6/12/2019

O Compadre Rabino (Conto), de Brito Camacho



O Compadre Rabino

Apareceu um dia no monte, magro, escanzelado, consumido pelas febres, havia três meses a contas com umas quartãs que não o largavam nem à mão de Deus-Padre.

— Queres-te consertar?

Ele não queria outra coisa; mas sentia-se incapaz de mudar uma palha de um lado para o outro, de dois em dois dias abarracado com a quartã, para ali ficando num molho de manhã à noite, sem dar acordo de si.

— Não faz mal, é para guardar porcos. Tenho ai um remédio que te há de fazer bem. O remédio era o sulfato de quinino, o bom sulfato inglês, que minha mãe comprava em frascos, dando-o a quem dele necessitava, à gente pobre que o pedia.

Foi assim que o compadre Rabino entrou para minha casa, roído pelas febres, umas quartãs amaldiçoadas que o não deixavam ganhar a vida.

Sucedeu o remédio fazer-lhe bem, de modo que ao fim de poucos dias estava são e rijo como um pero verde, e comia com tal apetite que até parecia, diziam os outros criados, ter fome canina.

Por qualquer motivo, o maioral dos porcos deu o ano por acabado antes de Santa Maria, e o compadre Rabino, que entrara como ajuda, passou logo a ser o maioral, subindo de categoria e melhorando de vencimentos.

Minha mãe foi a madrinha da sua primeira filha, e assim o compadre Rabino passou a ser uma pessoa da nossa família, compadre de águas bentas, o que representava naquele tempo uma estreita relação de parentesco, tão estreita que os compadres como tal se tratavam, mesmo que fossem irmãos.

E que adorável, que santa rapariga era essa Maria Jacinta, que eu estou a ver, estudante de Medicina em fins do curso, pálida como se fosse modelada em cera branca com tonalidades amarelas, os olhos encovados, o peito deprimido, triste porque sentia a morte próxima, e ao mesmo tempo satisfeita porque me tinha ao pé de si.

— Diga-me que não morro, que eu acredito...

Pobre Maria Jacinta!

No campo, pela Primavera, em plena Natureza encontram-se florinhas, cetinosas ou aveludadas, admiráveis pelo desenho, cativantes pela cor, de uma beleza tão rara que a gente pasma de as ver ali entre plantas grosseiras, ao lado de outras flores ordinárias, que mais fazem realçar pelo contraste o seu porte aristocrático. Dir-se-ia, não as vendo ao pé da esteva resinosa, da papoila branca, junto dos cardos espinhosos, armados para a resistência a toda a espécie de agressão, dir-se-ia, naturalmente, serem tais florinhas o produto de uma seleção inteligente, continuada ao longo de tempos infinitos, mimosas e delicadas flores que mãos finas de princesa fossem tratando e educando segundo os melhores preceitos dessa arte essencialmente fidalga, como lhe chamou o Fialho, que é a floricultura.

Pois aparecem também semelhantemente, na família plebeia dos camponeses, criaturinhas de graça perturbante, como se dentro da frágil beleza de uma tanagra habitasse o espírito sonhador de uma castelã, tão nobres de sentimentos, tão fidalgas de maneiras, que a gente fica a pensar, olhando-as com enternecida curiosidade, se não coincide a repetição de certas formas com a transmigração de certas almas.

***

A vida do maioral de porcos é relativamente descansada, pelo menos durante uma boa parte do ano, de modo que ao compadre Rabino sobejava-lhe o tempo para me aturar, dias inteiros por lá com ele, sobretudo na época das túberas, que os porcos são uns artistas para as encontrarem e dão o cavaquinho por elas, como excelentes gourmets. Não me recordo de ter ouvido ao compadre Rabino uma palavra obscena, e ia jurar sobre umas Horas que jamais ele contou uma história picaresca. Era um homem austero nos seus costumes e de uma grande compostura na sua linguagem. É regra invariável dos homens que guardam animais, sejam eles quais forem — ovelhas, cabras, bois ou porcos, — envolverem nas suas pragas, que são exclamações de cólera passageira, os patrões, donos do gado, e não se dispensam inteiramente de o fazer, mesmo na presença deles. Às vezes, íamos de carro para qualquer parte, eu e meu pai, e o almocreve, farto de brigar com uma das mulas, que não queria puxar certo, desatava a bater-lhe furiosamente com o chicote, e cada chicotada tinha o reforço de uma injúria grave — Ah! mula de um filho da… como se a minha avó fosse a mãe dele.

