a rapidez que caracteriza o ardor com que se servem as causas voluntarias, e o Dr. Filipe Súlivan apareceu no parlamento festejado e respeitado pelo governo e pelas oposições. Toda a gente tinha os olhos nele, e toda a gente esperava com mal contida impaciência o seu primeiro discurso. A meio da sessão parlamentar, o governo pareceu em crise, e as oposições coligadas assestavam as baterias da sua eloquência apaixonada para varejarem o último reduto do governo. Nesse dia o Dr. Filipe Súlivan pedira a palavra, mas a ordem da inscrição colocava-o em último lugar. Foi uma carga terrível da oposição contra o governo, e, vendo os ministros pálidos, abatidos, vexados nas suas cadeiras, todo o público das galerias, incluído grande numero de representantes estrangeiros que enchiam a tribuna dos diplomatas, olhava para o Dr. Filipe Súlivan como se fora o único homem capaz de opor o seu peito à medonha torrente das iras oposicionistas. Quando finalmente lhe chegara a palavra, e parecia não estar longe o momento em que as pastas voassem das mãos dos ministros aos pés do rei, o Dr. Filipe Súlivan rompeu na mais eloquente e na mais arrojada apóstrofe de indignação contra as oposições coligadas, e num discurso titânico, em que defendeu, medida a medida, os atos do governo, exortando-o a levantar a fronte diante da voz da ambição e das garras da inveja, ele suplantou esses terríveis antagonistas sedentos de poder, que combatem o que se fez porque eles o não fizeram. Nunca jamais orador algum sustentara, um contra cem, tão ardente e desproporcionada campanha parlamentar. Ele fora nesse dia verdadeiramente um gigante, um assombro de coragem e eloquência, porque a sua palavra, interposta a dois campos inimigos, volveu-se um como baluarte invencível, a montanha insuperável que faz o desespero eterno dos que vendo perto a glória ficaram finalmente vencidos.
Sempre me pareceu que a Glória devia de ser caprichosa, porque a fizeram mulher. Mulher e formosa!
Caprichosa por certo! Ela adora os que a não amam, e aborrece os que a amam. Ela procurava, seguia, provocava o Dr. Filipe Súlivan, que a não requestava, que lhe dava um sorriso e que passava adiante; ela colhia-o nos braços e enleava-o nas mil ondulações das suas tranças flutuantes, no parlamento, no professorado, à cabeceira do doente, sempre!
"Ah! talvez ela dissesse, tu és meu e queres fugir-me! Mais um laço, mais outro, mais cem: solta-te agora dos meus braços, despedaça, se podes, os meus grilhões: liberta-te, escravo da minha vontade soberana!"
E os seus grilhões, doces como os braços das mães quando cingem os filhos, tinham, e hão de ter eternamente, alguma coisa de terrível como os espinhos da juba revolta com que a leoa cobre a vítima que empolgou.
"Tu, continuaria ela, tu não podes ser grande na tua cadeira de professor, e pequeno na tua cadeira de deputado. A toda a parte chega o meu influxo, o meu poder e a minha soberania. Eu sou aqueles resplendores que tu vês ondular em colunas vaporosas adentro duma janela por onde entra o ar e a luz. Por toda a parte sei passar, pela janela meia fechada ou pela porta meia aberta, e, para não encontrar nunca obstáculos, faço-me pó resplendente, e entro. Aqui está o que eu sou: poeira de luz, amigo, unicamente poeira de luz. Valho tão pouco como o pó, e valho tanto como a luz! Em toda a parte estarei contigo, doutor. Até logo, até já, até sempre!"
E ela dizia, e ficava a espreitá-lo por detrás dos reposteiros, para o seguir quando ele saísse.
A caprichosa!
Ó Glória, ó bela alma inquieta, que nasceste do pó e caminhas para a luz, não valias porventura o que vales, se tu fosses realmente a Glória sem primeiro haveres sido Mulher!
Por esse tempo celebrava-se, creio eu que em Bruxelas, um congresso médico em que todos os países se faziam representar pelos seus mais notáveis clínicos. Reuniu-se o corpo catedrático para escolher o representante português, e a eleição recaiu por unanimidade no Dr. Filipe Súlivan.
Era mais um convite da Glória.
No congresso de Bruxelas o Dr. Filipe Súlivan foi recebido com a respeitosa admiração que o seu nome inspirava em toda a parte onde era conhecido, e foram sobretudo os delegados franceses os primeiros a encarecerem perante o congresso os profundos dotes médicos do representante português, cuja dissertação de concurso possuíam traduzida no idioma pátrio.
Nas mais importantes questões de medicina legal, o Dr. Filipe Súlivan subiu a uma altura que foi devidamente apreciada pelo sábio congresso, e que lhe conquistou desde logo o primeiro lugar entre os primeiros oradores. Deste triunfo lhe advieram subidas honras, sendo as maiores as relações de amizade que deixou travadas com os mais conspícuos médicos europeus, e as menores as condecorações estrangeiras com que foi agraciado por intervenção dos representantes de França, Alemanha, Itália e Grécia.
Napoleão III, que reinava a esse tempo, enviou ao médico português a mais nobre e distinta das condecorações francesas: a legião de honra.
O Instituto de França abriu-lhe as suas portas de tão difícil ingresso.
Se este notável médico houvesse permanecido em França, teria chegado à celebridade europeia que lá conquistou para si e para Portugal o doutor Casado Giraldes, há pouco falecido. Mas nós, os portugueses, temos profundo e ardente o amor da terra que nos foi berço, e só nos resignamos à melancolia do exílio quando um grave lance da vida nos alastra de espinhos o chão da pátria. Somos, para a maior parte dos estrangeiros, uma província de Espanha, um pequeno trato de terreno interposto aos Períneos e ao Atlântico, mas o que é certo é que nós somos ardentemente ciosos dessas poucas jeiras de solo abençoado, e que respiramos aqui mais livremente do que na vastidão do mundo, que visitamos para tornar nostálgicos ao nosso ignorado vergel de laranjais e roseiras.
Depois, se há homem que precise de ter sempre o coração desanuviado de sombras, e desoprimido de espinhos cruciantes, esse homem é o médico. Ele deve ser a paz, a tranquilidade, a paciência, a consolação; ele deve repartir com os seus doentes a coragem que lhe exabunda no peito; ele deve ter sorrisos para enxugar todas as lágrimas, e palavras de conforto para acalmar todos os desesperos.
Agora rasgai-lhe o coração com a incisiva lamina da saudade, e dizei-lhe: "Sorri, consola, fortifica."
Ah! não pode ser!
Tornado a Portugal, o Dr. Filipe Súlivan prosseguiu na sua brilhante carreira por cima dos louros que lhe desfolhava todas as noites a mão namorada da Glória para ele calcar no dia seguinte.
