D. Joaquina Eustáquia Simões D'Aljezur
(Historieta quase romântica)
O refúgio, o bucólico sanatório
indispensável às minhas crises de melancolia, era então a horta dos Pegos
Verdes, oásis de laranjeiras sepultado num vale da serra, entre estevais sem
fim. Ali haviam demorado por vários séculos alguns monges autênticos, de cuja
pobreza os restos do convento — acanhadíssima construção térrea de pedra e
barro — perpetuavam o atestado suficiente.
Eu ia para lá a pé, de espingarda
a tiracolo, calculando a hora da partida de modo que chegasse ao nascer do Sol,
quando o hortelão, o Sr. Elisiário, já andava nas leiras, com a enxada, a abrir
caminho à água.
A levada de alvenaria passava ao
portão; sentava-me, descansando um instante a escutar o murmúrio da água, e
logo, numa dessas frequentes e profundas acalmias da madrugada na serra, que um
trilo de rouxinol perturba e magoa, eu cortava subitamente o silêncio com o meu
grito:
— Elisiário!...
Da obscuridade rescendente onde o
pomar tufava acudia sem demora a voz do velho, tenebrosa, ao rés-do-chão:
Ora muito bons dias a vossenhoria...
— E em seguida, mais aguda e livre: — Ó Custódia,
Custódia... cá temos o patrão...
Era o sossego de duas vidas
consagradas ao amanho da leiva generosa que perfazia a paz solene daquele
ambiente de solidão, e eu entrava nela tão naturalmente que nunca a trilhava...
A minha presença em nada alterava
a norma de existência ao casal de velhos que para ali viera pouco depois da
voda, quarenta anos atrás. Não tinham filhos nem os haviam desejado e,
encantados no egoísmo daquela quietação cobiçada e realizada
imperturbavelmente, as minhas poucas palavras eram-lhes indício de uma velhice
precoce por onde nos emparelhávamos, e assim conseguia eu vencer a sua
hostilidade latente, mas sempre alerta, por tudo quanto revelasse tumultos e
petulâncias da mocidade.
A minha cama e o meu quarto
arranjavam-se todos os dias, que eu lá estivesse ou não, e esses cuidados
conservavam-lhes na memória a minha lembrança; quando eu chegava recebiam-me
singelamente, como a alguém que se espera depois de curta ausência, embora
sucedesse passarem-se às vezes anos inteiros sem que me vissem aparecer. Do que
eles comiam comia eu também, de sorte que nem mesmo o lado material da sua vida
sofria modificação.
O velho era malicioso, com grande
queda para a zombaria cujo exercício a surdez da mulher baldava naquele
escampado e sobre mim gostosamente incidia, mais ou menos velada, enquanto por
lá me tinha. A velha, verdadeira pobre de Cristo, calada e obediente, ia-se
dobrando para o chão como um compasso que se fecha pouco a pouco, emperra e já
não abre; parecia feita de barro amarelecido e gretado, com duas inextinguíveis
pinceladas de carmim nas faces. O pretexto à minha demora dava-o a caça, e de
espingarda ao ombro subia eu todas as manhãs muito cedo à cumeada das serras
por onde me deixava ficar horas esquecidas, mas a caçar de preferência ou
exclusivamente, perspectivas e horizontes... A espingarda, no entanto,
escudava-me a reputação já abalada e que fatalmente se faria de doido varrido
ao vincar a suspeita de que não era pela caça que eu levava os dias inteiros a
bater mato.
Umas vezes por outras disparava a
espingarda para o ar ou atirava ao alvo; os tiros ecoavam pelas quebradas dos
montes e ouviam-se no convento, provocando, ao regresso, grande cópia de
perguntas irônicas e sorrisos de mal disfarçada mofa no meu caseiro, que me via
voltar de mãos vazias, e cujo auxílio e companhia nas minhas inocentes
explorações campestres eu terminantemente recusava. As alusões, pouco
respeitosas, do socarrão à minha má estrela venatória — ele não me punha em
dúvida a perícia — eram invariáveis, sem nunca falharem e divertindo-me sempre.
