6/04/2019

A velha e o ladrão (Fábula), de Ana de Castro Osório



A velha e o ladrão

Era uma vez uma velha que vivia com o seu netito numa pequena aldeia da serra.

Uma noite acendeu o lume para fazer a ceia e disse ao rapaz que fosse buscar uma alcofinha de ovos que ela tinha guardado debaixo da cama. O rapaz foi, mas, vendo uns olhos a luzir debaixo da cama, começou a gritar de terror:

— Ó minha avó, venha cá ver! Estão aqui uns olhos que metem medo, venha cá, venha cá!

A velha pegou na candeia e foi ver. Realmente encontrou lá um homem com cara de ladrão, mas não se deu por achada. Fingiu que não tinha medo nenhum, dizendo com muito bom modo:

— Eh! não te aflijas, rapaz. É um pobrezinho que se recolheu em nossa casa. Venha cá, irmãozinho, venha aquecer-se ao meu lume que deve estar com muito frio e comeremos todos uns ovinhos que vou fazer para a ceia.

O homem saiu de lá, agradecendo e dizendo que estava ali por causa do frio. Que passara, vira a porta aberta e por isso entrara, mas que não queria fazer mal a ninguém.

A velha deu-lhe toda a razão, desfazendo-se em cumprimentos, apesar de lhe ver uma grande faca debaixo do casaco. Foram para a cozinha, sentaram-se ao lume e cearam todos três.

No fim da ceia disse a velha:

— Agora, meu irmãozinho, enquanto nos não dá o sono, vou entretê-lo um bocado, contando algumas histórias que sei. Como sou já muito velha, tenho visto tanta coisa que podia estar a contar casos um ano inteiro, sem acabar nunca. Olhe, meu pai era muito bom homem, mas falto de paciência para doenças como nunca vi outro. Tudo sofria com muita resignação, menos uma qualquer doença, por pequena que fosse. Então custava-nos muito a aturar, coitado! Um dia apareceu-lhe um tumor que muito o atormentou. Gritava constantemente. Já não o podíamos ouvir e fomos com ele à cidade consultar o médico. Como o tumor não estivesse ainda bom para ser lancetado mandou-nos lá voltar daí a dois dias. Passados os dois dias voltamos à cidade, e todo o caminho fomos a pedir ao nosso pai que tivesse paciência, que não gritasse porque era uma vergonha. Primeiro, esteve muito bem; mas logo que o médico lhe levantou a pele com a ponta da lanceta foi uma gritaria espantosa: "Aqui del-Rei! Aqui del-Rei! Aqui del-Rei que me matam!...”

E a velha gritava com quanta força tinha.

O homem, muito aflito, dizia-lhe:

— Senhora, não grite tanto que lá fora os vizinhos podem ouvir.

— Não há dúvida, meu irmãozinho. Já tenho contado esta história a mais hóspedes que têm aqui dormido e a vizinhança sabe o que é. Voltando ao meu pai: lá o acomodamos conforme pudemos para o médico espetar a lanceta. Se ele não fosse tão desinsofrido era só uma dor, assim foi mil vezes pior! Quando o médico enterrou a lanceta, o senhor nem pode imaginar o que ali foi! Parecia o dia de juízo uma gritaria assim: "Aqui del-Rei que me querem matar! Acudam-me! Acudam-me"

E a velha gritava com toda a força dos seus pulmões ainda vigorosos.

O homem, atrapalhado e aflito, dizia:

— Não grite assim, tiazinha, olhe que podem ouvir!

— Isso sim! Descanse, que não há perigo. O meu pai, coitado, gritou muito, mas o pior foi ainda quando lhe espremeram o tumor! Já se vê que não podia ficar assim e tinha de ser espremido. Não imagina! Então é que foi o bom e o bonito!

E a velha pôs-se a berrar com toda a força:

— Acudam-me! Aqui del-Rei que me matam! Aqui del-Rei!...

Ainda não tinha acabado e já a vizinhança lhe batia à porta perguntando:

— Que é isto, vizinha, em que aflição se vê?!

Ela, muito descansada, foi abrir e respondeu alto:

— Não é nada, não é nada! Então os vizinhos apoquentaram-se? Ora não há, uma coisa assim! Era eu que estava contando a este irmãozinho a história de meu pai.

E muito baixo foi dizendo:

— Agarrem aquele homem, que é ladrão. Estava debaixo da minha cama e traz uma grande faca no cinto.

Os vizinhos entraram e prenderam o homem que se não pôde defender, por ser uma coisa feita de surpresa. Foi levado para a cadeia e guardado à vista pelo povo até ao outro dia o entregarem na cidade onde mais tarde foi julgado e condenado, porque na verdade era um grande ladrão.

E foi assim que a velha salvou o seu netito e se livrou a si mesma da morte e do roubo, mercê da sua coragem, sangue frio e muita esperteza.
 
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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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