De triunfo em triunfo, o Dr. Filipe Súlivan habituara-se a esquecer-se de si próprio para viver dessa vida exterior que de toda a parte o reclamava, e que todas as noites o preocupava com os mais difíceis problemas fatológicos. Frequentava a sociedade, a melhor sociedade até, mas atravessava ordinariamente as salas com alguma grave preocupação a trabalhar-lhe o espírito. Era novo e gentil, via ondular diante de si os vagalhões doidejantes da valsa, mas a profissão completara nele, como quase sempre acontece, a educação. Fora moço sobre os livros; deixara de o ser à cabeceira dos doentes. Não conhecera aos vinte anos as tentações mentirosas das salas, de modo que um baile era para ele um espetáculo alegre, mas unicamente espetáculo. No teatro, seja qual for o nosso entusiasmo pelas tempestades do drama ou pelas graciosidades da comedia, há sempre a barreira do tablado a distanciar-nos dessa formosa quimera cujas sensações nós fomos comprar. Também para o Dr. Filipe Súlivan havia nas salas do baile a mesma linha divisória que o separava dos esplendores do festim: essa linha era a posição austera do médico. "Os outros, dizia ele desculpando a sua isenção, os outros podem ser do baile, porque são de si mesmos; o médico não é de si próprio, não pode ser de ninguém. A noite é a suspensão dos cuidados para as outras classes; mas ao médico cumpre estar apercebido de noite, porque a doença tem muitas vezes a cobardia dum salteador noturno, e acomete principalmente de emboscada."
O Amor via-o pois de longe a fumar os seus belos charutos havanos e a conversar discretamente com uma ou outra pessoa, mulher ou homem, a serenidade era a mesma, e a Glória, brincando com os anéis do seu a esse tempo negríssimo cabelo, sorria por detrás da cadeira e dizia para o Amor que ia redemoinhando na sala de mãos enlaçadas com a Valsa:
"Vai, louco, nos braços dessa louca, crianças doidas que pareceis correr enamoradas das borboletas da noite. Olhai que apressadamente desfolhais as flores do vosso breve reinado nesse ondejar vertiginoso. Escreveis os vossos poemas sobre o carmim das faces, e a aurora primeiro, depois o sono, apagam os vossos poemas. Os meus escrevo-os no bronze da história para se lerem na eternidade dos tempos. Por isso não doidejo. Eu trabalho para o futuro; vós trabalhais para a noite. Ide, voai, que eu fico com os meus prediletos."
E o Dr. Filipe Súlivan deixava-se ficar sentado comentando alegre e espirituosamente, com um ou com outro, os mil episódios do baile, essas breves loucuras cor de rosa através das quais um espectador sereno entrevê sempre um demônio zombeteiro a rir-se mefistofelicamente.
Agora passa a viscondessa entre as nuvens alvacentas do seu pó de arroz, reclinada no ombro de um cavalheiro cuja casaca vai enfarinhada da serôdia mocidade da viscondessa.
Logo há de passar o leão decrépito e amoroso a recear de água circassiana a pomba de vinte anos que ele empolga nos braços com os ademanes grotescos que eram moda no tempo dos franceses.
Depois... Depois o grande carnaval das salas em todo o esplendor dos seus fatos de lentejoulas e dos seus pingentes de pechisbeque.
Às vezes diziam ao Dr. Filipe Súlivan:
— Repare como é bonita!
— É bonita! repetia ele quase maquinalmente.
E todavia diz-se que os grandes espíritos foram destinados às profundas vibrações dos mais delicados sentimentos. E entre os delicados sentimentos é delicadíssimo o amor. Ele é tão subtil como as essências mais finas; ele é uma pérola que é preciso saber equilibrar sobre a palma da mão vestida de luva branca. Um movimento mais ardente pode despenhar a pérola. Quantos amores se não hão perdido por haverem querido apressar a hora da felicidade!
Ó meu caro Dr. Filipe Súlivan, serás tu uma organização especial e extraordinária, talhada no mármore onde se concentra eternamente a frialdade dos gelos setentrionais?
Não creio, meu caro doutor, não creio.
Tu és homem, e tens dentro de ti a pior fatalidade do teu sexo: o coração. A glória é pesada como todas as prisões. Há de haver na tua vida um momento em que o coração te bata no peito as pulsações violentas da febre, e te diga finalmente: "Eu quero um momento para mim. A glória tem-te escravizado toda a vida. Escravo, reabilita-te um instante!"
Todavia o Dr. Filipe Súlivan fora envelhecendo com a mesma tranquilidade risonha dos primeiros anos da vida, e parecia que no seu coração havia a calmaria que lampejava na face em clarões de paz e felicidade.
Assim foi que ele chegou aos setenta anos, a essa idade avançada em que o coração já está morto e amortalhado de gelos no peito dos que o assassinaram a golpes de punhal, durante a luta das paixões; a essa idade em que há ainda no profundo céu da nossa alma as cambiantes formosas dum belo ocaso quando se atravessou o mundo sem receber a última desilusão.
A vida romanesca do Dr. Filipe Súlivan era inteiramente desconhecida dos seus primeiros amigos e das pessoas que mais frequentavam a sua companhia. Supunham uns que nunca tivera amado; supunham outros que guardava avaramente o segredo das suas felicidades amorosas.
Ele estava velho, chegado aos setenta anos, e os romancistas desesperariam de copiar tão distinto tipo de médico por lhes faltar a urdidura romântica que particularmente interessa os leitores de novelas.
"É um belo tipo à procura dum romance!" disse duma vez, falando do Dr. Filipe Súlivan, um dos nossos primeiros homens de letras.
Enganava-se.
A verdade é que era um belo romance à procura dum bom romancista.
Ora o bom romancista não apareceu até hoje a meter ombros à tarefa. Encarreguei-me eu desse pequeno serviço — eu, o mais incompetente de todos os escritores portugueses — prestado à memória de esse médico famoso que deixou de si memória assinalada.
No dia em que completava setenta anos, o Dr. Filipe Súlivan convidou os primeiros médicos e os primeiros escritores de Lisboa para o que ele chamava a sua última ceia. O agrupamento de todas estas circunstâncias, a curiosidade de devassar pela primeira vez os mais recônditos aposentos dum homem por tal modo elegante e erudito, que nunca recebera com tamanha prevenção; a circunstância de parecer querer despedir-se romanescamente da vida esse velho distinto que ultimamente apenas aparecia no teatro com a fria austeridade da sua casa e das suas luvas pretas; o orgulho de não ser esquecido para essa soirée em que se presumiria estaria representada a primeira aristocracia do talento, mil outras circunstâncias enfim de que se fazia acompanhar e seguir esse convite inesperado e tentador agitaram profundamente o espírito público numa terra onde os acontecimentos são ordinariamente poucos e insignificantes.
O Dr. Filipe Súlivan habitava nesse tempo um elegante palacete convizinho do cemitério inglês e de esse outro prédio notável onde o visconde de Almeida Garrett falecera. Eles haviam sido amigos, eles estiveram nas câmaras ao mesmo tempo, eles tinham o seu que de comum na delicadeza de gosto e na grandeza de espírito.