Depois, como se isso lhe fosse indispensável e seguro introito à exposição das
suas habilidades e façanhas — para fixar o contraste entre a minha impotência e
o seu valor, — com bastante pitoresco, embora muito sóbrio de gestos, descrevia
as manhas dos coelhos assustadiços e os variados voos com que perdizes e rolas
se levantavam fugindo ao caçador inexperiente. "Tricas de escapar" — chamavam-lhes,
mas ajuntando logo: — Comigo não brincam os passarinhos e se vossenhoria aqui
viesse no tempo da caça proibida, que é quando vale a pena dar um tiro, ou nos
meses em que eu posso largar a rega, veria então... Que eu bem sei que
vossenhoria no parado acerta como ninguém...
— Pois, tio Elisiário, amanhã
trago-lhe a bolsa cheia...
— Vossenhoria anda com pouca
sorte. Aos tiros que lhe tenho ouvido já não devia haver bicho com vida numa
légua em redor...
E o caso era que os bichos tampouco
pareciam acatar-me a destreza. Os coelhos miravam-me, com aprazível e tranquila
curiosidade, da entrada das suas luras, e uma vez que eu esquecera a espingarda
sobre umas pedras fui encontrá-la feita poleiro, donde uma perdiz vigiava a
ninhada.
Mas atirar a uma ave, símbolo da
graça inofensiva e da elegância mimosa!... Vê-las voar, tão leves, e vê-las pousar,
num declive tão doce, como que no ponto certo onde a curva do seu voo encontra
a imaginária tangente...
Na liberdade daquela solidão tudo
era gozo para os meus sentidos, sempre despertos e ávidos: o ar impregnado
pelas exaltações resinosas das estevas; o pesado, quase palpável perfume das
moitas de rosmaninho; os gorjeios que a passarinhada solta como isolados fios
de pérolas cristalinas; o ruído, o remurmúrio de colmeia de que a vida dos
insetos repassa o mato espesso; as borboletas ardendo na luz intensa, como
pequeninas chamas verdes que se perseguem, e caindo nas sombras com a opacidade
das flores de enxofre... E os vastos horizontes, familiares, mas duma tão
perpétua novidade, abrangendo no mar faiscante o recorte sinuoso da costa, lá
da Ponta do Altar às rochas do Cabo, com os estuários do arade e das rias de
Alvor, e, a norte, a perspectiva circular das serras que fecham o Algarve,
imponentes, e até importunas, quase, nas altíssimas ondulações da Fóia e da
picota, mas morrendo em linhas azuladas, como que esvaídas, direito ao mar e
acamando, a levante, em aveludadas ondas de musselina...
Singular e pacificador panorama
por onde, com a alma, a vista se me alongava infinitamente apaziguada!
Não, não era para verter sangue
que eu ia aos Pegos Verdes, pois logo me penetrava a clemência duma grande
harmonia idílica, mas tampouco estranhava a ferocidade instintiva e cultivada
do tio Elisiário, que bem lhe correspondia à expressão macabra do rosto: em
pequeno tivera a desgraça de esborrachar o nariz, ficando-lhe essa feição
estampada ao meio da cara como um às de paus...
As minhas belas sestas dormidas
no terreiro da igreja, debaixo duma copadíssima alfarrobeira, que ali imperava
escoltada por oliveiras! A agitação de umas tantas vides, soltas e reverdecidas
em pleno sol, hipnotizava-me; o sussurro da aragem nas ramadas da imensa
árvore, embalava-me; outras vezes o vento dava com força nas altas oliveiras
com o ruído sinuoso e ecoado duma grande vaga a rebentar na areia da praia e os
meus sonos ali eram prolongados, reparadores e deliciosíssimos.
