6/06/2019

As boas madrinhas (Conto), de João Grave



As boas madrinhas

Sentada à lareira, a ingênua velhinha, de faces engelhadas e os olhos cansados de tanto mundo terem visto, relembra os tempos suaves da sua infância, os idílios meigos e doces, as ilusões da sua juventude que uma clara beleza iluminava; e, por um momento, como num mistério sagrado, as coisas remotas acordam da sombra e ressurgem para a vida. Ela sorri, enlevada. A sua cabeça, duma inocência ideal e tão branca que dir-se-ia banhada pelo cândido luar duma noite inteira, desenha-se finamente na meia tinta do casebre, dando a impressão duma Madona, de Paolo, emergindo, alva como um lírio, duma fotosfera de ouro ardente...

Nos seus dedos magros canta o fuso e na sua roca, presa da cinta, quanto linho imaculado! A humilde fiandeira vai tecendo o bragal duma neta que é noiva e que traz sonhos, como rosas, no coração namorado. Que os lençóis sejam macios e que as saias cheirem a camoesas, ao feno dos prados e às altas ervas das várzeas!...

Hoje é velha, mas na mocidade foi muito formosa. Os seus cabelos fulvos punham-lhe uma auréola sidérea à volta da fronte juvenil, e os seus olhos, que as lágrimas queimaram e amor- teceram, pareciam duas violetas. Vai tão longe a sua meninice! Todas as imagens mortas se perdem num brando e religioso crepúsculo, cheio de nostalgia e de amarga saudade. Antigamente, nos bailaricos, pelos eirados batidos de lua, as suas cantigas eram sempre as mais belas, e nas romarias, nos arraiais ruidosos, dava gosto vê-la dançar, lançando à vibrante aragem das manhãs a sua voz tão pura como o som dum lúcido cristal que se parte.

O fuso anda num rodopio, fiando as estrigas alvas. Ela há de vestir a neta, na hora inefável e romântica do seu noivado, pôr-lhe na capela angélicas flores!...

Com o olhar perdido na fogueira crepitante, evoca tudo o que foi amado e tudo o que morreu. E o céu fulge de estrelas como um vergel quimérico e a lua descansa na paz inviolável da noite. Rodeiam-na os netos, criancinhas pobres, de caras chupadas e sem viço e as mãos cobertas de chagas. O lume consola-os, aquece-lhes o sangue, toca-lhes as faces duma cor rosada. A geada cai sobre os telhados que alvejam à claridade lunar e as pombas adormeceram, arrulhando, nos pombais. A toada festiva dum sino vem de longe, relembrando um hino do Catolicismo primitivo. É o Natal que chegou. Para a igreja passam ranchos, cantando à desgarrada, ao gemer das violas; e a velhinha, parando de fiar, conta o nascimento de Jesus, filho de gente sem vinha ou rincão de terra, num curral de Belém, sobre as palhas:

— Quando ele veio ao mundo, logo as vaquinhas o aqueceram com seu bafo morno, porque estava muito frio...

— Como foi isso, avó?... Diga! — pedem os pequenitos, puxando-lhe pelos braços ressequidos como galhos de árvores que já tivessem florido e frutificado.

Todos os anos ela diz a lenda amorosamente crista do louro Nazareno, a fuga da Virgem para o Egito, montada na burrinha, e São José adiante, abrindo o caminho com seu bordão de açucenas, através cie sarçais e de montes ermos; mas as crianças gostam de ouvir a história piedosa dum Jesus como pobrezinho, que alumia de sonho as suas almas purificadas. E a velhinha começa:

— Ora, havia em terras que ficam no cabo do mundo, uma mulher sem mácula e sem pecado, que não trazia arrecadas nas orelhas nem calçado nos pés, casada com um carpinteiro muito bom e que a tratava com o maior respeito. Ora, estando ela uma tarde, à porta do seu casal, remendando roupa, desceu do azul um anjo que veio bater as asas de neve perto do rosto de Maria... Porque ela chamava-se Maria, como tu, minha filha...

E deu um beijo na neta que estava para casar e que a escutava com enternecimento, talvez orgulhosa de ter o mesmo nome da bondosa Mãe dos homens.

— Ora, o anjo — continuou ela — veio anunciar à Virgem que ela daria à luz, em breves tempos, o Redentor, que por nós derramaria o seu sangue, padeceria muito e seria- crucificado num madeiro. E logo a Virgem se recolheu e foi dizer a boa nova a São José, que murmurou: “Seja feita a vontade do Senhor. “ Daí a meses, o Deus Menino nascia e a terra brilhava tanto que cegava.


Espalhou-se a notícia e nesse ano as searas deram mais trigo e a chuva não faltou...

A velhinha treme de emoção, estendendo para o fogo, que sobe até ao telhado, numa língua vertiginosa, as suas mãos encarquilhadas.

— Quando Jesus veio a este vale de lágrimas, um astro, desprendendo-se, deixou um rasgão de luz nos céus; e foi esta luz que guiou os Santos Magos à cabana, onde o Menino dormia, entre a jumentinha e os bois, o seu primeiro sono.

— E o gado não fazia mal a Jesus?

— Qual? Se era tudo por encanto, tudo por ordem de Deus!

Outra vez retoma o fuso e reata o fio quebrado das suas meditações. Também ela teve o seu Natal, também ela! À meia-noite, de volta do templo com seus dourados góticos, os altares resplandecendo entre as jarras das rosas frescas, de fumos de incenso toldando as naves silenciosas e o órgão tocando trechos triunfais de alegria e de glória, a velhinha simples rezava muito, com unção e fé. Mas o fuso tomba morto no chão, e ela exclama:

— Vocês sabem? A Virgem, que quer muito aos pequeninos, manda nesta noite as boas madrinhas visitar os casebres e os berços. Quem deixar os sapatos no calor do borralho, tem nos pela madrugada atochadinhos de prendas...

— E que prendas são, avó?

— Dinheiro, relógios, comboios... Tu que queres, João?

— Eu cá, um ror de vinténs.

— E tu, Rosalina?

— Uma boneca muito grande...

— Pois, não se esqueçam. Vocês verão! Há um minuto de sofrimento entre a ninhada... Eles, coitadinhos, nunca tiveram sapatos. O pai é cavador e mal ganha para os sustentar com pão duro; e a mãe está entrevada há anos, a chorar no leito.

— E são precisos sapatos, avó?

— Pois, sem sapatos, não há prendas. Onde querem que as boas madrinhas as guardem?...

Foram-se deitar, muito tristes. Sapatos, só os filhos dos ricos os têm, de veludo, bordados a ouro, de arminho, de penas! Eles nunca os possuíram — nem pelas procissões! E perder tantas riquezas...

Mas, durante o seu sono profundo, um anjo veio diante deles, trazendo uma palma de luar e ouro nos seus dedos celestiais, e a cama em que repousavam juncou-se de jasmins e lilases e violetas...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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