6/26/2019

Literatura (Ensaio), de Alexandre Herculano



Literatura
Qual e o estado da nossa literatura?
Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?
Estas duas perguntas pedem nada menos do que a dolorosa confissão da decadência em que se acha em Portugal a poesia e a eloquência, e o encargo dificultoso de indicar os meios de melhoramento no ensino e no estudo delas. Sem pretender que sejam as únicas, nem as melhores, exporemos a série das nossas ideias sobre este duplicado objeto.
A convicção de uma verdade literária produziu nos séculos XVI e XVII um erro na Itália, que, estendendo-se à Espanha e a Portugal, transviou da legítima direção todos, ou quase todos os escritores da época chamada do seiscentismo. Sentiu-se que a metáfora, a mais bela de todas as figuras Poéticas e oratórias, a mais repetida, a mais necessária mesmo nos discursos comuns da vida, abundava por isso nos bons escritores clássicos e modernos, que já nesse tempo ilustravam a Europa: viu-se que as passagens belas ou sublimes de Horácio, Píndaro e Virgílio, de Dante e Ariosto, deviam-lhe em grande parte a sua beleza e sublimidade, e isto era certo; inferiu-se daí que a metáfora era o principal e talvez o único meio da poesia e eloquência, e que ela devia revestir todas as imagens e sujeitar ao seu império todos os gêneros, todos os estilos, e isto foi um erro: a vertigem metafórica se apossou dos poetas e oradores, e, por uma consequência natural, o fundo das ideias esqueceu e só se olhou para as formas: à sombra desta mania prosperavam os conceitos e as agudezas, chegando as letras a cair numa barbárie, que tanto mais irremediável parecia por ser filha da civilização literária já exagerada. O Zodíaco soberanoOs cristais d'almaA Fênix renascida e outros muitos escritos desse tempo, são lamentáveis monumentos da corrupção de gosto a que chegou Portugal no princípio do décimo oitavo século.
Porém o mal não foi sem remédio, e os membros da Arcádia fizeram volver as letras à severa singeleza das puras formas da Grécia. Muito aí deve a Garção, Gomes e Quita; mas ninguém tanto como Diniz mostrou a superioridade do gênio e do gosto que caracterizaram a segunda metade do século XVIII. Dando os seus principais cuidados à poesia chamada pindárica, gênero difícil pelo audaz das figuras, pelo gigantesco das imagens, ele soube escapar aos defeitos e frioleiras do seiscentíssimo que bebera na escola, em composições nas quais era mui fácil introduzir-se o mau gosto; e ainda que Quita e Garção tentaram o mesmo gênero, em nosso entender, Diniz não foi emulado. Capaz de todos os tons, no burlesco, no pastoril, no ditirâmbico, nos deixou apreciáveis exemplos, e as suas dissertações sobre a poesia campestre são ditadas por um grande conhecimento da arte, ainda que não excedam em merecimento teórico as anotações de Gomes às próprias poesias, nem os trabalhos de Freire e posteriormente de Barbosa e Fonseca sobre as Poéticas de Aristóteles e Horácio.
Entretanto nenhum dos poetas e literatos do século de José I olhou as letras de um ponto de vista eminente. Semelhantes aos escritores do século de Luís XIV, foram muito eruditos, mas pouco filósofos, e assim o caráter das duas literaturas é a confusão dos princípios absolutos com os de convenção. Cingindo-se quase cegamente à autoridade dos antigos, miudeada e explanada pelos comentadores, a sua obediência ilimitada a alheias opiniões contribuiu muito para a posterior decadência. A impertinente questão dos arcaísmos e neologismos veio tomar o lugar das discussões da Arcádia e essa ocupação dos meios talentos e da meia instrução, influindo sobre objetos mais importantes, viciou e acanhou toda a literatura. Se as notas, que sobre palavras e frases Francisco Manuel ajuntou às suas poesias, fossem dedicadas a coisas, quão ricas messes nós colheríamos do saber deste homem! Mas infelizmente não foi assim, e a polêmica suscitada sobre o mérito do imortal cantor dos Lusíadas, pelos insultos que contra ele vomitou o orgulhoso autor do gelado Oriente, mostraram a que mesquinho estado tinha a crítica chegado em Portugal. Parte dos reparos que Macedo copiou dos críticos franceses ficaram sem cabal resposta, porque os sistemas estéticos mais liberais e filosóficos que o dos antigos, e o da escola de Boileau, eram em geral desconhecidos entre nós, e estamos persuadidos de que o juízo a respeito do tão grande quanto infeliz Camões ainda resta a fazer, apesar da abundância de escritos que sobre este objeto se publicaram.