Os dias corriam-me tão serenos,
tão iguais, naquele ermo dos Pegos Verdes, que pouco a pouco o espírito se me
tranquilizava e como um líquido repousado que deposita, por fim, no fundo do
vaso, todas as impurezas que o embaciavam, passadas algumas semanas fazia-se-me
no cérebro a limpidez necessária. Calmo e indulgente, pois é o veneno da
própria atrabílis que nos intoxica a visão do próximo, voltava à convivência
dos povoados...
Em uma dessas temporadas de
purificação, já quando pensava em a dar por finda para voltar às obrigações da
vida social, uma tarde que o calor me levara ao preferido retiro da
alfarrobeira, veio-me o tio Elisiário dizer que chegara ao convento uma senhora
em minha busca.
— É uma verdadeira madama!...
Não seria fácil pintar a
expressão de assombro e malícia quase obscena com que o velhaco sublinhava a
designação de madama.
E como se chama essa madama? — inquiri
sonolento, e mais aborrecido do que surpreendido.
Não sei, nem ela quis dizer o
nome, porque o patrão também a não conhece... Metia-a na casa onde vossenhoria
come. Vem esbofada com o calor e em trajes de viúva...
Você nunca a viu, Elisiário?
Eu nunca, mas a minha mulher diz
que aquela cara não lhe é de todo estranha e que já uma vez na feira de Lagos a
encontrou passeando sozinha na Rua dos Ourives...
Fui. À sombra das parreiras, cuja
latada separa o convento da horta, descansava um mocetão espadaúdo e hercúleo,
vestido de soriano escuro, encostado à albarda de uma estafadíssima égua que
arreganhava os dentes direito à rama viçosa do batatal.
— É o pajem... — segredou-me o
Elisiário, piscando o olho.
Entrei no convento. Na casa de
jantar pouca luz havia e essa mesma quase não alcançava o recanto ao qual a
misteriosa visita se acolhera e que eu, ainda encandeado, a princípio mal
divisei na cadeira onde o seu vulto negro foi pouco a pouco tomando forma.
Dei as boas-tardes, abri a janela
e de relance, enquanto buscava assento, examinei a desconhecida que, muito
naturalmente, sem se levantar, me estendeu a mão descarnada e fina.
Devia ser mulher de quarenta
anos. Alta, delgada, envolta nas pregas dum grande xale de caxemira preta, que
a saia de merino prolongava no mesmo tom tenebroso até ao chão, sustinha o
corpo num conjunto elegante e digno; as feições regulares e emaciadas, cuja
palidez ebúrnea se acentuava sob o alpendre da mantilha negra e lisa, e as
pálpebras vermelhas do carmim vivo que o costumado choro parece destilar...
Silenciosa, apertou-me a mão,
deixando, logo, cair a sua, pesadamente, nas sombras do regaço, ao passo que a
mão esquerda, espalmada sobre o peito, aí desenhava a fragilidade dos seus
longos dedos, como que a aguentar baldamente as palpitações dolorosas de um
coração martirizado.
Instintivamente a comparei à
"Mater" do Germano Pilon, obra-prima de expressão dolorosa — embora
um quase nada declamatória — com a qual o museu do Louvre se orgulha e de que a
misteriosa senhora parecia haver copiado a atitude sofredora.
— Vossa excelência o que deseja
deste seu criado? — disse eu a meia voz, realmente impressionado pela trágica
nobreza do seu aspecto.
Antes de me responder ergueu
vagarosamente os olhos ao céu com o semblante de quem implora a inspiração
divina, depois, ainda mais vagarosamente, pousou-os em mim e, com a voz funda
onde persistia a dorida rouquidão dos soluços abafados, exclamou:
Eu sou Dona Joaquina Eustáquia
Simões d'Aljezur...
De Aljezur!... E veio vossa
excelência de tão longe a cavalo, com este calor tremendo. Mas deve estar muito
cansada! Não deseja tomar alguma coisa? Suplico-lhe que mande sem cerimônia,
como se estivesse na sua própria casa...
