6/16/2019

Coração de velho (Conto), de Mário de Alencar



Coração de velho

Sales assistiu ao passamento da mulher, com os olhos limpos e sem outra comoção exterior que a de um espetáculo desagradável.

Ao começar a derradeira agonia tinham ido chamá-lo na sala de visitas. Veio sem pressa, parou ao pé da cama, e deixou-se ficar como estranho a tudo, menos à dor dos filhos, um rapaz e uma moça, que choravam e exclamavam, de joelhos, debruçados à borda do leito.

Cessada a agonia, compuseram o rosto da morta. Sales pôs os olhos nela alguns instantes, apertou com força o filho e a filha ao peito, recebeu passivamente o abraço das senhoras que ali assistiam, e voltou à sala. Sentou-se na mesma cadeira de balanço a que tinham ido buscá-lo e em que pernoitara as duas últimas noites da moléstia da mulher.

Depois de acender um charuto, aquietou-se, esperando que amanhecesse para providenciar sobre o enterro.

Como aquela morte era esperada desde muito, Sales já tinha à mão, numa gaveta da secretária, o dinheiro para as despesas. Entregou-o horas depois a um parente que se incumbiu da diligência, e permaneceu naquela postura, calado, até começarem os aprestos da câmara mortuária. Retirou-se, então, para a sala de jantar e ali recebia os pêsames dos que iam chegando. Erguia-se, retribuía o abraço, sem mais palavra que a de um agradecimento sumido. Se não tinha pesar expansivo, também a sua atitude não destoava da situação: era recolhida e grave.

Podiam notar-lhe os estranhos a serenidade da fisionomia; os amigos e parentes, ou não reparavam na expressão de seu pesar, ou advertiam que não era de esperar outra coisa naquele transe. Todos lhe conheciam o ânimo áspero, o tom secarrão das palavras e do semblante.

Para os mais íntimos não ficava escondida a sua bondade; sentiam-na frequentemente, mas externava-se ela de tal jeito, que aparentava indiferença ou insensibilidade. O mesmo sorriso nele tinha à primeira vista o ar de carranca, e os gracejos, que gostava de fazer, mais semelhavam ralhos.

A sua familiaridade requeria iniciação e costume para ser entendida e estimada, sobretudo nos últimos anos, quando a velhice e os aborrecimentos da vida foram agravando o humor nativo. Impressionava particularmente o seu teor doméstico que é o espelho fiel da pessoa.

Chefe de família pontual, mantinha sem desvios o conforto e o passadio da casa, não faltava aos seus deveres de presença, mas era rude no trato, mais do que com a gente de fora. E essa rudeza piorava à medida que o sentimento devia pedir-lhe brandura, pela enfermidade da mulher.

A enfermidade prolongou-se por anos, sem agravação e sem pausa, mas com o efeito, peculiar às longas moléstias crônicas, de mutação da natureza no aspecto, nas tendências e nos hábitos pessoais.

Nada escasseava à enferma em medicina e em satisfação dos seus caprichos mórbidos, e por parte dos filhos em carinhos. Mas a impaciência de Sales chegou ao extremo: ele já não podia dominar os impulsos de irritação, que, no parecer dos amigos, tinha por causa a ineficácia do tratamento da mulher, mas que na opinião dos demais, resultava da própria presença da mulher. Evitava-a, quase que não lhe dirigia palavra, e respondia-lhe de través, breve e desabrido. Ela percebia-o, queixava-se, e era pior. Acabou conformando-se, afinal resignada, porque a não ser o carinho e delicadeza do marido, tudo mais ela tinha para contentar as veleidades e necessidades de enferma.

Na verdade, não era aprazível a companhia dela: não havia excentricidade molesta que lhe não ocorresse e ela não praticasse caprichosamente; e quanto mais queriam dissuadi-la, tanto maior era a sua pertinácia. A seus cacoetes e caprichos, obedeciam os filhos, penalizados pelo que lhes custavam em paciência ou aborrecimento, ou vexados, quando assistiam estranhos; e nessas ocasiões procuravam atenuá-las com disfarce. Sales é que não disfarçava nunca o seu vexame; se não estava em veia de indiferença, rompia em comentário rude e expressão oblíqua, ainda mais pejorativa; e com um ela ou esta senhora, ditos em presença da mulher, expandia mais desdém do que num desaforo direto.

Durou anos esta situação, e assim, ao agravar-se desenganadamente a doença, a expectativa de todos era o alívio que traria aquela morte, para a enferma e para o marido. A atitude de Sales no transe, não dava pois que estranhar a ninguém, e apenas impressionava pela sua gravidade silenciosa, porventura triste.

