6/16/2019

O Dentista (Conto), de Nelson de Senna




O Dentista

— É a melhor profissão que existe, dizia lá na minha terra de nascimento, o chistoso e respeitável tio Antero, referindo-se a esses curandeiros lendários da boca do próximo e também das meninas bonitas.

E tinha razão de sobra o bom do velho, quando com os seus botões se convencia cegamente de que o dentista é o oficial mais brejeiro de quanta profissão boa e lucrativa existe...

Tal asserto se confirma cabalmente na hipótese, sempre comum, do homem dos boticões e cautérios ser um rapazote insinuante, de maneiras calculadamente afáveis, de pequeno bigode negro e perfumado, tendo sempre um fino e contraído sorriso emoldurado nos lábios, através dos quais se distingue a mais bem cuidada e brilhante dentadura natural.

Não se negue, porém, que por ser velho, feio ou grosseiro o dentista, deixe ele por isso de exercer proveitosa, hábil e velhacamente, como os seus demais colegas, a profissão a que se entregou.

Perdoe-se-me toda essa arenga, que só aí vem, a propósito de umas penadas biográficas sobre um desses odontálgicos cirurgiões, cuja história muita vez ouvi ser contada lá em meu berço natal.

Não havia por aquele saudoso sertão do Norte, cristão que deixasse de proclamar, aos quatro ventos, a habilidade e perícia do Bento Cirurgião, como o povo o alcunhara. E, deveras, todos ou quase todos diziam por experiência das façanhas dentárias praticadas pelo Bento, respeitado e temido pelos próprios rivais como um non plus ultra da arte.

Por aqui e por ali viajando, constantemente, a empanturrar-se de ouro e fama, assim passava o nosso homem, cheio de risos, atenções e muito renome por toda a parte.

A perfeição de seus trabalhos, de que ele mesmo se pavoneava, era causa para que bocas de marmanjos e moças o procurassem, desejando brunidas e bem colocadas dentaduras, fortes e duradouras chumbações nos dentes estragados...

Muito bela e muito moça a mulher do velho coronel Boaventura de Góes, um farto e opulento fazendeiro das margens do São Francisco, mas também uma terrível esposa a Sra. Góes, que detestava o marido, um banguela cediço, cujas limosas gengivas apresentavam o quadro desolador duns alvéolos desabitados.

E o paciente do fazendeiro sofria, mortificava-se com aquela aversão da cara metade; e tudo porque não tinha dentes e não aparecia por ali um profissional, para lhe retocar e concertar os esverdeados e apodrecidos caninos e molares — motivo da decidida repulsa de sua consorte!...

Ah! que ainda havia de lhe pilhar um beijo, um único beijo, dizia o desconsolado Coronel, antegostando-se na ideia duma bela, se bem artificial dentadura.

Verdadeiro sucesso a bendita chegada do Bento Cirurgião àquelas paragens da fazenda do Góes.

Mais que depressa se viu o Coronel de posse da mais bem acabada dentadura, que lhe ia dar direito ao supino gozo de umas beijocas da sua pouco meiga e caridosa mulher...

E o Bento — o incomparável colocador de dentes, o salvador da boca do Coronel — tornou-se alvo da liberalidade da bolsa deste, cujas boas atenções se estenderam a ponto de oferecer ao dentista lauto banquete festivo.

Conta-se que de muito excesso na opípara refeição, não só engolira o Coronel a dentadura, mas também lhe sobreviera formidável indigestão, que o levou de pontapés ao outro mundo.

E como consolo à Sra. Góes, que muito apreciava os esmaltados e naturais dentes do amável Bento Cirurgião, lhe ficou este substituindo o inditoso Góes no tálamo e igualmente na burra.

E agora desmintam o juízo do tio Antero: "A profissão de dentista é a melhor que existe!"

Outubro de 1894.
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Nelson de Senna (Páginas Tímidas, 1896)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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