Tinha a religiosidade dos homens da sua condição, o compadre Rabino, mas não era fanático nem supersticioso; acreditava nos santos, e não tinha medo das bruxas.

Do que ele tinha medo, um medo apavorante, era das trovoadas, a tal ponto que em ouvindo um trovão já não sabia onde havia de meter-se... Andava com o gado longe do monte, e o céu entrava a toldar-se, grandes nuvens correndo ao encontro umas das outras, formando esponjas do tamanho de montanhas. Daí a pouco chovia torrencialmente, e o compadre Rabino, enrolado na sua manta de riscas pretas e brancas, procurava um abrigo, se o havia ali perto, uma árvore ou uma barreira, e aguentava, ao pé da sua obrigação, o dilúvio que sobre ele caía. Mas ouvia-se um trovão, ainda surdo, muito distante, o compadre Rabino tratava de enrolar o gado — ó rapaz, acareia para cá aqueles porcos — e punha-se a caminho do monte. Se a trovoada o surpreendia, e no mês de Maio as trovoadas no Alentejo armam-se de um momento para o outro, o compadre Rabino largava o gado, carregava-se de trovisco, se por ali o havia, e pernas para que vos quero, até se apanhar debaixo de telha — como se o perigo, abrangendo muitos, fosse menor para cada um. Chegava, esbaforido, a manta pela cabeça, o chapéu debaixo do braço, e o seu primeiro cuidado era entregar o trovisco a uma criada, que tratava de o espalhar por todas as casas, ramo aqui, ramo além, não esquecendo nunca um raminho a tapar o buraco da fechadura na porta da rua. Já minha mãe, também medrosa dos trovões, tinha feito reunir a família num quarto onde não houvesse cobre ou estanho, porque estes metais atraem o raio, de modo que a sua presença, quando troveja, é perigosa para as pessoas. É como se estivesse a ouvi-lo, o pequeno coro de vozes súplices, erguendo-se numa toada plangente, e os trovões ribombando numa orquestração diabólica, terrificante — como se o Deus bíblico desencadeasse as suas cóleras por sobre as nossas cabeças.

Por que é que o trovisco livra a gente de perigos, ó compadre João?

Não lhe sei dizer, Sr. Compadre, mas sempre ouvi contar que Nossa Senhora, indo para o deserto na companhia de seu esposo e do seu bendito filho, uma trovoada apanhou-a num descampado, e ela então acolheu-se ao pé de uma trovisqueira, rezando as suas orações. Vai então Nosso Senhor abençoou o trovisco em honra da Virgem Santa.

Também eu rezava a magnificat e cantava o bendito-louvado; mas não tinha medo dos trovões e gostava de ver os relâmpagos, como faíscas, riscando a atmosfera espessa, e seguia com a maior curiosidade, como se quisesse penetrar um mistério, toda a evolução do estrondo atmosférico, desde o estampido inicial, como um estalo de madeira seca, até ao sussurro longínquo, quase apagado, como o de um vagalhão que morre na areia.

***
Nos primeiros dias de Outubro, às vezes nos últimos dias de Setembro, o compadre Rabino ia encabeçar os montados, e sempre os seus encabeçamentos eram mais exatos que o cômputo das receitas e despesas no Orçamento Geral do Estado.

— O Sabugueiro está carregado de comida; deve fazer umas quarenta cabeças. O Poço Seco não pode fazer mais de trinta. O sobro está bom, mas o Sr. Compadre bem sabe, afogado em mato...

Claro está que o compadre Rabino não tinha um processo especial, um processo seu para encabeçar um montado; mas tinha a pachorra de estacar diante de cada árvore, mirando-a bem, quase contando-lhe as boletas, e assim os seus cálculos tinham a possível exatidão. Ao encetar a sua tarefa, metia umas poucas de pedras na algibeira da jaleca, lado esquerdo, cada uma das pedras correspondendo a um porco magro. À medida que ia engordando essas cabeças, passava-as para a algibeira direita, e assim, terminada a vistoria, contando as pedras que tinha nessa algibeira, sabia quantas cabeças fazia o montado. Podia vir mau tempo; as geadas queimarem a boleta; o vento sacudia as árvores, formando soleiras que o gado não podia levantar, ficando para ali a comida a estragar-se. Com estes acidentes nada tinha o compadre Rabino, que baseava o seu cálculo na inspeção direta e confiava na regularidade dos fenômenos atmosféricos, mais do que era permitido à sua experiência de maioral.