Enquanto assim entre nós a crítica se apoucava, um sentimento vago de desgosto pelas antigas formas Poéticas, a influência da filosofia na literatura, a necessidade que sentia o gênio de beber as suas inspirações num mundo de ideias mais análogas às dos nossos tempos, e enfim, várias outras causas difíceis de enumerar, começaram a criar na Europa uma Poética nova, ou, digamos antes, a fazer abandonar os cânones clássicos. A Alemanha foi o foco da fermentação, e foi lá que os princípios revolucionários em literatura começaram a tomar desde a sua origem uma consistência, e a alcançar uma totalidade de doutrinas metódicas e consequentes, não dada, ainda hoje, ao resto das nações. Lá não havia a lutar com a glória nacional para a introdução de novas ideias, porque os monumentos da escola afrancesada de Opitz não honravam demasiadamente o dogmatismo intolerante do século de Luís XIV, impropriamente chamado clássico, e Bodmer e Breitinger deram começo à revolução ousando preferir a Poética de Shakespeare e de Milton à de Racine e de Boileau; contudo as opiniões na Alemanha têm-se desviado, em parte, desta direção e as ideias de Schlegel já têm reagido na sua tendência um tanto nova, sobre a literatura inglesa donde tiveram origem. Na França o antigo sistema, amparado pelo renome de muitas produções imortais, disputa ainda a campanha às inovações que entre esse povo, extremo em tudo, têm chegado a um deseafreamento bárbaro e monstruoso.
Mas a Portugal não coube o figurar nesta lide. A parte teórica da literatura há vinte anos que é entre nós quase nula: o movimento intelectual da Europa não passou a raia de um país onde todas as atenções, todos os cuidados estavam aplicados às misérias públicas e aos meios de as remover. Os poemas D. Branca e Camões apareceram um dia nas páginas da nossa história literária sem precedentes que os anunciassem, um representando a poesia nacional, o romântico; outro a moderna poesia sentimental do Norte, ainda que descobrindo às vezes o caráter meridional de seu autor. Não é para este lugar o exame dos méritos e deméritos destes dois poemas; mas o que devemos lembrar é que eles são para nós os primeiros e até agora os únicos monumentos de uma poesia mais liberal do que a de nossos maiores.
Contudo, não existindo ainda um só livro sobre as letras consideradas de um modo mais geral e mais filosófico do que os que possuímos; sem uma só voz se ter levantado contra a autoridade de Aristóteles e de seus infiéis comentadores, será impossível emitir um juízo imparcial sobre escritos de semelhante natureza. Julgá-los por formas que o poeta não admitiu, será um absurdo, enquanto se não provar a necessidade dessas formas; e isto, mesmo que elas sejam legítimas, só pode ser resultado de um maduro exame ou de uma polêmica sincera. Antes disso os velhos eruditos, vendo ofendida a inviolabilidade de um tropel de preceitos que julgavam imprescritíveis, só darão ao gênio nascente o sorriso do desprezo; e os mancebos poetas, a quem o sentimento incerto das opiniões contemporâneas dirige por estradas que muitas vezes não conhecem, farão que as suas poesias corram brevemente parelhas com os desvarios que tem ultimamente manchado a mais bela das artes na França e na Inglaterra.