Nas primeiras salas, distinta e ricamente mobiliadas, estava o bilhar, a livraria, o gabinete de leitura, onde as mais voluptuosas comodidades, a mais suave luz, quebrada discretamente em abajur convenientemente coloridos, convidavam a esse engolfar do espírito que põe todo o sabor e todo o encanto aos livros. Á sala de leitura seguia-se o gabinete anatômico e o arsenal cirúrgico, copiosos de exemplares valiosíssimos. Ah! tinham o seu que de terrivelmente fantástico essas grotescas figuras de cera, de cartão, ou elásticas representadas em mil diferentes posições dolorosas; essas asquerosas deformidades arrancadas ao corpo humano durante a profunda sonolência da anestesia, e esses ferros de gume delicado e garras dilacerantes iluminados pelo reflexo trêmulo do gás que, borboleteando por eles em filetes luminosos, parecia dar vitalidade e contrações a toda essa inanimada galeria de raros exemplares perfeitamente trabalhados ou habilmente operados. A maior parte dos convidados que não eram médicos evitavam inteiramente estas duas salas, espreitando-as da porta do gabinete de leitura, e deixando-se cair numa chaise-longue com os olhos disfarçadamente postos num livro que não liam. Os médicos entravam e demoravam-se em grupos de três ou de quatro diante das vitrines, especialmente diante das copiosas vidraças da secção obstetrícia a discutir por exemplo as vantagens do fórceps-serra de Van Huevel sobre a cefalotribe de Penard e as dimensões dos golpes na operação cesariana, cujo modelo estava ali diante deles quase tão paciente como se fosse verdadeiro. A um e outro lado da porta havia dois belos esqueletos por cujos vãos intercostais rompiam fantasticamente as ondas de luz que irradiavam os candelabros da sala imediata. Um distinto poeta satânico, espécie literária que nesse tempo começava a pimpolhar em Portugal, e que numa das suas odes terríveis pedira a Satanás o doce horror de beber o sangue da vingança pelo crânio da amante que o traiu, foi visto por um dos nossos mais espirituosos médicos, no momento de atravessar por entre os dois esqueletos, tão nervosamente encolhido como se tivesse de escoar-se por entre as pontas de dois punhais apontados para os ombros dele. Aqui está a Vida, em todas as suas evoluções, desde o embrião que o ferro sabe arrancar ao ventre materno até à decomposição repugnante que a há de apodrecer. Aqui, ó poetas, ó romancistas, ó sábios que tendes um talher na última ceia do Dr. Filipe Súlivan, aqui é lugar para filósofos, aqui desvelou ele muitas noites, à pálida luz duma única lâmpada, enquanto vós doidejáveis nas loucuras que envelheceram para vós antes que vos achásseis velhos para elas.
Ah! que se o Dr. Súlivan tivesse uma grande ânsia de amar, como toda a vida teve uma grande ânsia de saber, como facilmente o poderíamos imaginar o velho doutor Fausto da legenda universal no meio do seus livros poentos e dos seus luzentes instrumentos cirúrgicos, enquanto lá ao fundo do gabinete misterioso apareceria vaporosa e divinal a imagem de Margarida, como no primeiro ato da opera de Gounod, e Mefistófeles espreitaria os anelos arrebatados do namorado doutor sempiterno! Mas a sua vida é talvez um poema fechado, um cofre de joias por abrir, um segredo que, porventura ao terminar a última ceia, descerá com ele à sepultura! Ali! meu velho doutor, meu caro Filipe Súlivan, talvez que estas figuras grotescas e fantásticas, em que tu noite e dia estudavas as profundezas da ciência e os mistérios da vida, saibam até que ponto costumava avoejar a tua fantasia de artista e de erudito, mas só a tua mão delicada lhes sabia dar movimento e sensibilidade, e agora aí estão mudas, sem responderem às nossas interrogações curiosas, enquanto lá em cima o tinir dos cristais e a fosforescência das luzes faz esquecer o mistério que envolve a tua vida, doutor!
Todas estas salas constituíam o rez-de-chaussée e descreviam uma curva em derredor da escada, lançada em ligeiro caracol e ornamentada de vasos, espelhos, estatuetas, candelabros, e suspensões floridas.
No andar nobre havia a um lado três vastas salas que entre si comunicavam por largas portas arqueadas e envidraçadas. Estavam todas abertas, iluminadas, deslumbrantes de esplendor e elegância. Do outro lado correspondiam os aposentos do Dr. Filipe Súlivan, quartos deliciosos, duma luz tíbia e doce, em grande parte devida à cor das colgaduras e da mobília. Estavam corridos de par em par os reposteiros. Uns compartimentos interiores, destinados a toilette e casa de banho davam comunicação particular para a sala da mesa, cuja entrada principal era pela terceira sala do lado oposto. Ah! a sala da mesa! As graças da fantasia de mãos dadas com as pompas da opulência! As mais finas e custosas louças indianas! pratas artisticamente lavradas para os festins dum príncipe! cristais multicores e resplendentes! candelabros constelados de lumes sem conto! quadros onde os mimos da natureza sobressaíam pela delicadeza do colorido! um labirinto de taças, de plateaux, de corbeilles, de ornatos gelatinosos, de frutos variegados, de pequenos aquários, de magníficas jarras de Sevres, no meio duma vasta sala cortada por dois arcos de uma grande elegância de desenho!
Quando os convidados saíram das outras salas, onde deliciosamente os detiveram o bilhar, o Whist, a biblioteca, a conversação científica ou humorística, e entraram à sala da mesa, quase todos os grupos pararam de súbito ao limiar da porta deslumbrados da surpresa de tão grandioso espetáculo.
O Dr. Filipe Súlivan fazia notabilissimamente as honras da casa. Ele destacava-se elegantemente naquele vasto quadro por tal modo animado e confuso. Sobre a casaca, que lhe vestia ainda com a elegância dum moço, a roseta encarnada da legião de honra recordava tacitamente uma das paginas mais gloriosas da sua vida científica.
Essa doce recordação não podia faltar na última ceia dum sábio, — a ceia dos setenta anos, o último resplendor do sol sobre as neves da velhice, o derradeiro punhado de flores arremessado alegremente para a silenciosa aridez do inverno.
A última ceia, o último brinde, a última taça de champagne! Depois... talvez a morte.
Prolongou-se pela noite dentro a ceia. Não há imaginar aí mais vivida, mais fervida, mais cintilante conversação! mais doida, mais caprichosa! borboleta que parecia arrancar de todas as bocas uma palavra de ouro para as deixar cair em chuva cintilante, do alto da mesa, sobre as flores, os cristais e as luzes! Houve um momento de indescritível animação e de entusiasmo sublime.
O mais novo dos membros da faculdade propôs um brinde à glória que cingia de luz a fronte encanecida dos seus velhos mestres. O Dr. Filipe Súlivan ergueu-se verdadeiramente comovido e respondeu levantando um brinde à esperança, ao amor e ao futuro, saudando a mocidade que nas cadeiras do professorado ia a pouco e pouco substituindo brilhantemente os últimos soldados da velha guarda médica.