Quando eu apanhava licença para ir ao Poço Seco levar as comédias ao compadre Rabino, que ali andava com o alfeire, o meu contentamento não tinha limites. Era uma jornada de vinte e tantos quilômetros montado no Carrula, um macho velho que havia em minha casa, muito manso, muito vagaroso — não mudava uma pata sem pedir licença à outra. Havia um perigo no caminho, se o Inverno era de chuvas copiosas — a ribeira de São Romão, que enche com facilidade e é caudalosa como um rio africano. Recomendava então meu pai:

— Se o macho fizer querena de não atravessar a ribeira, não o obrigue, venha-se embora.

Na verdade o macho sabia calcular muito melhor do que eu o volume de água que levava a ribeira, e porque era um animal calmo, raciocinador, em ele recusando atravessá-la, o que havia a fazer de melhor era aceitar-lhe a indicação.

As comédias ficavam aviadas de véspera, de modo que eu podia abalar cedo, à hora que me aprouvesse, e como não pregava olho em toda a santíssima noite, a antegozar a jornada, mal luzia o buraco saltava da cama, e era num rufo enquanto me punha a caminho.

A alegria do compadre Rabino em me vendo, e a sua carinhosa solicitude em arranjar-me um bom almoço que eu dispensava quase sempre por ter almoçado a choutear no Carrula.

— Os Srs. Compadres como estão? os manos?, toda a mais família?

Estavam todos bem, e recomendavam-se muito.

— Quanto estimo! Quanto estimo!

Guardadas as comédias e dada a ração ao macho, o compadre Rabino convidava-me a ir ver o gado, ia dar uma volta pela herdade, convite que sempre aceitava, jubiloso, vendo-me tratado como uma pessoa grande, um homem que fosse dono daquilo tudo.

— Isto é uma bela herdade, Sr. Compadre. O Sr. Seu Pai nem sabe o que aqui tem. Se andasse limpa, fazia o dobro do gado, não falando da pastagem, que podia ser desfrutada com ovelhas. Mas quê!... Há aí estevas maiores que as azinheiras. Então os sobreiros, coitadinhos, até faz pena olhar para eles. Alguns já são velhos; mas as estevas e as daroeiras chupam-lhes as raízes, e os pobres, em vez de crescerem, até parece que mínguam. Só com o dinheiro da cepa, vendida para carvão, o Sr. Compadre limpava a herdade sem por nada da sua algibeira.

Para me tornar mais sensível aos seus argumentos, o compadre Rabino levava-me por onde o mato era mais espesso, recomendando-me sempre que tivesse cuidado não fosse rasgar o fato e fazendo-me notar que as árvores, ali metidas, nem rama davam, quanto mais boleta.

Eu concordava com o compadre Rabino, às vezes nem sequer ouvindo o que ele dizia, entretido a colher medronhos, a colhê-los e a comê-los, porque eles eram magníficos, muito vermelhos, grandes e carnudos.

— Não se meta muito neles, Sr. Compadre, porque pode agarrar uma bebedeira. Eu logo apanho uma porção para levar.

Se o gado estava bom, o compadre Rabino não se dispensava de me dizer que melhor ele estaria se meu pai, fazendo como ele tinha aconselhado, deixasse ficar no monte umas trinta cabeças para levar à Feira de Castro. Se estava magro, pior que à saída do restolho, explicava que se tinha perdido muita comida com as geadas e que o gado, tendo de ir beber fora da herdade, perdia nessas andanças muito lustro e chorume.

— Ele água há em toda a parte, Sr. Compadre, o ponto é procurá-la. Todas as herdades que pegam com a nossa têm água com fartura. Ainda no outro dia, no Azinhal, abriram um poço, e quando chegaram à fundura de pouco mais de um homem, veio um jorro de água que parecia um braço de mar. Ora, se há de haver aí água! O Sr. Compadre o que devia era trazer aqui um vedor e abrir um poço onde ele dissesse.

Eu nunca tinha pressa de abalar, mas o compadre Rabino é que nunca se esquecia de que eu tinha de fazer, para chegar ao monte, umas boas três léguas da velha.

— Vão sendo horas, Sr. Compadre. A jornada é comprida, e o machinho não é grande coisa a andar.