Um curso de literatura remediaria os clanos que devemos temer, e serviria ao mesmo tempo de dar impulso às letras. Em Portugal ainda há homens cheios de vasta erudição, de filosofia e de gênio. Tiranias mais ou menos longas, mais ou menos cruéis, os têm conservado na obscuridade de que devem sair, agora que se não receia a instrução, agora que os resguarda a égide da lei. Nós não desejaríamos, porém, que uma tal obra fosse puramente órgão desta ou daquela escola; deste ou daquele partido. Convém que os princípios opostos sejam examinados de boa fé e sem acrimônia: a intolerância em ideias políticas ou religiosas é odiosa; em matérias científicas é ridícula. Se coubesse nas nossas diminutas forças um trabalho de tanta magnitude, nós começaríamos por discutir qual é o objeto da poesia, e desta questão nos parece que já se tirariam importantes resultados, e que as duas características — o icástico e o ideal — que distinguem as tendências do antigo e do novo sistema, surgiriam dela para nos servirem depois na resolução de vários problemas que se nos apresentariam na série das nossas indagações. O exame das diferentes teorias sobre o belo e o sublime, e as consequências, objeto imediato a que nos conduziriam os primeiros raciocínios, dariam em resultado os princípios necessários e universais de todas as Poéticas, e consequentemente aqueles sobre que deveríamos emitir uma opinião absoluta e exclusiva: no resto respeitaríamos as opiniões de cada povo, de cada época, em tudo aquilo em que elas se não opusessem aos princípios gerais. Indagando a história da poesia nos diversos tempos e nações, vê-la-íamos depois da queda da bela literatura greco-latina, surgindo do norte com um sublime de melancolia e mesmo de ferocidade, próprio dos povos que a inventaram: veríamos esta poesia fundida com os restos da romana, e posteriormente com a árabe, produzir as diversas espécies do romântico, dessa poesia variada e verdadeiramente nacional, na França e nas duas penínsulas, e termo médio entre a bela simetria clássica e o sublime gigantesco do setentrião: acharíamos essa originalidade nascente da literatura da meia-idade destruída quase no ressurgimento das letras, e substituída por teorias antigas, que, conservando sempre o mesmo nome, foram sendo enxertadas em ideias, em preceitos modernos: encontraríamos, finalmente, o espírito de liberdade e de nacionalidade da atual literatura. O quadro das novas opiniões nas suas variedades todas, as vantagens ou danos resultantes de cada uma comparada com os elementos universais da arte, nos poria em estado de formar um corpo de doutrina que determinasse as proporções essenciais da futura poesia portuguesa, completando ao mesmo tempo uma série de juízos imparciais sobre as produções das diferentes eras e das diferentes escolas, em relação ao seu gênio particular, e à filosofia geral das letras.
Todos sabem que os antigos dividiam a eloquência em três gêneros, que muitas vezes se confundem: um destinado ao elogio ou à invectiva; outro a fazer condenar ou a absolver, a invocar a lei a favor do inocente, a invocá-la contra o criminoso; outro, enfim, destinado a ventilar os grandes interesses das nações nos congressos ou na tribuna popular. Foi a estas três classes que eles reduziram a oratória, divisão que ainda hoje se conserva e que, apesar da sua arbitrariedade, nós respeitaremos em nossas reflexões. Em Portugal, onde a representação nacional não existia, onde os tribunais eram fechados às defesas orais e aos juízos públicos, e a arte de defender e acusar consistia geralmente em conhecer os meios de opor entre si a nossa ora mesquinha, ora contraditória, ora obscura legislação, e numa dialética as mais das vezes pueril, tanto o gênero deliberativo como o judiciário não tinham quase aplicação: ficava somente a eloquência dos panegíricos para o orador profano, e uma mistura de todos os três gêneros para o orador sagrado; mas em nenhuma das duas classes temos de que nos gloriar neste século. Por uma parte elogios de encomenda ou feitos com miras de interesse pessoal não podiam sair da boca do orador acompanhados das inspirações do entusiasmo; e sem convicção e persuasão própria não se pode convencer nem persuadir os outros: por outro lado a eloquência sagrada nunca pode preencher inteiramente o fim da arte, uma vez que não divague do seu objeto — a moral religiosa. O fim da eloquência é persuadir; para isto não só é necessário mover os afetos, mas também obrigar a razão. O usar deste meio, nervo principal da oratória entre as nações civilizadas, seria ridículo perante um auditório cristão. O incrédulo não vai ouvir sermões, e o orador que empregasse uma lógica severa para provar a conveniência da moral do cristianismo, a quem disso está de antemão convencido, obraria com tanta impropriedade, como se o missionário diante de homens de diversa crença buscasse tão somente mover os afetos sem falar à razão.