Aljezur é o meu nome de família;
de Aljezur foram os meus antepassados que, sem jactância, poderei aquilatar de
nobres... Eu, hoje, moro em Bensafrim; pela estrada velha, tomando os atalhos,
não chega a duas léguas de caminho... Agradeço a vossa excelência o seu
cuidado, mas não estou cansada nem preciso de tomar coisa alguma...
Após demorada pausa continuou:
— Não admira que nunca ouvisse
falar no meu nome e que até o ignore por completo: vossa excelência é muito
novo; nem mesmo poderia lembrar-se da época do verdadeiro esplendor da minha
família: eu própria dele só conheço os decadentes vestígios... Nasci sob a
influência duma funestíssima estrela e até desses vestígios me desapossaram...
Aqui as suas mãos de marfim,
soltas, agitaram-se à altura do rosto para logo se enclavinharem na negridão
das roupagens, enquanto um grande soluço lhe estrangulava aflitivamente a voz...
A piedade irrebatível perante
espetáculo de tão patente infortúnio, aflorou-me aos lábios em palavras de
conforto; animei-a como a criança desvalida, no transe da orfandade, e
escutei-lhe a pungente história, preso duma comoção que não esmereceu até
final.
Sem proteção de ninguém, viúva de
um oficial que provara em combates coloniais o seu arrojo — digno também da
nobilíssima estirpe donde provinha, — reduzida à miséria, escorraçada de
quantos lhe deviam respeito e amparo, abandonada no isolamento de uma
insignificante propriedade já roída de hipotecas, via-se esbulhada do grande
patrimônio, que legitimamente lhe pertencia, cuja importância despertara a
avidez de parentes poderosos e ativos, os quais, vivendo na capital, conseguiam
inutilizar quantos esforços ela empregasse para entrar judicialmente na posse
do que era seu.
Aos descoráveis algozes fora-lhes
fácil apoderar-se e talvez destruir os principais documentos em que baseava os
seus direitos, documentos confiados ao célebre advogado Rodrigues de Moura, que
preparara a ação judicial. Desgraçadamente, depois da morte daquele homem
generoso, de cujo desinteressado patrocínio ela recebera provas inúmeras, o seu
sucessor, o Dr. Claro Fernandes, ou por sugestão dos seus implacáveis inimigos ou
porque realmente não possuísse já os elementos suficientes à continuação do
pleito — este alvitre repugnava menos à natural delicadeza dos seus sentimentos,
— recusava dar-lhe andamento, deixando sem resposta todas as suas cartas, e
sabendo a minha intimidade com o Dr. Claro — com efeito havíamos sido camaradas
em Coimbra — atrevera-se a vir suplicar--me que interviesse, escrevendo-lhe.
Tal o resumo de quanto a ilustre
"dolorosa" me expôs, mas sem tentar, nem de leve, reproduzir o tom
digno, o entranhado sentido, a substância trágica das suas lamentações e ainda
menos o colorido, a veemência com que narrava, exaltando-se até aos mais
levantados raptos de emocionante eloquência, com os quais, decerto, encobria ou
transpunha passagens melindrosas de cuja elucidação claramente se pejava,
sobretudo nas imprescindíveis e rápidas alusões às peripécias do seu casamento,
que fora também singularmente infeliz.
Prometi — e tão sincero quanto o
confrangimento verdadeiro por calamidades alheias pode mover um homem de brios —
senão fazer-me seu paladino, pelo menos insistir, apertar com o meu amigo Claro
Fernandes para que lhe prestasse o auxílio devido. Eu fiava do fundo
cavalheiroso do seu caráter a mais pronta solicitude por aliviar tão peregrina
como injustificada desventura, quando esta lhe fosse bem patente, e de antemão
garantia à pobre senhora que encontrava no fogoso e moço advogado auxiliar não
menos prestável do que lhe fora o seu antecessor, e, felicitando-me pelo feliz
acaso, mercê do qual eu interviria em assunto assim sugestivo de generosos
impulsos, lisonjeava-me profundamente que me houvesse escolhido para seu
intermediário.
