6/04/2019

Casa de meu pai (Fábula), de Ana de Castro Osório



Casa de meu pai

Era uma vez um rapaz, muito pobre e humilde, que se apresentou à porta da quinta de abastado lavrador, pedindo trabalho.

Como faltasse, por acaso, um dos criados, foi contratado para o serviço. E depressa caiu na boa graça de todos, porque era ladino, serviçal e bem-apessoado.

À noite, quando vinha, com os companheiros do trabalho, para a lareira, esperando a ceia, todos se admiravam de lhe ouvirem dizer:

— Casa de meu Pai, casa de meu Pai! Mesas de engonços, candeeiros de trinta luzes, garfos de cinco dentes!... Enquanto ele era vivo, tudo era para trás, para trás!...

Depois da sua morte, era tudo para diante, para diante!...

Ora o lavrador tinha uma filha, nova e bonita, a quem não passava desapercebido coisa alguma do que fazia e dizia o moço.

E sempre que lhe ouvia aquela prédica, ficava muito intrigada, sem saber o que pensar. Até que, um dia, se decidiu, e foi contar aos pais tudo quanto ouvira daqueles desabafos do novo criado.

Os pais não ficaram menos intrigados. E, cheios de curiosidade, foram com ela esconder-se perto da lareira, onde o rapaz chegara para se aquentar. E ouviram-lhe o mesmo desabafo:

— Casa de meu Pai, casa de meu Pai! Mesas de engonços, candeeiros de trinta luzes, garfos de cinco dentes!... Enquanto o meu Pai foi vivo, tudo era para trás, para trás!... Depois que ele morreu, tudo era para diante, para diante!... 

O lavrador e a mulher pensaram muito no que as palavras do moço queriam dizer. E convenceram-se de que ele era bastante rico, e vivia numa grande herdade, com fartura crescente, pois ia tudo para diante, para diante!... Convencidos ambos disto, logo resolveram que seria assim um bom casamento para a filha. Como a rapariga não achasse má lembrança a dos pais e até se mostrasse agradada do rapaz, falaram a este que, da melhor vontade e com alegria, disse que sim.

Depois de casados, perguntou-lhe a noiva:

— Agora hás de tu explicar-me o que queriam dizer aquelas palavras que estavas sempre a repetir: "Casa de meu Pai, casa de meu Pai! Mesas de engonços, candeeiros de trinta luzes, garfos de cinco dentes...

Enquanto meu Pai foi vivo, tudo era para trás, para trás!... Depois que ele morreu, tudo para diante, para diante".

— Então ouviam os meus desabafos (exclamou o rapaz, a rir)? E não sabes o que querem dizer?! É bem simples. É que na minha casa éramos pobrezinhos. E porque não tínhamos, sequer, mesa para comer, púnhamos o prato sobre os joelhos, que eram as mesas de engonços. Candeeiros de trinta luzes eram as pinhas, a arder na lareira. Garfos de cinco dentes eram os dedos, porque não tínhamos talheres. Era tudo para trás, para trás, quando o meu Pai era vivo, porque ele ia ao mato buscar lenha, e fazia grandes fogos na lareira. E todos nos arredávamos para trás, por não podermos aturar o calor. Depois que meu Pai morreu, já não tínhamos quem fosse ao mato buscar a lenha. E assim, engatinhadinhos com frio, todos nos chegávamos para diante, para diante, ao borralho do brasido. Quando encontrei o bem e a fartura desta família, lembrava-me da casa de meu Pai e da miséria que lá sofria e para meu bem me obrigou a vir procurar fortuna por estes mundos e a melhores terras. Eu sinto-me feliz por ter encontrado esta casa e uma santa mulher, tão amável e desinteressada com tu, para aceitares por marido um pobre trabalhador, até aqui tão desamparado sempre da sorte!...

A rapariga ficou um pouco desapontada. Mas, como gostava do noivo, não fez má cara e acabou por lhe dizer, a rir-se, que também para ela os desabafos, que ninguém entendia, lhe tinham dado a boa sorte que esperava.

Os pais da rapariga, quando ela, depois, lhes repetiu, a rir, a explicação pedida, é que deram por paus e por pedras, esconjurando o espertalhão. Mas, por honra da firma, nada quiseram dar a perceber. E, como viram a filha satisfeita e feliz, e o genro sempre dado ao trabalho, bom administrador, e para eles amigo e respeitoso, acabaram por lhe entregar a direção da sua lavoura.

Assim o moço, pobre mas trabalhador, tornou-se um dos grandes lavradores daquelas redondezas, bem visto e querido por todos, como se fora antigo morgado ou fidalgo de linhagem.

E quanto mais tempo ia passando e mais cresciam os seus haveres e a consideração do mundo, mais comovido e grato repetia o novo lavrador:

— Casa de meu Pai, casa de meu Pai! Mesas de engonços, candeeiros de trinta luzes, garfos de cinco dentes!... Em vida de meu Pai, era tudo para trás, tudo para trás!... Depois que ele morreu, era tudo para diante, para diante!...


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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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