O exemplo de dois grandes homens parece opor-se ao que temos acabado de dizer. São eles Bourdalone e Bossuet: o primeiro empregando a severidade do raciocínio, o segundo tateando todas as cordas do sentimento, excitando todos os terrores, todas as esperanças da imaginação, e ambos considerados como grandes modelos. Mas de que são eles modelos? É, justamente, dessa eloquência imperfeita, cujo vício se contém na sua própria natureza. Com efeito, Bourdalone não preencheu, nos discursos em que se lançou no abismo dos mistérios, o objeto da arte: esta dirige-se à vontade, pela ação; e a defesa metafísica bem que eloquente dos dogmas cristãos não requer ação alguma. Bossuet está no caso contrário: para que as suas orações tenham efeito é necessária a fé. O homem indiferente em matérias de religião, e que não possuir gosto bastante para avaliar seu merecimento, dormirá tranquilamente à leitura de qualquer delas, enquanto uma filípica ou olíntia de Demóstenes fará sempre impressão em todo o homem que tiver uma Pátria, uma fortuna a perder. Sabemos quanto nos podem opor sobre estes dois oradores, e sobre a oratória sagrada em geral; mas, não sendo possível o entrar aqui numa questão bastante vasta que estas reflexões não comportam, lembraremos só aos leitores que nós consideramos os panegíricos e os sermões de controvérsia como alheios do púlpito; que Bourdalone, de todos os oradores sacros o que mais sentiu a necessidade dos raciocínios como meio da eloquência, nos seus panegíricos fugia constantemente para a moral, o que nos faz crer que ele a considerava o objeto da sua arte como acima dissemos. Em último lugar transcreveremos uma cita da tentativa sobre a eloquência do púlpito pelo abade Mauri, obra a mais acreditada entre as desta natureza: J'avoue, diz elle, qu'il est très-rare de pouvoir suivre cette marche didactique dans nos chaires, où les discussions morales ne sont jamais problématiques, et où la conscience, qui ne ment jamais, ne saurait contester la vérité à ses remords. O que entra justamente na ordem de nossas ideias, tanto sobre o objeto como sobre o defeito constitutivo da eloquência sagrada.
Voltando ao nosso país, na mesma eloquência do púlpito, a única em Portugal cultivada, só um orador deixou pela estampa monumentos dignos de exame, se atendermos à fama popular que para seu autor granjearam: já se vê que falamos do P. Macedo. Como orador sagrado, Macedo deveu a popularidade de que gozou a um falso brilho no fundo das ideias, e sobretudo a essa instrução perfunctória que começa a invadir a capital e que é mais danosa às letras do que a ignorância. Sem vislumbres da sublimidade de Bossuet, sem a unção de Fénelon, sem a profundeza de Bourdalone, sem a nobre e evangélica simplicidade de Paiva de Andrade, ganhou seu renome com os ouropéis de Sêneca; mas tal renome, se ainda soar na posteridade, não será para as suas cinzas um bafejo consolador de glória.
Porém não é a eloquência sagrada que deve hoje chamar a nossa atenção: ela tem sido o luxo da religião, e nós desejamos vê-la substituída por meios mais conducentes a fazer prosperar esta. A bela e sublime moral do evangelho não precisa dos socorros da arte de Demóstenes e Cícero; e a religião prática de um clero virtuoso, seria a homilia mais eloquente para insinuar a moral do Crucificado.
Antes de passar avante ocorreremos a um reparo que farão os leitores: o de não falarmos sobre a eloquência desenvolvida nas cortes da nossa primeira época de liberdade, que forma uma exceção de quanto dissemos sobre a eloquência portuguesa do 19º século. Tivemos para isso razões, e talvez a principal seja o quão longe nos levaria o exame de alguns discursos ali pronunciados; entretanto diremos por honra da nossa Pátria que então apareceram mui grandes homens, e que desejaríamos ver publicar uma escolha das opiniões e relatórios então ventilados, à maneira do que se fez em França das orações dos representantes nacionais desde o princípio da revolução.