— Ah! que sejam felizes, disse ele, que menos os namore a glória do que o amor! que os louros da ciência não afoguem na sua folhagem viridente as delicadas rosas da felicidade terrena! Ah! que é preciso que o médico saiba ganhar no dia de hoje as forças hercúleas que tem de empenhar amanhã na sua continuada luta, braço a braço, com a morte e com o luto. É preciso que o médico seja homem uma vez ao menos, porque, se ele pensou mais nos outros do que em si, morrerá só, na solidão do seu lar, sem família, sem mão piedosa que lhe cerre os olhos, sem lábios infantis que lhe beijem a mão inanimada, depois de ter vivido tristemente a dar a vida aos outros ou de lhes haver procurado suavizar a morte pelo menos. Por isso eu brindo pelo amor, pela felicidade, e pela esperança!
Houve então quem se levantasse e dissesse:
— Eu brindo, eu saúdo, eu quisera divinizar os gigantes do dever, os que serenamente pousam a sua cabeça no mármore da sepultura depois de haverem dado ao mundo o maior, o mais sublime, o mais estupendo exemplo de abnegação. Eu brindo os que se não fizeram amar porque todo o coração lhes era pouco para amarem os outros...
Neste momento, o Dr. Filipe Súlivan, extremamente pálido, de pé, com a mão direita firmada na mesa e a esquerda apoiada sobre a taça do champagne, disse ardentemente, depois de por alguns momentos haver mergulhado o olhar enublado de lágrimas no delicioso conjunto da mesa:
— Nessa frase está talvez o segredo da minha vida. Ah! que não pode o peito dum homem fechar-se sobre si mesmo com os seus pensamentos e com as suas dores durante o longo e trabalhoso curso de setenta anos! Nunca sob este teto se trocaram confidências porque jamais aqui houve família. Faltava a doce intimidade do jantar e do serão, das festas e das tristezas domésticas. Eu entrava só, estava só, saía só, — vivia só. Mas não posso, meus amigos, não posso por mais tempo guardar no seio o que há tão longo tempo aqui trago escondido. É a primeira e a última confidência. Viestes assistir, amigos, aos alegres funerais dum velho colega. Pois bem. Ele quer corresponder à vossa dedicação, e, no momento de adormecer na paz do túmulo, quer de vós todos fazer a sua família, contar-vos a sua vida, revelar-vos os seus segredos. É um morto que fala, amigos...
Fez-se um silencio profundo. O Dr. Filipe Súlivan, conservando a mesma posição, recomeçou:
— Eu amei, meus amigos, eu amei duas vezes na minha vida, e eu amei duas pessoas que justamente me não amaram...
Passou em todas as bocas um murmúrio de surpresa e talvez de incredulidade.
O Dr. Filipe Súlivan espalmou no ar a mão direita, e o silencio restabeleceu-se profundíssimo:
— Gastam facilmente a vida as ilusões. E uma das mais queridas ilusões da mocidade é seguramente a Glória. Que deslumbramentos a refulgirem no prisma da nossa fantasia, quando o nosso nome principia a passar de boca em boca e já uma vez por outra ouvimos por detrás de nós pronunciar na rua o nosso apelido! Ah! as aspirações do homem brilham para dentro dele com a fantástica coloração das estalactites numa gruta iluminada pelo sol, — sol de esperança é ele— e, como as estalactites se formam gota a gota, as nossas aspirações vão-se conglobando sonho a sonho. Até que finalmente chega o momento em que para todo o sempre petrificam... Esse momento chegou. Mas eu queria dizer-vos que foi a Glória a grande, a querida, a profunda ilusão da minha mocidade. Sonhar aplausos, festas, saudações... ah! meus amigos, eu sinto agora mesmo a garra traiçoeira da Glória a estender-se furtivamente para o meu peito arrefecido pelo gear de longos invernos. Parece-se nisto a Glória com a saudade: quando lembra, comove; quanto mais doe, mais se arreiga! Ah! deixa-me em paz, esconde a tua garra tigrina, ó monstro que te chamas Glória, se não queres que o meu desprezo esmague o teu coração tão abundante de sangue que chega para o mundo todo! Foram sonhos os primeiros anos da vida, — sempre sonhos, deixai-me dizer-vo-lo assim, fantasticamente realizados. A Glória é como os tiranos que abrem os tesouros da sua real liberalidade para comprarem uma denuncia, mas que, feita a denuncia, mandam ao sacrifício a vítima que ludibriaram. Ah! que em a gente dizendo à Glória: "Sou teu", chega o momento em que os tiranos deixam de ser generosos para se volverem feras que preparam festins de sangue. Tudo me concedia a Glória, tudo me concedeu até esse momento fatal. Eu escravizara-lhe o meu pensamento, eu vivia dela e para ela, e atravessava a sociedade com a fria exterioridade dum homem cujas relações amorosas se envolvem no mais profundo mistério. Todas as mulheres se me afiguravam lastimáveis quando eu descia ao meu santuário íntimo e queimava o incenso da adoração perante o altar do meu ídolo. Frequentava nesse tempo os bailes, unicamente para reivindicar o meu direito, por mim conquistado, de ir aos bailes. Estava nas salas indiferente. Se o meu mundo não era aquele! No meu mundo não havia mulheres que vendiam sorrisos e que pintavam ao espelho a beleza das faces e dos supercílios. Não! No meu mundo tudo era puro, sincero, leal e digno: povoavam-no as aspirações dum homem, que nascera obscuro, que fizera um nome, e que, de todos conhecido, caminhava para um ponto ideal e luminoso: a Glória! Ah! que isto é verdadeiramente puro, sincero, leal e digno...
Aqui sorrira desdenhosamente o Dr. Filipe Súlivan e, depois de brevíssima pausa, prosseguiu:
— És pó, homem, és pó!... E tu, vivendo nos homens e com eles, o que hás de ser também. Glória? Deixa-me em paz. Estão por aí esses moços: crava-lhes no peito a tua garra tigrina. A mim deixa-me em paz. Não venhas perturbar os meus funerais. Foge, foge... Na sociedade diziam-me às vezes duma ou de outra mulher: É bonita! Eu quase sempre respondia distraidamente: É bonita! Eu era como aqueles viajantes, que deixam na pátria a noiva, e que atravessam os países sem repararem nas mulheres estrangeiras. Assim entrava eu nas salas de baile. Algumas vezes, muitas vezes me disseram de uma mulher, que por esse tempo chegara de Inglaterra onde estivera a educar: "Veja, doutor, como é bonita!" "Ali! é bonita!" Para mim valia tanto como as outras. Falava inglês. Circunstância agravante. O Garrett gostava do anglicismo amoroso. Muitas vezes me encareceu a doce realidade do verbo: To flirt.
Eu já nesse tempo tinha como princípio que, se o inglês se inventou de propósito para alguém, foi justamente para os ingleses.
Um sorriso ligeiro perpassou nos lábios dos convivas.