Se à ida eu não tinha entrada em casa do compadre Rabino, passando fora de Messejana, à volta não me dispensava de o fazer, o que dava uma grande alegria à comadre Maria Inácia e à tia Mônica — além de que me fazia pousar em cavaleiro perante as gentes do povoado.

Quem me dera nesse tempo!

A comadre Maria Inácia era das mulheres mais feias da vila e termo, mas a sua fealdade não era repulsante, antes a disfarçava, quase tornando-a simpática, uma bondade que a todos prendia. Eu era, para ela, o Sr. Compadrinho, e por seguro tenho que ela não distinguia, na repartição dos seus afetos, alma afetuosa que era, entre os seus filhos e netos e os senhores Compadres das Mesas, grandes e pequenos.

A tia Mônica, baixota, redondinha, era surda como uma porta e falava a toda a gente quase a gritar — como se os outros é que fossem surdos. Era de uma alegria exuberante, fato excepcional nos surdos, que são, por via de regra, de uma tristeza sombria, ásperos, quase agressivos no seu trato. Os cegos, pelo contrário, são criaturas de bom humor, muito expansivos, de fisionomia aberta e iluminada, como se a luz que lhes falta nos olhos se lhes difundisse na cara. Figuro a hipótese de não ouvir, e parece-me que em pouco isso alteraria o meu viver habitual; figuro a hipótese de não ver, e instintivamente levo a mão à algibeira a verificar se trago o revólver.

Era uma grande frasquejadeira, a tia Mônica, e fazia uns ladrilhos de marmelada que eram dignos da mesa de um rei, sem quebra das minhas convicções republicanas. Diz-se que há famílias de bandidos, verdadeiras dinastias de facínoras, como se os germes da criminalidade andassem diluídos no sangue e fossem passando de uns para outros por via hereditária. Pois também há famílias de gente boa, dinastias de homens honrados e mulheres castas, podendo-se afirmar que nenhuma excederia em pureza a que o compadre Rabino representava.

De uma vez... Era quinta-feira de Ascensão, e o compadre Rabino, todo barbeado, com fato domingueiro, apareceu no monte pela meia tarde. Via-se que tinha bebido a sua goladinha porque falava com muita vivacidade e gesticulava com alguma exuberância.

Tem vagar, compadre João?

Se a Sra. Comadre precisa de mim, lá o vagar arranja-se.

Tratava-se de colher uma porção de avenca, da muita que o poço tinha, e que minha mãe queria guardar, bem seca, para cozimentos.

Aqui vamos todos a caminho da cerca, lá embaixo, rente ao barranco, o compadre João com uma grande escada às costas, as criadas com o farnel, minha mãe com uma joeira destinada à avenca, meu pai com o mais pequeno de meus irmãos pela mão, e o Manuel Narciso, no seu abominável saracoteio de maricas, levando ao quadril, como as mulheres, uma infusa com vinho.

O poço tinha mais de um homem de água, e quando o compadre Rabino começou a descer a escada para colher a avenca, meu pai recomendou-lhe que tivesse muito cuidado, não fosse cair. De tal forma ele se arranjou que lhe escorregaram os pés ao mesmo tempo, e aí vai deslizando pela escada, sem querer largar a joeira. Já metido na água até ao pescoço, agarrou-se escada com as duas mãos, conseguindo sair do poço sem um fio enxuto.

Ficou mal, compadre João?

Nada, mal não fiquei; mas ainda lá volto antes de mudar de copa, que a Sra. Comadre não há de ficar sem a avenca.

Era dedicado até este ponto o compadre João Rabino.

Explicava ele depois, no outro dia:

— Quando me escorregaram os pés, cuidei que ia morrer afogado; mas assim que entrei na água, ergui os olhos ao céu e vi Nossa Senhora da Assunção no bocal do poço a rir-se para mim. Foi então que deitei fora a joeira e me agarrei à escada com unhas e dentes.

Ninguém mais tinha visto a Senhora da Assunção no bocal do poço a rir-se para o compadre Rabino; mas tinha-a visto ele, e como ao seu aparecimento atribuía a sua salvação, mandou-lhe dizer uma missa cantada, e ofereceu-lhe um alqueire de azeite, que naquele ano se vendia a quartinho.

***

As porcas afilhadas era o compadre Rabino quem tratava delas — delas e dos filhos. A cortelhada, graças aos seus cuidados, parecia uma creche em que as crianças fossem bacorinhos.