A cada uma das minhas palavras as
feições de D. Joaquina Eustáquia pareciam desanuviar-se, refundindo-se em calma
tranquilidade, em quase alegre confiança.
Secaram-se-lhe os olhos, sorriu,
apertou de novo o coração, certamente já menos oprimido, com uma das mãos,
estendendo-me, num gesto de confiado abandono, a outra mão, que eu beijei,
respeitoso.
Protestou o seu eterno reconhecimento,
como cumpria, mas ainda em termos levantados, com a espontaneidade de uma alma
que se expande livremente ao calor de outra alma cuja rara generosidade a não
frustrara na sua esperança até ali tanta vez desiludida, e assim se despediu.
Ao transpor a porta do claustro
uma revoada de pombos mansos pousou-nos em volta com o ruído de água lançada de
alto, aos baldes. D. Joaquina deteve-se um instante, como que embevecida na
graça das aves irrequietas, mas quando se inclinava para as amimar, o tio
Elisiário acudiu, solícito, a enxotá-las. O bando levantou voo, passando quase
ao de cima das nossas cabeças com o rumor isócrono do arfar de um cão cansado,
e D. Joaquina ficou-se ainda um momento, extática, feminilmente, quase
infantilmente graciosa, com as mãos estendidas direito ao céu onde os pombos se
perdiam.
— Pois haverá no mundo nada mais
lindo, mais elegante, mais livre do que uma ave! — observou-me.
Foi realmente espetáculo para ser
olhado, a agilidade juvenil, junta ao desembaraço de consumada cavaleira, com
que ela, estribando-se na mão que o pajem lhe oferecia, saltou sobre a albarda
da égua e a meteu pelo caminho da serra num chouto rápido, seguida a custo do
companheiro. Ao longe a égua tomou feição de palafrém caminhando, ligeiro, sob
o peso de alguma desditosa princesa de balada...
Mas a voz do tio Elisiário soou
inesperada e zombeteira a meu lado:
O pajem é forte moço... mas tem o
nariz vermelho e roído... Aquilo deve ser formigo...
Não fale em narizes, Elisiário,
porque o seu também é bonito... — atalhei, severa e secamente.
E recolhi-me a cismar na história
de D. Joaquina Eustáquia, vulgar, talvez, nos seus pormenores mas tão
fantástica pela incontestável estranheza da sua dramática heroína...
O meu primeiro cuidado, quando
regressei a casa, foi escrever ao Dr. Claro expondo o caso, instando por
imediata resposta e instigando-o a que, embora as aparências fossem
desfavoráveis a D. Joaquina, concedesse ao seu pleito a atenção que, a meu ver,
ele merecia.
A resposta não se fez esperar. O
meu amigo prometia tomar o assunto a peito, ajuntando que os empregados do
escritório, contemporâneos do seu predecessor, se lembravam ainda de D.
Joaquina como de alguém que consubstanciasse, não as calamidades do destino
adverso, mas os predicados mais ridículos que possível fosse imaginar — sem
poderem no entanto explicar o motivo de semelhante impressão, de resto
frequente em subalternos perante o infortúnio desamparado e importuno. Isso por
modo algum o desviaria de se ocupar seriamente da questão, esperando, para
muito em breve, dar-me notícias mais minuciosas e animadoras.
Ao mesmo tempo, encontrando-me
com pessoa de Lagos, sempre bem informada e discreta, perguntei se alguma coisa
sabia acerca de D. Joaquina Eustáquia e por ser negativa a sua resposta instei
a que inquirisse o necessário da própria gente de Bensafrim.
Passaram meses sem que me
chegassem novas diretas ou indiretas da desventurada, e quando justamente me
dispunha a visitar o cabo de São Vicente, fazendo caminho por Bensafrim, recebi
carta do Dr. Claro atestando formalissimamente que D. Joaquina Eustáquia Simões
d'Aljezur era o tipo acabado da histérica mentirosa e trapaceira, desvairada
por fantásticos sonhos de grandeza e vesânicos terrores de perseguições; que
tais documentos jamais haviam existido fora da sua imaginação pervertida, e os
seus parentes eram-no apenas por afinidade, mas pessoas de comprovada e
indubitável honradez, para quem toda e qualquer alusão à triste heroína doía
como afronta direta e imerecida.