— Achei sempre tão violento um inglês a falar português, como um português a falar inglês. Mas... uma portuguesa! Essa gentil menina entrou na sociedade lisbonense, d'onde saíra criança, com a tríplice celebridade da sua beleza, da sua educação e do seu dote. Dentre vós conhecem-na os que em Lisboa nasceram: a esses a minha velhice recomenda discrição. Para os que não são lisbonenses desejo eu que ela fique sendo a mulher ideal dum romance verdadeiro. Alvoroçaram-se os mais elegantes moços açulados nas pesquisas de noiva rica. Dois de entre eles pareciam nivelados nas probabilidades de triunfo: um era barão; outro visconde. Andava travado um grande duelo moral entre os dois. Não se faltava de outra coisa: discutia-se a elegância do barão e a fina educação do visconde. No teatro, em estando ela, havia três pontos, ligados por linhas invisíveis, em que todos os olhares se fixavam: ela, o barão e o visconde. Este era o triangulo da curiosidade publica. Eu costumava rir-me dos novos episódios que dia a dia ia oferecendo o grande pleito amoroso, e algumas vezes cheguei a acreditar ingenuamente na possibilidade duma segunda guerra de Troia... A minha idade era já tocante na petrificação das ilusões: eu tinha quarenta e oito anos. Esta deve ser a fria idade da critica e, por conseguinte, da reflexão. Era justamente isso o que eu fazia: Punha sobre a minha pequena mesa anatômica aquela titânica luta de Melenau e Páris, e com o meu escalpelo de médico ia minando até encontrar o cofrezinho onde se guardava o dote disputado. Em sentindo tilintar o dinheiro, desatava a rir.
Riu também das facetas imagens do doutor Filipe Súlivan a erudita assembleia.
— A esse tempo, como ia dizendo, começava a entrar comigo o tédio da glória. Eu principiava a sentir que viver era mais alguma cousa que triunfar. Faltava-me, meus amigos, o sofrer. Ah! faltava-me o sofrer, essa incomparável doçura do veneno! Solidificavam finalmente na friúra da pedra as prismáticas estalactites da minha gruta remansosa. E começava a rir dos que compreendiam a vida sem a necessidade de sofrer. Ora o barão e o visconde, disputando-se um dote monstruoso, denunciavam tacitamente a sua repugnância pela necessidade de sofrer. Eu fazia de ambos eles um conceito insignificante. Lembro-me perfeitamente de que uma noite se conversava acerca desse famoso casamento. Discutia-se sobre a preferência de noivo. Foi pedida a minha opinião. Esquivei-me. Insistiram. Respondi que triunfaria o visconde. "Por que, doutor?" perguntaram. "Por ser visconde" respondi. "Ora! Isso não é razão!" replicaram. "Peço perdão, redargui, os viscondes têm geralmente mais razão que os barões." Começava a aborrecer-me tanto como a glória a já longa questão do grande casamento. O que eu desejava era que ele se efetuasse dum modo ou d'outro para que me deixasse em paz. Mas... uma noite, uma noite, estava eu em S. Carlos, e vejo entrar na plateia, visivelmente perturbado, o visconde. Fantasiei de repente uma cena de pugilato como barão. Olhei, a procurá-lo. O visconde, porém, aproxima-se de mim, e pede-me com precipitação que o acompanhe a ver um doente. Saímos ambos. No corredor, o visconde passa o braço direito pelo meu dorso, encosta-me ao seu peito, de tal modo que eu sentia bater vertiginosamente o seu coração, e diz-me com dolorida vivacidade: "Doutor, um grande favor: salve a minha noiva." "A sua noiva!" repeti admirado, enfiando a sobre-casaca. "A minha noiva" respondeu ele, e acrescentou o nome. Era ela. E, já no trem, enquanto o visconde mascava avidamente o charuto e olhava através do vidro enevoado do vapor da noite, ia eu dizendo comigo mesmo: "Afinal de contas, os viscondes têm geralmente mais razão que os barões." Chegamos. Os criados andavam azafamados pelos corredores. Sentia-se no ar aquele sinistro alvoroço que acompanha as grandes enfermidades e sucede ao passamento de uma pessoa da família. O visconde ia adiante de mim, rápida mas cautelosamente. A meio de uma das salas saiu-nos ao encontro a atribulada mãe dessa gentil menina. O pai passeava à porta do quarto da filha representando a força, como se fizesse sentinela para obstar a que entrasse a morte. Quando me viu, abriu para mim os braços: temia-se da morte, e esperava que eu fosse a saúde, a vida. Aos lados do leito velavam, nos vãos do pudico cortinado, três meninas parentas da casa. A doente, justamente no momento em que eu entrei, recostava-se impacientemente nas almofadas, tinha as faces rubras do carmim da febre, sobretudo na preeminência dos malares. Era extrema a sua agitação proveniente da pontada sobre o lado esquerdo, das náuseas, dos calafrios, da tosse, da tosse que era violentíssima, e que fora nela, estando à mesa, a súbita manifestação da moléstia. Estava perfeitamente diagnosticada à primeira vista a pneumonia aguda complicada de pleurisia. A auscultação não deixou dúvidas. O visconde, ao pé de mim, alumiava com uma pequena palmatória de prata. O pai e a mãe estavam meio escondidos por detrás do cortinado, mirando-me com olhares dolorosamente interrogadores. As três meninas haviam saído do quarto. Saí para receitar. O visconde e o pai da doente prenderam-me cada um por seu braço e interrogaram-me com um gesto. Respondi a verdade, — que estava gravemente doente, mas que eu não desesperava de salvá-la. O pai voltou-me as costas aturdido daquelas verdadeiras e lentas dores que os pais costumam sofrer pelos filhos; o visconde pousou o castiçal e com ambas as mãos apertou a minha. "Doutor, tornou a dizer-me, salve-ma, salve-ma!" Havia efusão no que dizia. Eu, naquele momento, esqueci-me de que aquela mulher era rica, e o visconde seu noivo. Queria salvá-la à custa de sacrifícios e de esforços. Voltou o pai à sala, bateu-me no ombro e disse: "Doutor, não nos fuja, não nos desampare. Eu vou mandar-lhe preparar um quarto." E, sem esperar a minha resposta, saiu rapidamente. A minha resposta, a ter tido tempo para responder, era a anuência. Não se é médico para outra coisa. O lugar do médico é ao pé do doente; eu estava no meu lugar. Essa noite foi terrível de ansiedade para todos. Eu sentei-me à cabeceira do leito, preparando e ministrando por própria mão os remédios. A insônia prolongou-se pela noite dentro, e, não obstante a rapidez das aplicações, sobreveio de madrugada o delírio. Muitas vezes, enquanto o delírio durou, ouvi à doente o meu nome. "Doutor! doutor!" Invocava o meu auxílio e a minha amizade, mas não atinava com o mais que desejava dizer. O nome do visconde nunca o pronunciou. Do