6/04/2019

Esperteza de um sacristão (Fábula), de Ana de Castro Osório



Esperteza de um sacristão

Numerosa quadrilha de ladrões assolava uma terra, enchendo de espanto e terror todo o povo, roubando, matando e devastando quanto encontrava.

As pessoas principais tinham fugido, e os mais afoitos não se atreviam a pôr o pé na rua mal tocavam as trindades, pois os malvados não respeitavam velhos nem crianças, e muitas vezes até arrombavam as portas para roubarem as casas.

Chegou a tal ponto o descaramento que fizeram quartel-general na Igreja da freguesia, e era ali que repartiam o fruto da sua rapinagem.

O Sacristão, que sabia disto, andava desesperado e todos os dias se queixava ao Abade, mas este encolhia os ombros e dizia que se calasse, não viessem os ladrões a fazer-lhe pagar caro o atrevimento.

O bom do homem, porém, noite e dia não pensava senão no modo como afugentar os malvados e dar-lhes ainda uma boa lição.

Quanto mais pensava menos encontrava. Mas por fim, quando de tão desanimado até nem comer podia, veio-lhe uma ideia que lhe pareceu boa.

Foi logo ter com os seus maiores amigos, o Sapateiro e o Coveiro daquela terra, e todos três combinaram o negócio, debaixo do mais absoluto segredo.

Uma tarde, meteram-se na Igreja, muito disfarçadamente, pela porta da sacristia, e foram colocar-se nos lugares já combinados: o Sacristão, no coro; o Sapateiro, no púlpito; o Coveiro atrás do altar-mor.

Quando veio a noite abriu-se a porta principal e os ladrões entraram com toda a arrogância e descaro, fazendo grande motim. À ordem do capitão depuseram todos as armas e, sentados no chão, começaram a dividir, muito satisfeitos, as sacas de dinheiro.

Quando mais entregues estavam à sua tarefa, grita do coro, com todo o arreganho, o bom do Sacristão:

— Venham os defuntos!

E logo perguntou, do púlpito, o Sapateiro, com voz tão cavernosa que os ladrões se levantaram todos com os cabelos em pé, arrepiados de susto:

— Poucos ou muitos?!

Por detrás do altar-mor respondeu o

Coveiro, com voz ainda mais lúgubre:

— Todos juntos! 

Não foi preciso mais. Os ladrões, julgando ver as sepulturas abertas e os defuntos todos a persegui-los, deitaram a fugir, deixando joias, dinheiro e mais valores que tinham roubado, só parando no meio do campo bem longe da Igreja.

Os três amigos saltaram do esconderijo, a rir às gargalhadas do susto dos bandidos, e trataram de fazer entre si as partilhas da bela maquia.

Ora o Sapateiro era muito avarento, e lá por se ver senhor de tanta riqueza não esqueceu que o amigo Coveiro lhe pedira uma vez um tostão.

Logo que o bolo se repartiu irmãmente, voltou-se para o companheiro e disse, com o seu ar grave e sentencioso:

— Agora, meu amigo, passa para cá o meu tostão.

Um dos ladrões, que tinha vindo, por ordem do capitão, espionar a Igreja, para saber a causa de tanto susto, ouviu o que disse o Sapateiro, e fugiu espavorido, nem sequer olhando para trás, imaginando-se perseguido por todos os mortos que ele e os seus companheiros tinham feito.

Quando chegou ao pé do capitão e do resto da quadrilha, ia mais morto do que vivo.

— Que há de novo? Que te aconteceu, que vens tão enfiado (perguntaram)?!

— Fujamos, fujamos sem demora, que ainda aqui não estamos em segurança. Eles são tantos, tantos, que da nossa riqueza tamanha só coube um tostão a cada um. — Os ladrões não quiseram saber mais. Fugiram para muito longe. E nem queriam ouvir falar naquela terra de onde os defuntos os tinham corrido.

O povo cobriu de bênçãos os três amigos, o Sapateiro, o Coveiro e o Sacristão, graças à esperteza e arrojo dos quais se viu livre de tamanho flagelo.

Viveram muitos anos em boa paz e harmonia, chegando a ser os mais ricos e influentes personagens da terra.


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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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