O que surpreendeu e espantou, e ninguém explicava, foi o sentimento de Sales no dia imediato ao do enterro e pelo resto da vida. Tinha, como os outros, dormido longas horas depois da vigília de noites consecutivas. Levantado e banhado, entrou a percorrer a casa como um sonâmbulo, tendo uma expressão do olhar a um tempo indagador e distante. Parecia ir se compenetrando da realidade, que o surpreendia a espaços de improviso; era como se lhe faltasse aqui e ali o chão diante dos pés, e ele sustivesse a marcha, indeciso entre o retroceder e deixar-se cair abandonadamente. Demorava-se mais no quarto da morta, já desguarnecido da cama e dos últimos vestígios da enferma.

Os vivos apressam-se em apagar os restos da morte. Era agora um quarto apenas desocupado; os cabides sem roupas, o lavatório sem água; nenhum já dos muitos frascos de remédios, e sobre a cômoda e a mesa não mais aqueles objetos de uso quotidiano. Aparentemente tinha mudado tudo; não se diria que na antevéspera ainda tivesse pousado ali o corpo dela, e que ela houvesse ocupado tantos anos aquele aposento. Mas na parede, próximo à cabeceira da cama ausente, pendiam ainda alguns quadros; alguns de santos, os retratos dos filhos, pequeninos, e o do marido.

Sales deteve-se a olhá-lo, e a rever-se naquela figura antiga de moço. Depois de uma contemplação muito longa, em que o pensamento abstrato tinha a maior parte, sentou-se junto à mesa-escrivaninha, móvel de velho modelo e muito usado. Lembrou-lhe que fora um presente seu à mulher. Examinou-a, lentamente, indo em espírito até à data, e ficou de olhos parados, a cabeça às mãos e os cotovelos sobre a mesa...

Os filhos acharam-no ali em total absorção. Sales pediu as chaves das gavetas, e começou em companhia dos filhos a pesquisar os objetos. Em contraste com eles que choravam, Sales conservava no semblante o ar de abstração.

Os objetos eram, entre coisas de pouco preço guardadas por amor do hábito, joias ou pequenas lembranças, cartas, retratos de família, alguns em daguerreótipo. Entre estes, um da morta; representava-a moça e recém-casada. Sales alvoroçou-se com o achado, e indiferente aos outros objetos e papéis que os filhos iam revolvendo nas gavetas, conservava o retrato nas mãos e fitava-o numa concentração profunda.

Em torno dele tinha-se desvanecido a atualidade. Não via os filhos, parecia não ter a consciência da sua própria condição presente. O espírito remontava um passado de quarenta anos, e recapitulava os meses, e os dias, e impressões, e imagens apagadas, desfeitas no decurso do tempo. As que tinham prevalecido, nos anos recentes, apagavam-se agora; moléstias, vexames, incompatibilidade de gostos, irritações, a mesma figura da enferma, nada lhe ficava mais na retina e na lembrança, reocupadas totalmente por aquele daguerreótipo em que os seus olhos pareciam espelhar-se e configurar a vida. Achou assim e recompôs a sua verdadeira realidade, da qual os últimos anos, como um parêntesis importuno, eram de súbito riscados. Houve um momento em que Sales já não pôde conter a comoção; e chorou num pranto convulso, estertorado, exclamativo, em que se desatava com ímpeto um sentimento represo e acumulado.

Os filhos olhavam-no, surpreendidos daquele choro tardio, e não entendiam a diversidade das impressões, porque a imagem do daguerreótipo, posto que da mãe, era de um tempo anterior ao sentimento deles. A imagem que amavam e choravam, era outra, a da mãe doente, a qual não se gravara em fotografia, mas lhes perdurava na memória. Daí o desencontro das mágoas, e o espanto deles, sem lágrimas, ante as lágrimas do pai; era o mesmo o objeto do sentimento, mas lembrado e visto em fases diferentes e por olhos diversos.

Outra diferença é que na dor dos filhos não havia travo de arrependimento, que a agravasse. Tinham amado, e servido a mãe com devoção contínua; a consciência de haverem feito o que deveram e puderam, e a certeza de que a moléstia fora incurável, suavizavam-lhes o desgosto; tinham-se resignado gradualmente à ideia de vê-la morrer, e até a morte lhes parecera desejável como alívio para ela e para eles. A saudade era-lhes, pois, antes um sentimento de repouso que de tortura. Em Sales misturava-se o remorso... Não, não era bem remorso; era outra coisa e até contrária.