É, portanto, a educar homens que ventilem dignamente as questões de interesse público nas câmaras legislativas, ou que defendam a inocência e persigam o crime nos tribunais já públicos, que o estudo e ensino desta parte da literatura se deve dedicar: é assim que nós faríamos da essência destes dois gêneros de oratória o objeto da segunda parte de um curso literário, tocando apenas de leve quanto é formal na arte e que sapientíssimos retóricos, copiando-se uns aos outros, de sobejo explicaram; mas tratando com profundeza os princípios aplicáveis principalmente aos gêneros judiciário e deliberativo em relação à nossa situação política. Para isto seria do exame da eloquência nos diferentes tempos e lugares, que nós partiríamos em nossas indagações: veríamos Demóstenes, trovejando na tribuna, armado da razão e da indignação, admiravelmente conciso e misturando com esta concisão os sublimes movimentos do patriotismo, arrastar após si a opinião das multidões; veríamos Cícero defender os seus clientes, tratar os mais importantes negócios da República quase sempre com uma gravidade e eloquência estudadas: na história da oratória moderna acharíamos a vigorosa razão de Mirabeau acompanhada de um estilo raras vezes rasteiro; acharíamos nos discursos de Maury os mais belos monumentos de uma eloquência máscula mas tranquila; e, finalmente, o frenesi inspirado pelo amor às velhas formas do absolutismo nas orações de Montlosier: passando à da Inglaterra exporíamos o gênero de Pitt, gênero severo, renovado hoje por Makintosh e Burdett, a que sucedeu o igualmente nervoso, porém mais cheio de artifício, de Burke, Sheridan e Caning, e o gênero médio de Fox, terminando assim o exame das fontes verdadeiras da eloquência.
Seria a desta última nação que nós proporíamos como principal modelo sem excetuar contudo as outras. Entre os gregos, romanos, e franceses há muito que aproveitar; mas, se é verdade que a literatura em parte depende de certa harmonia com as circunstâncias de cada povo, nenhuma eloquência é mais digna para nós de estudo do que a inglesa. Nem entre os antigos, nem na República francesa, ela estava na mesma relação com as instituições sociais que vai a estar na nossa Pátria. O orador, na discussão de uma lei perante a plebe, que deve votar sobre ela ou influir na votação, como acontece no calor das revoluções, tem de usar de meios diferentes dos que há de empregar para a impugnar ou defender em uma câmara, cujos membros são, ou devem ser, os mais conspícuos da nação por suas luzes e virtudes. No primeiro caso os raciocínios convém sejam acompanhados dos meios formais da arte para dirigir as paixões populares; no segundo, expostos a homens que conhecem a arte tão bem como o orador, sem alcançarem o seu efeito, os artifícios só atrairiam sobre ele a suspeita de má fé: isto sem pretendemos dizer que ele discuta com a secura de um geômetra as questões do público interesse; porém os seus movimentos devem surgir sinceros de um coração intimamente comovido e de nenhum modo dar a conhecer que foram tranquilamente calculados pelos preceitos de Quintiliano.
Entre os romanos, a pequena porção de leis que havia ainda nos últimos tempos da República e o espírito de generalidade a que se limitavam, dava motivo a que nas causas particulares o advogado ou acusador de qualquer réu buscasse despertar a compaixão ou a sanha dos juízes, de quem muitas vezes era guia única o senso comum e a moralidade, na falta de disposições preceptivas, e apesar da semelhança dos tribunais civis e criminais de Roma com os nossos modernos jurados, existe entre nós e eles uma diferença enorme por causa das circunstâncias legais. Hoje, entre os povos livres, há, ou deve haver, um código que previne todos os casos com clareza e exação, e o mister do orador reduz-se a provar se o seu cliente está ou não no caso da lei: então todo o pleito deverá ser uma questão de fatos provados ou prováveis, e vice-versa.
Daqui se colhe quão sóbrio ele deve ser empregando os meios que lhe ministra a arte. Clareza, ordem de ideias, lógica severa, eis os meios principais da eloquência do foro e das câmaras legislativas.
Tal é o rápido quadro do nosso modo de pensar sobre a atual literatura portuguesa, e sobre os meios de a dirigir. As curtas reflexões que temos feito sobre a poesia e a eloquência são as bases em que julgamos dever-se fundar um curso de literatura, que serviria como de introdução aos estudos mais profundos do poeta e do orador. Oxalá que dentre os nossos literatos algum se encarregue desta útil e importante tarefa.

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ALEXANDRE HERCULANO
Escrito em 1834, e publicado em: Opúsculos, tomo IX, 1909.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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