Andava tudo num brinco, o corredor, ao centro, varrido duas vezes ao dia, e as camas de junco, nos cortelhos, renovadas amiúde para que não estivessem sujas.

— O porco é o animal mais asseado que há, Sr. Compadre.

Porventura o burro será o mais estúpido animal de quantos existem?

É preciso conhecer muito pouco o homem para sustentar uma opinião semelhante. Certo que de um indivíduo muito estúpido se diz que é muito burro; mas não é menos certo dizer-se que tem talento como um burro um indivíduo que é muito inteligente.

Os porcos não bebem a água suja do maceirão, e quando dormem no pocilgo, não urinam na cama, se a hora certa, pela noite adiante, o maioral tem o cuidado de os fazer sair — procedendo como as mães solícitas com os filhos pequeninos.

Porcas havia — grandíssimas porcas — que não faziam caso das crias, e então o compadre Rabino moía a paciência a demovê-las dos seus ruins propósitos, fazendo-lhes todas as gatimanhas que podem enternecer... um suíno. Dava-lhes palmadinhas na testa e no lombo, fazia-lhes cócegas muito levemente na barriga, e com muita arteirice ia pondo os bacorinhos a mamar, mais conhecedor da psicologia das fêmeas, sejam porcas, sejam mulheres, que muitos psicólogos de carreira. O leite é uma secreção que precisa de ser exaurida para que as fêmeas que o produzem tenham saúde.

Com muita arte, o compadre Rabino fazia adotar por uma porca os filhos de uma outra, e as porcas, honra lhes seja, prestavam-se complacentemente a esta manobra, dando assim aos humanos um grande exemplo de abnegação.

Às vezes, o compadre Rabino aparecia de semblante carregado, o ar triste de um homem que passou por uma grande contrariedade ou sofreu um grande desgosto.

Há alguma novidade, compadre João?

Novidade!... Esta noite pariu aquela marrã que ficou mal capada e comeu os bacorinhos. A minha vontade foi dar cabo dela! Eram cinco bacorinhos tão perfeitos! Não torna a fazer outra, isso lhe juro eu. Por minha vontade, já ela cá não estava há muito tempo... Parecia que me adivinhava o coração!...

As porcas não são as únicas fêmeas que comem os filhos num acesso de loucura puerperal; mas entre elas o fato dá-se com relativa frequência. Os que ignoram a sua razão científica atribuem-no a uma perversão de instintos, a uma ferocidade canibalesca, que é a negação do que há de fundamental na psicologia das mães. Nunca pude compreender a razão por que o Cristo, fazendo sair os diabos do corpo de certas pessoas, os autorizou a meterem-se no corpo de uns suínos que andavam ali perto foçando e logo desataram a correr para o mar, afogando-se em tropel. Eles não eram escribas nem fariseus — filósofos de tromba retilínea, alheios a toda a especulação religiosa.

O compadre Rabino!

Como não havia de querer-lhe muito se ele, incapaz de mentir em seu proveito, mentia para me livrar de uma sova, e Deus sabe de quantas me livrou a sua complacência na mentira! Pelas debulhas, à hora de maior calor, no giro do meio-dia, apanhando meu pai deitado e minha mãe entretida a repartir o jantar da ganharia, eu abalava com outros moços e íamos nadar num dos pegos do barranco, a que se chamava o Burdo. Mesmo suando, atiravamo-nos à água, e ali andávamos, os que sabiam nadar, serigaitando dentro do pego na desenvoltura de golfinhos. Durava a folia uma meia hora, porque eu precisava de chegar ao monte com o compadre Rabino, que me serviria de testemunha abonatória, caso minha mãe tivesse dado pela minha escapulida.

Tu foste nadar?...

Nadar, Sra. Comadre, não foi. Esteve com a gente à sombra, debaixo de uma oliveira.

***

Pouco dado a especulações metafísicas, o compadre Rabino nunca inquirira das razões por que Deus criara os animais daninhos e toda a bicharada inútil. Mas não se conformava com a criação dos ciganos, gente incapaz de trabalhar, vivendo só do roubo e da burla.

— Com ciganos nem para o céu.

Ora sucedeu que uma vez, pela Feira de Garvão, em princípios de Maio, um bando de ciganos chegou ao monte, já quase noite, e pediu agasalho.