Havia na sua consciência e na memória dele uma solução de continuidade; em presença da enferma tinha-se-lhe aos poucos apagado a imagem anterior da mulher amada: a irritação do humor e o aborrecimento constante determinado pelos cacoetes da moléstia apressaram a obra do tempo. Subtraída pela morte a figura desagradável e recente, que lhe ocupara a retina, o seu esforço de visão mental retrospectiva já não recompunha as feições últimas e superficiais; o que vinha surgindo era a impressão profundamente gravada, e apenas adormecida, a imagem da mulher moça, casada ao seu coração e à sua existência, imagem indecisa a princípio, mas súbito refeita integralmente por aquele daguerreótipo.

A sensação foi a de ter dado um salto no tempo: faltava a acomodação dos extremos entre aquela vida e esta morte: não havia pontos de transição e de apoio à habituação do sentimento: o velho marido via-se como um viúvo da esposa recente, e sentia renascer o pleno ardor da mocidade, sem desilusão, porque era toda mental.

Em consciência ele não tinha vivido os anos de permeio entre o início da enfermidade da mulher e a morte desta: ele não envelhecera, nem ela mudara do que lhe aparecia no daguerreótipo. A única realidade era a morte dela, que assumia agora o aspecto de um repentino desaparecimento, e a horrível sensação de um vácuo; e Sales era como um ressurgido, espantado do que não via e não tinha, e em ânsia aguda de reaver o passado. O mais não lhe importava nem existia.

Por não compreendê-lo, a esse imprevisto sofrimento, explicavam-no pelo remorso. Era a explicação mais fácil, e a mais aprazível aos outros; e foi alguns meses assunto de conversa dos parentes e conhecidos. Mas perdurando o sentimento agudo mais do que pedia e consentia a curiosidade alheia, já não pareceu bastante atribuí-lo ao remorso. Concluíram que era manifestação mórbida: era amolecimento cerebral, e ficaram contentes os que não podiam crer nessa extraordinária e tamanha saudade.

A Sales era indiferente o que pensassem os outros; nem atentava na impressão que ia deixando com os seus modos e as suas ideias extemporâneas. Vivia todo absorto na sua pena, cultivada quase que a capricho. Do daguerreotipo mandara fazer uma ampliação colorida e tinha-a à parede no quarto de cama: na mesa da cabeceira ficava pousado o original, e na medalha do relógio trazia uma miniatura.

Necessidade imperiosa dos olhos que não se fartavam da contemplação querida, ou porventura mera imitação do costume de todos os namorados; aqueles retratos reproduzidos ainda não eram suficientes para o seu desejo saudoso. Falava-lhe o passado à imaginação em todos os pormenores e acidentes extintos; e ele precisava recompô-los e reavivá-los.

Um dia, deu consigo enfrente a um prédio antigo, em arrabalde distante. Era a chácara, que o sogro habitava quando ele, ainda estudante, conhecera e namorara Amélia: aí fora noivo e realizara o seu casamento.

Guiava-o, como a um sonâmbulo, o puro instinto. Havia trinta anos que não revia aqueles sítios. Não lhe foi porém difícil identificar o prédio, apesar da muita alteração nos arredores, edifícios que antes não havia na vizinhança, o calçamento da velha rua, em suma o ar novo da cidade espraiada até o bairro que no seu tempo tinha a aparência campestre de subúrbio.

A chácara conservara-se, e a casa era ainda a mesma casa, grande e forte, assentada sobre a eminência do terreno, entre mangueiras frondosas. Sales passou e repassou vagarosamente, espiando e observando tudo através do gradil. Passavam e repassavam as lembranças revividas. O seu olhar ampliava-se e circunscrevia o tempo. Repetiam-se os episódios do namoro. Reviu a moça que o esperava à tarde, quando ele ensaiava os seus passeios de curioso do amor... Não a cortejava a princípio: olhavam-se, e veio o primeiro sorriso, o primeiro cumprimento, a primeira palavra balbuciada. Surgiu então um amigo providencial que promovera a apresentação: e dias depois ele começou as suas visitas. Com que alvoroço subira aquela rampa na tarde do pedido! Amélia estava de branco: esperava-o na janela do sobrado, na última à esquerda. Sales reviu exatamente a figura da moça, que lhe sorria... Abriu o portão, transpôs a rampa até a esplanada fronteira à casa, bateu palmas.

Ouviu vozes de homem, choques de bolas de bilhar na sala da frente, tal qual como no outro tempo. Um dos homens, segurando um taco, assomou à janela: — Quem é?