outro lado do leito a mãe, sempre que a ouvia pronunciar o meu nome, punha as mãos sobre as quais lhe caiam as lágrimas, voltada para mim, como o faria diante de um altar, numa súplica silenciosa. Já era manhã quando a doente, após alguns momentos de grande agitação, teve que obedecer à ação dos medicamentos, e descaiu sobre o meu braço no momento em que a amparava. Dormitou, pousada a cabeça sobre o meu braço, alguns momentos. Quiseram substituir o meu braço pelas almofadas. Não consenti. Então, de repente, comecei a entrar num estado excepcional, em que me parecia que não estava ali como médico, conservando todavia a consciência de o ser. Não sei, devo dizer-vo-lo, que pura e respeitosa voluptuosidade me dava o corpo gentil daquela mulher pousado sobre o meu braço! Se estivéssemos sós, havê-la-ia beijado nas tranças; mas, se ela não estivera doente, quisera retirar o meu braço! Estranhas loucuras! Estranhos pensamentos que nunca eu tivera! E, ao mesmo tempo, não sei que misteriosa atração para aquele leito, para aquela doente, para tudo o que nos cercava ali! Eu começava a achar em mim mesmo profundezas desconhecidas. O visconde entrava de vez em quando na câmara e todavia eu não odiava o visconde! A pobre mãe, com os olhos docemente postos na filha, começava a inspirar-me um profundo sentimento de simpatia. "Que é isto?" perguntava eu a mim mesmo. "Que estou sentindo eu, que enlouqueci de repente?" E não sei que doce opressão sofria o meu braço nesses breves momentos, — tão breves foram! — que ela dormiu. Eu estava bem! tão bem, sem saber por que, naquela incomoda posição, sem todavia pensar uma vez sequer que o visconde desejaria estar como eu! Não reputava aquilo felicidade. Mas estava bem! tão bem! Durante esse tempo, que teve para mim a duração dum momento, eu era um novo homem que despertava em mim, mas como que aturdido dum sonho. Não sei bem explicar o meu estado. Depois, ela teve um frouxo de tosse, e abriu os olhos. Abriu os olhos, e olhou para mim. Não sei se me viu. Sei que eu achei no seu desluzido e meigo olhar uma doçura inexcedível. "Ah! hei de salvar-te!" disse de mim para comigo, cheio de confiança e entusiasmo, reptando-me a mim próprio. "Muito bem! continuei eu monologando, aceito a luva. Aqui está esta vida preciosa, que eu princípio, não sei porque, a estremecer. De acolá, daquele lado, está a doença, talvez a morte, o aniquilamento de tudo isto tão delicado e gracioso. Não avançarás, morte, não espalharás sobre estas faces o teu punhado de pó. Para trás, miserável, que vens atacar uma mulher que nem sequer pensava em ti!" Recolhi-me por algumas horas ao meu quarto por haverem instado comigo, não que eu quisesse ir, porque já me custava desamparar aquele leito cujo alvo cortinado fechava para mim um paraíso. Não me pude deitar; não poderia adormecer. Comecei a passear e a fumar. De repente faço reparo nos quadros que pendiam das paredes: o retrato dela! Surpresa providencial! O retrato dela! Comecei a sentir-me menos impaciente desde esse precioso achado. Arrastei a cadeira para defronte do retrato. Sentei-me, fumava, pensava... Que pensava eu? Não sei. De meia em meia hora ia ver a doente, e voltava a sentar-me defronte do retrato. Demorava-me pouco ao pé do leito; tinha receio de que notassem em mim excesso de zelo médico. Espantosa cobardia a minha! Estava mais tempo em frente do retrato do que ao pé do leito. Quando chamaram para o almoço, fui ver a doente e, extraordinária incongruência! eu, que principiava a ter receio de estar ali, ao pé dela, senti-me vagamente triste por ter que sair para ir ver outros doentes. Não me dispensaram de jantar. Oh! com que íntimo prazer não aceitei eu, apesar de aparente relutância, esse convite que para mim seria de uma impertinência atroz feito nesse mesmo dia por outras pessoas. Dentro do meu trem, fumando continuamente, fumando sempre, achei-me só, triste, inquieto. Descobri nesse dia um dos múltiplos segredos da vida, para descerrar os quais há sempre uma chave na mão das circunstâncias extraordinárias. O segredo que eu descobri, meus amigos, essa terrível surpresa que me assaltou nesse para mim notabilíssimo período da minha existência, foi a solidão do trem. Acreditem, é uma subtil observação psicológica, que passa despercebida quando se é feliz. Oh! mas quando se sofre, e se vê e ouve através dos stores duma carruagem o mundo, o rumor, o bulício, a vida, e nós vamos sozinhos, ali dentro, como quem passa para o cemitério, então, meus amigos, a solidão do trem é horrível, medonha, pavorosa. Vi os meus doentes preocupadamente. Com extraordinária impaciência esperei a hora do jantar, a hora da família, como eu ia dizendo comigo, eu, que nunca tive família, e que portanto nunca soube o que era jantar. Recolhi meia hora antes do que devia, para gastá-la ao pé da minha doente. O seu estado, sem ameaçar perigo iminente, continuava a ser grave. Mas a esperança de a salvar, direi mesmo a certeza, cada vez aprofundava mais no meu coração. A doente por duas ou três vezes me relanceou o seu olhar mavioso. Oh! que paraíso aquele, o dos seus olhos! Que preciosa recompensa aquela para as preocupações dum médico! Dir-vos-ei, amigos, sinceramente, lealmente, se aquela mulher houvesse sucumbido à moléstia, eu haver-me-ia suicidado para extinguir em mim uma ciência que desde esse momento reputaria inteiramente falsa e inútil. Foi ainda de graves cuidados essa noite, que eu desvelei quase toda sentado à cabeceira do seu leito. Depois da meia noite, a doente conseguiu dormir sonos curtos mas tranquilos. A sua pobre mãe, extenuada pela fadiga física e moral, dormitava alguns momentos; na saleta, o visconde, que nas últimas vinte e quatro horas havia alterado o seu horário aristocrático, cerrava por vezes os olhos, e cabeceava. O dono da casa estava descansando para revezar a esposa no espinhoso cargo de enfermeiro. Só eu velava ali, eu só, com os meus extraordinários pensamentos, amando, posso e devo dizê-lo, amando em silencio, pela primeira vez na minha vida, aquela mulher, cujas formas a pálida luz da lamparina e a alva roupa do leito tornavam vaporosas, e que eu amava desinteressadamente, puramente, como se ela não fosse rica, como se não fosse formosa e gentil. Ah! que era decerto essa a primeira vez que ela era assim amada no mundo! que foi essa decerto a última vez que ela foi assim amada!... Sou quase chegado, meus amigos, ao para mim mais pungente lance desta narrativa. Não terei forças para historiá-lo com o vagar que requeria...