Em Lagos, de passagem para o
Cabo, o informador cujas luzes solicitara corroborou a opinião do advogado com
a do povo de Bensafrim onde ela era tida e havida por louca e alcunhada
ridiculamente de "Princesa de..."; o informador não conseguira
averiguar com exatidão o nome do escarninho principado...
Que mais poderia eu fazer a bem
de D. Joaquina? Em meu próprio bem resolvi abandoná-la e remeter-me ao silêncio
tenaz das almas limpas de remorso.
Demorei-me três dias na região do
Cabo. O sítio onde se levanta a torre do farol, nas ruínas anexas ao velho
mosteiro, é soberbo de trágico, orgulhoso isolamento, que tudo em volta acentua
e harmoniza.
A monstruosa penedia mociça de
Sagres aguenta as investidas do mar do sul e de encontro ao esporão rochoso do
Cabo se pulverizam os raivosos vagalhões que o vento norte atira pela costa de
Portugal abaixo. Toda a paisagem se repassa da heroica tristeza daquelas
incessantes lutas e na charneca vizinha ao mar as raríssimas árvores que
medraram vivem quase rentes com a terra, dobradas para levante, fugindo,
desgrenhadas, aos arremessos da tormenta.
Mas a lembrança de D. Joaquina,
evocada, involuntária e fugitivamente, naquele cenário, perseguia-me ainda mais
dolorosa e dramatizada, como se o seu vulto negro por ali errasse açoitado dos
elementos...
E, com efeito, era ali que
conviria juntar aos uivos da procela os clamores lamentosos de uma alma
torturada, no desamparo!
Mesmo em frente ao Cabo
levanta-se um leixão de que o mar padece há séculos e a mais e mais se empenha
em desfazer. Ali tudo ferve em cachões de espuma e é temeroso de ver como o mar
se lhe cava em roda para lhe dar assalto e o sepulta nas ruínas dos altíssimos
castelos que levanta e, bramindo, cai de novo e se cava mais fundo e logo se
ergue mais alto para de novo o envolver nos concêntricos turbilhões das
catadupas de um feroz remoinho, ao concertado esforço de o arrancar!
Mas o rochedo deve ter as raízes
no coração da terra, pois nada o abala!
E também é curioso de ver em dias
amenos, quando ele se reflete na água espelhada, como se estria de gumes e
parece abrolhado de navalhas.
Quem pudesse atirar sobre ele, ao
sabor do mar enfurecido, as nossas mágoas, os nossos remorsos, os nossos
vícios. Como tudo sairia dali retalhado, sangrando, disforme, inútil e com que
delícia não seria então recebida a morte que nos nivelasse a dor pela alegria,
e nos absorvesse as cruéis claridades da alma por onde se desdobram tão
angustiosas tragédias!
Era ainda a imagem lutuosa de D.
Joaquina que tais lamentações me sugeria, mas a imagem que se movia e
trabalhava pelo inconsciente, pois se acaso eu a apercebia, logo tratava de a
rebater como a espectro importuno e vexatório. Para que agravar a minha própria
tragédia enxertando-lhe o drama de uma existência onde a irremediável loucura
fazia a cada instante novos e insanáveis destroços... Loucura!... É tão falível
o conceito não só do vulgo mas dos que se equilibram tranquilos na gloriosa
plenitude de uma vida desembaraçada, quando se trata de algum ser anormal que
as vicissitudes arrastam por sendas inexploradas ou desconhecidas!
Mas o egoísmo sempre triunfava à
ideia de alijar do espírito semelhante obsessão e foi inabalavelmente decidido
a não me ocupar mais de tal criatura que eu regressei a casa.
Outra carta do Dr. Claro, que
chegara durante a minha curta ausência, ateou o interesse, que parecia de todo
extinto, em exultantes labaredas.