— Fiquem para aí.

Apeteceu ao compadre Rabino, depois da ceia, visitar o arraial dos ciganos, e travou-se de conversa com um deles, já velho, mais bem encarado que os outros.

Não vai à feira, maioral?

Não vou. Tenho aí uma burrita para vender, mas fica para a Feira de Santo Antônio.

Eu compro-lhe a burra.

No dia seguinte, logo pela manhã, lá estava o cigano ao pé dos porcos, decidido a comprar a burra.

A primeira ideia do compadre Rabino foi não vender a burra ao cigano, nem que ele lhe desse por ela um conto de réis. Mas entrou a conversar, a discutir, e daí a pouco estavam encalhados no preço, o cigano a dizer que não podia dar mais de seis mil e quinhentos, e o compadre Rabino jurando que lha não dava por menos de duas libras — tão certo como estar-nos Deus ouvindo!

A burra não era grande coisa, já velha, parida umas poucas de vezes, mas não tinha as mazelas que o cigano lhe atribuía. Pois se ele até fez com que o compadre Rabino lhe visse uma névoa no olho esquerdo!

O caso é que a burra foi vendida pelos 6$500, e ainda a corja não tinha saído da herdade, já o compadre Rabino clamava que o cigano o tinha roubado porque a burra valia muito mais.

Passados uns quinze dias, os mesmos ciganos apareceram, bivacaram no mesmo lugar, mandando dizer ao monte que ali estavam, para efeitos da ceia.

O compadre Rabino não se conteve que não fosse de visita ao arraial dos ciganos, disfarçadamente, como quem não quer a coisa, a ver se eles ainda se não tinham desfeito da burra.

Vossemecê arranjou-me bem, maioral. A burra tinha alifafes nas duas mãos, e em andando meia légua entrava numa ofegância que parecia querer deitar os bofes pela boca.

Então vendeu-a?

Qual vendi! Entreguei-a pelo primeiro dinheiro que me ofereceram por ela, sempre a ver quando caía para nunca mais se levantar. Olhe que sempre foi uma partida!...

Pois se você ainda a tivesse, desfazia-se o negócio, e eu dava-lhe pela burra o mesmo por que lha vendi.

Conversa para aqui, conversa para além, uma cigarrada, acabando o cigano por lhe perguntar se já estava governado com respeito a jumenta.

Não estou. Já agora espero a Feira de Santo Antônio.

Pois eu trago aí um animalzinho que lhe deve servir.

Sem esperar resposta, foi buscar a burra, bateu-lhe duas palmadas na anca e disse ao compadre Rabino que a montasse e visse o belo cômodo que dava.

Embora resolvido a não fazer negócio, o compadre Rabino pôs-se a mirar a burra, abriu-lhe a boca, examinou-lhe os dentes, curvou-se para lhe examinar os cascos, deu-lhe palmadinhas na barriga.

— O raio da burra — murmurou por entredentes —, é a outra por uma pena.

Saltou o cigano para as ancas da burra e, excitando-a com uma dupla chicotada nas ilhargas, obrigou-a a correr na extensão de alguns metros, voltando na mesma corremaça ao ponto de partida.

— Isto vale quanto pesa, maioral. E então mansinha como uma borrega.

Fechou-se o negócio — doze mil réis.

No outro dia, quando o compadre João Rabino apareceu no monte, todo ancho, montado na sua jumenta, os outros criados gritaram, em coro, mal o viram:

— Olha a burra do tio João Rabino! Como é que ela lhe veio parar de novo às mãos, ó tio João?

O compadre Rabino sorriu-se, desdenhoso, e disse-lhes, como para dispensar outros argumentos:

Vocês até se esqueceram de que a minha burra era bragada na barriga. Acudiu logo o Manuel André, que por ter sido almocreve toda a vida conhecia bem as traças dos ciganos:

Lá isso, tio João, não quer dizer nada. Ora espere aí que eu já lhe conto um conto...

Daí a pouco, estava o Sr. Manuel André, armado de uma luva e ferro de limpar as mulas, a esfregar a barriga da burra como se fosse um sobrado. A água e o sabão fizeram o milagre, pondo a descoberto, na barriga desta burra, a mancha branca que tinha a outra no mesmo lugar! Um bocado de cortiça queimada, umedecida com azeite, fizera desaparecer a mancha branca, que era, para o compadre Rabino, a característica inconfundível da sua burra — inconfundível e inapagável.