E o Dr. Filipe Súlivan, cerrando os olhos por alguns momentos, em meio de geral e profundíssimo silencio, concluiu rapidamente:
— Pois bem. Abreviemos. Á medida que a doença cedia, recrescia o meu amor. Chegou finalmente a hora que eu desejaria retardar indefinidamente, mas que a minha consciência de médico me obrigava a determinar: a hora de a entregar formosa e salva aos braços de seu marido. Ah! que é terrível! Aos braços de seu marido! O que se passou em mim, o que eu sofri, nem o sei, nem vo-lo posso dizer... Marcou-se dia para o casamento. Ela veio pessoalmente a minha casa, com a mãe e com o noivo, convidar-me com invencível insistência. Oh! e foi ela mesma que me impôs esse enorme sacrifício! Prometi ir. Fui. Faleceram-me forças para entrar à capela. Fiquei ao limiar. Ela, quando entrava pelo braço do pai, teve para mim um sorriso de gratidão, e disse: "Devo-lhe a vida, doutor." Amigos, lancemos uma onda de champagne sobre esta primeira pagina do meu breve romance. Pelo amor, amigos, pelo amor! Hoje, a noiva de há vinte anos é uma virtuosa senhora que, se me avista na rua, diz ainda ao marido ou aos filhos: "O doutor! é o doutor!" Entre a viscondessa de hoje e o seu médico de há vinte anos, ergue-te tu, ó generosa mocidade, coroada de rosas e de louros, que me ouviste, que me compreendeste, que me perdoaste decerto!
— Pelo Dr. Súlivan, a mocidade eterna! pronunciou tremula de comoção uma voz.
— Pelo Dr. Súlivan! — repetiu rumorosamente, de pé, copos erguidos, a sabia assembleia.
Houve então um intervalo de extraordinária animação e vivacidade, de comoção profunda. Um romance de amores, de mágoas íntimas e grandes, vinha completar a biografia daquele homem notável. Ele pertencia já a muitas das galerias em que a posteridade costuma admirar o passado: à medicina, à política, à história e à ciência; desde essa noite, ele pertencia também ao romance, a mais agradável de todas as apoteoses. Exclamações, diálogos, abraços, brindes, tudo isso sucedeu como num conto fantástico a essa estranha revelação do Dr. Filipe Súlivan. E à surpresa do que se ouvira, misturava-se já a impaciência pelo mais que ele prometera contar. Como se todos os convivas obedecessem ao mesmo impulso, a pouco e pouco retomaram os seus lugares na mesa da ceia, de modo que a figura do Dr. Súlivan de novo se destacou, naturalmente, na primitiva atitude, coroada dos revérberos fosforescentes dos candelabros.
Ele recomeçou, acendendo negligentemente um charuto, e lançando sobre as primeiras palavras essas perfumadas e tênues nuvens de fumo que para logo denunciam um tabaco delicioso.
— Entre os dois capítulos únicos deste romance medeiam vinte anos, amigos. Durante este longo período envelheceu o protagonista, cujo original tendes presente. Nevaram-se-lhe os cabelos; mas o coração não envelheceu. O coração, posso dizer-vo-lo, atravessou a vida sem conhecer o mal, sem o suspeitar sequer. Não estranheis a apologia. No epitáfio tudo se escreve, e eu estou escrevendo o meu. Perante qualquer outro auditório, seria risível o espetáculo dum velho namorado; para vós não é, que o sei eu, porque vós sabeis apreciar estas delicadas aberrações da sensibilidade, vós, grandes fisiologistas, vós, filósofos distintos, vós, mais que tudo isto, almas nobilíssimas. É o teatro, amigos, um porto de salvação aberto aos náufragos do mundo. Os que não têm sociedade especial, compram um lugar nessa sociedade de todos, e conseguem passar uma noite. Os que da sociedade saíram feridos, e a evitam, fogem-lhe, estando entre ela, no teatro. As bocas inúteis da sociedade, deixai-me assim dizer, os que já se não divertem nem divertem a sociedade, os velhos especialmente, são uma espécie de corpo estranho que o grande mar social arrojou para fora de si. A praia protetora, o refugio, o porto único de todos estes náufragos é — o teatro. Pois bem. Eu compreendi, nos últimos anos, esta verdade, e comecei a frequentar o teatro. Tinha eu lido, por muitas vezes, em outro tempo, que o teatro era interiormente um foco de sensações estranhas, de fascinações especiais, uma nova sociedade, um novo mundo, até. Mas eu ia ao teatro unicamente para gastar uma noite. Nenhum interesse me inspiravam as intrigas de bastidores. Quando o pano descia, acabava para mim o teatro; quando subia, recomeçava. Há três anos, meus amigos, que morreu entre nós uma cantora notável. Todos a conhecestes, todos a aplaudistes, porventura. Ah! ninguém podia vê-la e ouvi-la, e ficar indiferente, silencioso, esquecido dela! Vi-a, no dia imediato ao da sua chegada, no Chiado. Ela ia de trem. Viu o empresário a falar comigo. Mandou parar a carruagem, o empresário aproximou-se, e apresentou-me. Bela, se o era, bela! Bem o sabeis, se o era! Lisboa inteira conserva imorredoura recordação dessa mulher extraordinária pela voz e pela formosura. Fui à primeira recita. Que ovação aquela, amigos, que estrepitosa e espontânea ovação! Tenho ainda nos ouvidos os fervidos rumores dessa festa, que se agitava em derredor de mim, e em que eu tomava parte só intimamente, porque a minha austera posição de médico, e sobretudo a gravidade da minha velhice, me obrigavam à fria compostura dum autômato. Ah! as convenções sociais, meus amigos, o que se perde de vida pelas convenções sociais! É-se novo, há fronteiras que importa respeitar e não ultrapassar. É-se velho, novas balizas, — as últimas — a delimitarem o numero dos nossos passos e a largura dos nossos gestos. Tirai à vida os períodos da infância e da velhice, e vede o que fica, amigos! Eu não faltava ao teatro. Eu esperava com impaciência pela noite. Eu comprei em toda a parte quantas fotografias apareceram dessa mulher adorável. Cerquei-me delas, comparava-as, discuti-as perante o tribunal da minha critica artística, e concluía sempre por achá-las inferiores ao original, que eu adorava. Algumas vezes saí mais cedo de casa para ir vê-la entrar no teatro. Postava-me a distância, a grande distância, disfarçadamente. Via parar o trem, descer o seu vulto, entrar rapidamente pela porta do palco. Ah! como eu vivia de tudo isso, como eu estimava que lhe bisassem os mais doces, os mais delicados trechos de música, para vê-la mais tempo, para a poder ter defronte de mim mais alguns momentos! Se se contra-anunciava um espetáculo, que contrariedade a minha! Que ditosas que seriam as mulheres se pudessem amar, se conhecessem, ao menos, todos os homens que as amam em segredo! E entre as mulheres todas, especialmente as de teatro, se soubessem como às vezes são amadas puramente, loucamente, elas, que estão habituadas a ouvir frases que já não podem enganar quem as diz nem quem as ouve! Eu ouvia falar de ceias que lhe ofereciam, ceias suntuosas e alegres, e das quais alguns de vós foram porventura convivas. Nunca