O meu amigo penitenciava-se da
leviandade com que tentara justiçar a pobre vítima à falta do fio encontrado,
agora, casualmente, para fácil penetração ao labirinto que devia ser a vida de
D. Joaquina Eustáquia Simões d'Aljezur. Houvera processo por ocasião do seu
divórcio e o marido não só lhe negara o valiosíssimo dote, que por contrato
antenupcial lhe devia, mas até os alimentos lhe recusara. A virtuosa família do
marido — cuja morte pouco tardou após a separação — abafara o processo e ele
pedia-me que obtivesse, quanto antes, de D. Joaquina certos esclarecimentos de
que mandava nota, jurando que, a realizarem-se as suas previsões, tomaria à sua
conta levar o pleito afinal e por todas as instâncias, ainda que nisso
empenhasse a posição que ocupava no foro e alguns bens que possuía.
Cavalheiroso amigo!
D. Joaquina, é certo, não aludira
durante a nossa entrevista dos Pegos Verdes à circunstância do divórcio, nem
explicara a razão por que não usava o nome do marido, o que era, pelo menos,
singular. Mas isso o que importava!
A esperança, a quase certeza de
que havia realidade nas suas queixas e justiça nas suas pretensões, e a
convicção de que ela era a vítima imbele da cupidez e da maldade de uns
hipócritas mascarados de generosos sentimentos mas seguramente de tigrino
coração e catadura feroz — como convém à falsa virtude — apoleavam-me de
remorsos, exacerbados ainda por haver, tão facilmente, dado crédito às
atordoadas do vulgo celerado e estúpido.
Eu desejaria voar até Bensafrim e
descendo-lhe ao humilde tugúrio, qual enviado celestial, depor-lhe no regaço a
palma do martírio e na fronte a imarcessível coroa de rosas da inocência
resgatada.
Estávamos no começo de março, num
período de dias aprazíveis. Parti na manhã seguinte, às 9 horas, com um sol de
Inverno radiante.
Parti, mais serenado já, mas com
a iluminação do triunfo a ampliar-me a alma e em plena comunhão com a natureza
que se expandia luxuriante.
A estrada sai da vila por entre
hortejos e pomares com as pereiras e os pessegueiros então floridos. Pelos
espaldares dos outeiros viam-se jeiras lavradas de fresco, onde as amendoeiras,
já tupidas em folhagem tenra, se enovelavam em manchas de mimoso verde-claro.
Era milagrosa a transparência da atmosfera nas várzeas da Torre, com os
salgados dos Montes, à esquerda, listrados de água espelhada nas valas cheias e
a seguir, a Abicada reverdecida em searas espessas, até perder de vista, dando,
a sul, nas linhas virgilianas da barra de Alvor. Logo passamos à extensa área
pedregosa que antecede as terras do Diaxere, de uma larguíssima ondulação
melancólica. À entrada de Lagos a surpresa sempre alacre da ria lavada de toda
a fresquidão do mar, o hálito da preiamar em aragens leves e penetrantes,
cheirando a melancia; e o mar, uma linha azulada onde se balouçava um grande
patacho branco. Depois, subindo, esse aberto mar azul engastado na curva
puríssima do areal da Meia-Praia e para oeste a Ponta da Piedade, rochas de uma
solidez duvidosa, todas comidas ou mordidas da vivíssima luz que a água
reflete; e a caminho de Bensafrim as várzeas de esmeralda do Paul, de onde se
levantam, como nas margens de um lago italiano, agudos serros pedregosos.
Bensafrim, caída no fundo de um
vale entre duas serras íngremes, assenta na faixa de grés que atravessa o
Algarve e ali serpeia numa inundação de águas ruivas petrificadas, com ruas
pelos alastramentos laminados de onda que se fossilizou ao espraiar.