Deparando com a figura de Sales, desconhecida, mas acatável, saiu ao jardim ao seu encontro. Sales ficou um instante perplexo.

— É o dono da casa? 

— Sim, senhor, que deseja?

— Queira desculpar-me: parecerá estranho o meu procedimento, nem sei como lho explique. Morei nesta casa há muitos anos, aqui fui feliz, e sinto uma necessidade invencível de rever esta chácara. Permite-me o senhor que eu a percorra alguns momentos?

Ao dono da casa afigurou-se na verdade uma extravagância; mas sobresteve a negativa, atado pela velhice e a aparente dignidade de Sales, sobretudo pelo luto que o cobria. Não cogitou do sentimento que ditava o pedido; nem quis interrogar nada, para não interromper a sua partida de bilhar.

— À vontade, pode ir vendo a chácara, respondeu ele — e voltou para a sala.

Tanta indiferença foi um choque para Sales, que presumia achar um acolhimento de simpatia ao seu desejo. Pensou no que faria ele, invertidos os papéis. O mundo era a sua sensação. Como é que os outros não lhe viam nem compartiam a angústia? Doeu-lhe a frieza do trato, como uma desconsideração: e o atentar nisso valeu para atenuar o efeito da realidade evocada.

A visão que ia retraçando a saudade, dava-lhe tamanha dor, que ele sentia no peito o ímpeto do choro, a romper em soluços: mas pôde conter-se e as lágrimas só lhe molharam os olhos. Deu volta à casa, e chegando à frente, aproximou-se da janela da sala para agradecer ao morador. Este acudiu ao som dos seus passos.

— Muito obrigado; volto, não sei se aliviado, ou mais aflito.

E, cortejando, dirigiu- se ao portão.

O dono da casa ficara à janela a olhá-lo, e com ele os parceiros do jogo, todos curiosos do velho estranho. Um desses, apesar do porte e do aspecto de Sales, sugeriu a hipótese de que fosse um ladrão, outro porém julgou conhecê-lo de vista e de nome: e desfez a possibilidade. E debatido o alvitre entre risos e chacotas, concluíram que o caso era apenas o de um velho gira.

Sales chegava ao portão e voltava-se para prender o batente: pôde ver o grupo de faces risonhas que o comentavam, e adivinhou a causa do riso. Partiu amesquinhado e pungido; mas logo prevaleceu a consciência maior do passado revivo.

Nessa tarde fez os seus primeiros versos; e escreveu-os chorando. Nunca se ensaiara em literatura, mesmo na idade, em que a poesia parece ser a língua universal. Sales ignorava as regras e os segredos da técnica: mas o sentimento supriu a ciência; o coração dava o ritmo; e excessos ou deficiências da métrica ficariam despercebidos, e não seriam maiores que as costumadas liberdades dos poetas.

Dos versos feitos não tirou Sales vaidade, mas só contentamento de ter exprimido a sua voz interior: era a oração escrita do seu culto; e só por isso gostou de mostrá-los a um ou outro amigo, que ele supunha amigo. Correu a novidade transmitida em malícia crescente.

E não houve mais duvida sobre o estado mental do viúvo. Nos poucos anos que viveu, a dor moral que o levantava em si mesmo, diminuía-o no conceito dos outros. Os que mais lhe davam, e eram os parentes, sentiam compaixão por ele; mas compaixão exclui apreço e amizade. Tal é a necessidade da contingência humana. Fora da compaixão, havia o comentário derrisório.

Qual é a fronteira do riso? Tudo lhe está dentro das linhas, nessa região da galhofa, infinita como o nada. Um pobre velho gira é coisa vulgar e indiferente: mas a distinção pessoal é o sainete de uma caduquice. E assim o velho Sales, coberto do seu luto, fechado na saudade, fazia sorrir e rir, porque sabiam que ele chorava e fazia versos de saudade da mulher morta.

E ainda se afigurou extravagância caduca o seu derradeiro desejo de que lhe fechassem no esquife os retratos dela. Fecharam-nos e esqueceram-no, sem haverem entendido aquele caso de mágoa, entretanto bem simples.

Em Sales o coração não acompanhara a idade do corpo: tinha hibernado longos anos sob o gelo da doença da mulher. Reassomando à atividade, abrochou como a planta dos Alpes; e só refloriu em saudade, porque a terra em volta era estéril e fria para outras flores. Coração de velho, tinha a raiz e a energia na mocidade, que só ele podia reviver em pensamento e os outros ignoravam e não sentiriam jamais.


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Mário de Alencar (Contos e Impressões, 1920)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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