assisti a nenhuma. Um velho num banquete onde a mocidade erguia as taças! E depois, novo que fosse, por Deus, que não iria também! Eu quebraria contra a mesa a minha taça, quando outro homem ousasse levantar um brinde à mulher que eu amava. Uma noite, amigos, entrava eu no teatro e pude, através da aglomeração dos grupos, ler o contra-anúncio afixado no átrio. Por grave doença dela não havia espetáculo! Por grave doença dela! Mas eu era médico, e tinha direito a vê-la! Por grave doença dela! Mas eu era médico, e, permiti-me a vaidade que o amor despertara impetuosamente, diziam que eu era um dos primeiros médicos, e todavia não se lembraram de mim! Tive, porém, um momento de reflexão: havia vinte anos que eu tinha saído daquele mesmo teatro para acudir a uma grave enfermidade que se manifestara subitamente. Quem sabe se aconteceria o mesmo, se procurariam, ao acaso, um médico, e levariam o primeiro que o acaso lhes deparou? E depois, para que? para que quereria eu haver sido chamado? para, como há vinte anos, lutar braço a braço com a morte, sofrer, sofrer, sofrer e, salvando-a, restituí-la à vida, à mocidade, à glória, a todos os que diziam amá-la? Recolhi-me a casa, resignado pela reflexão, mas profundamente triste. Não quis perguntar por ela. O meu orgulho de médico conhecido não me permitia perguntar por uma doente que eu não tratava. Passei a noite inquieto; os curtos sonos que seguiram ao primeiro foram intervalados pela sua doce e dolente recordação. Eu via-a, ora na cena, festejada, aplaudida, disputada por todos: ora morta, amortalhada para a sepultura, pálida, silenciosa, esquecida de todos. E, o que mais era, eu quisera que a realidade fosse esta— ó egoísmo humano! — para que ninguém gozasse uma felicidade que eu não tinha, e para que o meu amor, o único verdadeiro e duradouro, fosse chorar sobre o seu túmulo as primeiras e talvez as últimas lágrimas da saudade. De manhã, pedi com impaciência os jornais. Procurei noticias. Todos diziam que ela estava perigosamente doente. Saí para a rua, sem saber para que e porque. Encontrei logo quem me falasse nela. Foi para isso decerto que eu saí. Mais pessoas, muitas pessoas, as últimas das quais me disseram que ela havia falecido. Ah! que ela havia falecido! Então já não era de mais ninguém! Então realizara-se o meu sonho! Ó natureza humana, que infame que tu és!
E o Dr. Filipe Súlivan por algum tempo escondeu o rosto entre as mãos.
— Não vai sem legenda à sepultura um cadáver ilustre. Parece que a morte não tem direito de roubar os que por algum título se nobilitaram. Em torno do cadáver dela inventaram-se boatos sinistros. O rápido e fatal desfecho da moléstia parece que deu margem à suspeita de morte violenta, e o certo é que, como perfeitamente sabeis, a autoridade competente requereu autópsia. Eu fui convidado para tomar parte nesse ato. Ah! que felicidade essa! Ia vê-la, ao pé de mim, como nunca vi, como poucos talvez a viram! Aceitei, aceitei ardentemente. Fui cedo para o cemitério. Queria vê-la sozinho, beijá-la em segredo, dizer-lhe o que nunca lhe tinha dito. Os meus olhos iam, finalmente, saciar-se de a ver. Quando eu cheguei ao cemitério, não estava ainda ninguém. Ninguém! Estava ela; — ela era tudo para mim! Levantei respeitosamente o lençol, deixando a descoberto a fronte e o colo. Assim era que eu a via no teatro: assim me pareceu bela como então! Mais bela talvez! Mais branca e mais serena. Levemente afastei os cabelos castanhos que se anelavam sobre a testa. Que formosa! que formosa! Curvei-me para ela, beijei-a na face e disse-lhe como se me pudesse ouvir:
— Ah! finalmente! posso dizer-te que te amo! Agora, que estás aqui sozinha, agora, que todos fogem receosos do cheiro da tua podridão, agora te posso eu dizer que te adorei como nunca foste adorada! Já não há vozes de festa e de aplauso em torno de ti, mas há a minha voz, querida, a minha voz e as minhas lágrimas... Pois não vês tu que estou chorando? E quem mais te chorará no mundo a esta hora? Ninguém! Se ainda tens na pátria algum parente que te pranteie, esse mesmo te chorará depois de mim!... Ah! como tu vivias iludida! Pergunta onde estão os que diziam amar-te. Bocejam a esta hora no longo sono da manhã. Eu toda a noite passei inquieto por ti. Eles desvelaram-na no prazer. E todavia nunca me deste um sorriso, nunca soubeste que te adorava! Como arfava nas noites de festa este teu seio formoso! Como se te coloriam as faces! Que turbilhões de vida não revolviam estas tranças! E agora tudo vai para a terra, mas, antes que a terra o receba, tudo eu quero adorar! Não, não irás para a terra, querida, como os pobres e como os estrangeiros. Eu tenho aí um leito de mármore, que é grande de mais para mim. Já lá repousam dois amigos. Para lá irás também. Lá esperarás por mim, que não posso tardar. Pretextarei piedade por uma estrangeira distinta para te fazer esta concessão. Não tive família em vida; tê-la-ei em morto, ao menos. Ah! pobre coração tão calado! O que tu pulsaste, o que tu doidejaste talvez! Não se é nova e formosa impunemente. Agora tudo é silencio e frialdade em ti; aqueçam-te sequer as minhas lágrimas, que são puras e ardentes." E eu via cair uma a uma as minhas lágrimas sobre o coração dela, — aquele coração que eu compraria a peso de ouro, se ela o vendesse. Nesse momento senti passos, e soavam já tão perto, que mal pude disfarçar-me. Era o seu assistente, que está ali...
E o Dr. Filipe Súlivan indicou um dos mais novos médicos, que estavam em torno da sua mesa.
— Há de lembrar-se, doutor, de que estranhou, ao entrar, a minha comoção. "Choro esta pobre mulher, que ninguém mais chora" respondi eu. "Por que ela ninguém choraria também" replicou o Dr. "Como?" "Porque ela, caminhando de festa em festa, de prazer em prazer, não teria tempo de fazer reparo nos que caíam diante de si. E tamanha era a embriaguez deliciosa da sua vida, que a levou a apressar a morte, a escaldar o sangue que lhe refervia no coração em turbilhões aneurismáticos. Ninguém a matou; suicidou-se ela. Era preciso, porém, transigir com o mundo: requeri autopsia." "Cale-se, doutor, por Deus lhe peço!" respondi eu. E não pude continuar... Entravam os magistrados que tinham de ser presentes. O Dr. ofereceu-me o escalpelo; eu dei o primeiro golpe. Nunca senti a mão tão leve como nesse dia. Dir-se-ia que eu não queria magoá-la... O último brinde, amigos, o último brinde! Pelo amor! pela esperança! pela felicidade! É dia; vem rompendo a manhã. Abramos as janelas. Deixemos brilhar o último raio de sol sobre a minha última ceia.
Meia hora depois, dizia-se num grupo de homens notáveis, que esperavam nas salas baixas os seus trens:
— Foi a última ceia do doutor... Fausto!
---
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...