A norte, o serro coberto de
estevais coroa-se de um moinho de imensas asas sempre furiosamente batidas pelo
vento, como se Notus lá desembocasse; a sul, o outro serro, mais sobranceiro,
mais íngreme, fazendo sombra à estrada e ao povoado, fortifica-se naturalmente
a blocos de calcário jurássico, que o amuralham até ao cume, dentando-o de
formidáveis ameias.
Pedi informações, numa venda ao
pé da estrada, acerca do paradeiro de D. Joaquina. O taberneiro vem em pessoa
cumprimentar-me, empunhando um copázio de vinho já meio vazio que solta dos
lábios horrorosamente cancerados, instando, com enfadonha insistência, por que
eu beba o resto...
Apeio-me. O homem da venda, mau
grado a minha formal recusa de lhe beber as sobras, condescende em indicar o
caminho ao meu cocheiro, e um garoto dos seus doze anos salta para a boleia a
fim de nos guiar.
Ou seguindo de trem, pela estrada
que rodeia o serro do moinho, ou subindo a pé ao moinho e descendo a outra
vertente, dá-se no fundo do vale com a casa de D. Joaquina. Eu prefiro ir só,
pelo moinho.
Atravessando a ribeira a vau subo
ao serro pelos estevais; comigo vai subindo o vento que no topo assopra em
furacão as velas do moinho e as faz rodar loucamente. Mas, daí, o espetáculo é
soberbo, com a perspectiva de serras que se desdobram até ao cabo, azuis,
violetas, e lá muito ao fim, esfumadas, no contraste das linhas de Sagres, que
se apercebem recortadas na rocha aos entalhes, com ásperos escuros cavados
entre arestas vivas e luminosas. A norte as serras de Monchique aparecem
inteiramente outras, separadas, com um mamelão isolado entre a Fóia e a Picota...
A vegetação lanceolada que
acompanha os sinuosos ribeiros cristalinos vai correndo pela base do serro e
passa a poente, junto a uma casa abarracada; na ponte, em frente a essa casa,
parou o meu trem: é sem dúvida ali que mora D. Joaquina.
Desço por altos estevais
espessíssimos que me fustigam a cara e me untam o fato de resina. A casa é um
pequeno e pobre monte algarvio, com porta e janela, que foi pintado a cor de-rosa
e agora mostra por entre grandes côdeas de reboco já caído as talhadas da
taipa, como um bolo que perdeu parte da sua capa de açúcar.
Aproximo-me da entrada que tem a
porta aberta: ninguém.
Entro a uma casa ladrilhada e
miseravelmente mobiliada com desmanteladas cadeiras e mesa de castanho. Dentro,
no quarto, ouvem-se vozes em contenda. Uma dessas vozes, que amolecia por
vezes, silvava, a largos intervalos, no tom, que logo reconheci, da fala de D.
Joaquina quando estrugia a sua indignação de vítima recriminadora. A outra voz,
em tom igual, acompanhada por baques surdos, assim de golpes feridos em corpo
flácido, dizia vitupérios.
— Ah! porca, ah! velhaca, assim é
que tu poupas o dinheiro, bebendo logo duma vez toda a aguardente... Ah!
safada! Toma, toma, toma... que não deixaste nem uma pinga...
Após muito breve hesitação passei
à outra casa. D. Joaquina, sobre um capacho roto, em pernas que se escanifravam
descarnadas e negras, estorcia-se nas mãos do pajem, o qual, ajoelhado, a
zurzia metodicamente, e antes de fugir ainda a ouvi murmurando, já rendida:
— Ah!... filho... não me batas
tanto... que me dói muito amanhã...
Fui para o trem, não horrorizado
nem ofendido, mas triste... O cocheiro olhava-me com escárnio e o moço ria à
socapa. Antes de me meter na carruagem, perguntei ao garoto:
Então tu conheces aquela senhora?
Que senhora?...
A que mora ali, naquela casa...
Aquela... senhora... É a Princesa
Venérea...
Princesa Venérea?!...
Assim lhe chamam aqui todos...
Por quê?...
Não sei... Aquilo é uma
refinadíssima bêbeda, que tem deitado a perder toda a rapaziada do povo...
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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