Os ciganos!

Rebeldes a toda a disciplina, incapazes de qualquer trabalho honesto e aturado que lhes garanta os meios de subsistência, os ciganos vivem do roubo, e nada mais; é, bem consideradas as coisas, o comércio que eles fazem com bestas. Nas mãos de tal gente não há cavalgadura molengona, e apresentado por um cigano numa feira, qualquer vil pileco tem ares de um cavalo de cem moedas. Comprar, vender e trocar bestas é o único ofício que exercem, o único comércio que praticam, e cada uma destas operações nada mais é do que uma modalidade do roubo, o roubo quase sempre astucioso, algumas vezes, não podendo ser de outra maneira, violento.

— Dá-me licença que monte o cavalo? Aqui tem o sinal, para o caso do negócio me convir.

Escarranchado na sela, o cigano mete o cavalo num trote discreto, e quando se apanha fora da corredoira, por aqui me sirvo, numa correria doida, como se fosse tirar o pai da forca. Grande banzé, um levantamento geral contra os ciganos, que são obrigados a abandonar a feira, mas que na confusão sempre larapiam qualquer coisa, retirando alguns com a cabeça rachada.

É má gente, dizia meu pai. Mas corredoira em que não haja ciganos, não presta.

Estou a vê-los no arraial que eles faziam ao pé do monte, por ocasião das feiras no distrito de Beja para baixo! Era um acampamento de gente imunda, esfarrapada, dormindo ao relento, sobre enxergas, numa promiscuidade bestial. São muito prolíficos os ciganos, e isso explica porque a raça subsiste, a despeito de todos os baldões da sorte. Casam segundo o seu rito, e diz-se que as mulheres, por via da regra, são de uma grande fidelidade conjugal. Envelhecem muito cedo, as ciganas, principalmente quando têm filhos, e como velhas são de uma fealdade execrável.

As raparigas têm uma singular predileção pelas cores vistosas, berrantes, e eu gostava muito de as ver, carregadas de saias, quer fizesse frio, quer fizesse calor, saias de barra vermelha, cobrindo-as um vestido de folhos, em jeitos de balão policrômico. O seu penteado — uma garridice — era bizantino, de risco ao meio, e fazia-me desagradável impressão, quase de nojo, o lustro do cabelo, quase a escorrer banha de porco.

Os rapazes, altos e magros, olhos negros, a face macilenta, os dentes muito brancos, os lábios descorados, uma barbinha rala salpicando-lhes a cara, encantavam-me pela sua agilidade, sobretudo quando jogavam o pau, dando saltos prodigiosos.

Em se dizendo "Aí vêm os ciganos!", minha mãe dava logo ordem para se meter em casa tudo aquilo, fosse o que fosse, a que eles poderiam deitar a mão, e mais cedo que de costume, antes do sol-posto, recolhia a criação — as galinhas e os perus, indo o moço da água passar vistoria às serras de palha e ao monturo da lenha, delgada e grossa, em demanda de algum ovo que por lá houvesse.

Pediam tudo, os ciganos, e não havia recusa que os desanimasse. "Uma gotinha de azeite, Sra. Lavradora! Um bocadinho de toucinho, por alma de quem lá tem no outro mundo! Umas ceroulas que o Sr. Lavrador já não queira! Uma camisinha para o meu menino, que não tem que vestir! Uma chávena de mel para um xarope! Uns sapatos que a Sra. Lavradora já não use! Uma gorpelha de palha para os nossos burrinhos! Uma esmolinha em dinheiro para ajuda de uma missa à Senhora da Cola!"

Os ciganos!

Singular raça a desses boêmios, incapazes de se fixarem em qualquer parte, e na sua eterna peregrinação, hoje aqui, amanhã além, praticando o roubo como um modo de vida, talvez honestos adentro de uma moral que as gentes civilizadas ignoram!

***

Velho de mais de 80 anos, mas ainda rijo, andando sem arrastar os pés, o compadre Rabino, sabendo que eu estava em Aljustrel, foi visitar-me.

Acho o Sr. Compadre estragado.

São os anos, compadre João.

Os anos! Parece-me que ainda me doem os braços de o trazer ao colo.

Morreu em terça-feira de Entrudo e deve ter ido direitinho ao céu, alojando-se na mansão destinada aos bons — se é que não se pratica lá uma injustiça igual à da Terra.


---
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...