6/21/2019

Manuel Maçores (Conto), de Trindade Coelho



Manuel Maçores
Passava pouco do meio-dia quando o Manuel Maçores, que andara a lavrar toda a manhã, seguia com os bois para um lameiro do amo, numa encosta que ia dar ao rio.
Entre choupos, lá baixo, o rio ia azul — daquele azul vivo do céu, que nem uma só nuvem, ao alto, maculava, Atrás dos bois, arranjando de seu vagar uma esparrela, o Maçores ia agora muito absorvido — pensando nessa tragédia da véspera, a morte do velho cabreiro da casa, o José Candana, assassinado misteriosamente na sua cabana de colmo, bem perto dali, amanhecendo para o dia anterior.
— Tinha fígados de lobo — pensava o Maçores — o ladrão que matara o velho! — E no espírito do rapaz, habituado a coisas simples, aquela visão do pobre pastor, estirado de borco em cima da palha com a cabeça branca quase desfeita, hiperbolizara-se, horrorizando-o como uma visão de pesadelo...
— Quem seria o malvado?! Quem seria?! — pensava o rapaz. — Coitado do tio Candana!
"Para lhe roubarem o pouco que possuía do bornal que aparecera vazio, aquela cobardia de matarem um velho!" — lastimava o rapaz. E sendo, como era, amigo dele, como afinal a aldeia toda, o assassino, quem quer que fora, roubara-os também a eles na amizade do velho, nas histórias com que só ele os sabia entreter, nos conselhos da sua experiência: e nunca mais, à missa dos domingos, se tornaria a ouvir a sua voz trêmula, tão conhecida de todos, e tão querida, romper a "Santos" o hino sagrado, que, propagando-se em coro geral, como onda de luz, enchia de música a igreja toda!
Lembrava-se, lembrava-se... — Uma vez que o velho estivera doente, a missa fora sem ele uma tristeza; e até os próprios santos, no altar, pareceram estranhar aquele silêncio: "Ele, o José Candana, estará doente? — Ele, por que não viria, o José Candana?" — Lembrava-se, lembrava-se...
E mais que tudo, certa conversa que tivera com o velho, poucos dias antes, quando o topara com a cabrada à borda do rio, de manta ao ombro como sempre, o seu cajado, o seu bornal e a sua marmita, parecendo um peregrino de barbas brancas, e nos olhos azuis, muito doces, uma bondade que parecia de santo — mais que tudo, sim, essa conversa ocorria-lhe agora:
— Pois é o que te eu digo, rapaz! — admoestara-o o velho. — Foge de tentações! O melhor, se tem de ser, é casares-te.
— Isso tomara eu, tio José! — lembrava-se ele de lhe ter respondido. — Mas vá lá eu falar-lhe nisso, ao pai...
— Manda-lhe falar — tornara-lhe o velho — se não queres tu ir. Então para que são os amigos?
— Ora! — tornara-lhe ele. — O pai é rico e eu sou pobre! Respondera o pastor:
— Qual rico! Rico é cada um da graça de Deus, mas é! Deixa lá: anda-me tu com honra e vergonha, que não há pai que te negue uma filha.
— Ora!
— Desora! É assim mesmo como te eu digo!
E agora, lembrava-se bem daquele risinho do velho pastor, perguntando-lhe como em segredo:
— E ela quem é a moça, ó Manuel? Tinha-lhe respondido:
— Não digo, tio José! Perdoe vossemecê, mas isso não digo...
— Bem. Fazes bem — tornara-lhe o velho. — Assim mesmo é que é. Há muita gente que não bota logo maldade, e as mulheres, coitadas, são como um espelho: qualquer bafo parece que as suja...
Ainda lhe confessara:
— Isto já vem de pequeno, ti José, esta tineta! Mas agora, há uma temporada, ando mesmo com a cabeça perdida.
— É da idade — explicara o pastor. — E ela?
— Inda pior, ti José í
— Pior?! — admirara-se o velho com muita graça.
— Sim. Se vossemecê soubesse...
Tinham sido essas as últimas palavras que dera ao velho, porque nunca mais o havia encontrado; e já distante, lembrava-se de ter ouvido ainda a sua voz carinhosa, dizendo-lhe e repetindo-lhe:
— Foge de tentações, Manuel! Livra-te de tentações!
— Bom remédio, esse de fugir de tentações! — dizia agora o Manuel Maçores, seguindo atrás dos bois caminho do lameiro. — A boas horas!
Houve uma intercadência no pensar do rapaz. Um mendigo estava deitado à borda da rodeira, à sombra de um grande carvalho.
— Está cansado, irmãozinho! Vossemecê de onde é?
— Longe. De além-Douro. É que sou aleijado;— explicou o mendigo — e ainda hoje não comi senão uma côdea.
— Pois olhe lá que lhe não aconteça como José Candana, que o mataram amanhecendo pra ontem.
— Já ouvi. E ele quem seria?
Não reparou o Maçores que o mendigo se fizera lívido, e só respondeu:
— Não sei. Quem sabe lá? Mas quem quer que foi só arrancando-lhe a alma, e depois atirando-a aos cães!
E andando seu caminho, o rapaz ainda disse consigo:
— Que feio, este diabo! Má cara pra santo, Deus me perdoe!
... Sem o desconfiar nem sequer por sombras, acabava de passar, o Maçores, pelo assassino do José Candana...
Mas a cismar na sua aventura, ao passo dos bois muito vagaroso não tardou a esquecer o mendigo:
— "Ora, mas como fora aquilo com a Maria Rosa, mas como fora?!"
Não sabia, não atinava. E o ser filho do seu amo a rapariga, filha única, demais a mais, guardada pelo pai como se fosse um tesouro, parece que lhe fazia da aventura uma traição, e tinha remorsos... Demais, nunca chegaria a casar com ela, decerto, ao menos em vida do pai, porque ele mesmo, ríspido demais para a rapariga, estava-lhe sempre com o mesmo sermão:
— "Tento na bola, ouves? E casamento, isso há de ser com quem eu mandar."
Como fora então que ela se lhe entregara, a ele?! Tão de manso, peio tempo longo, correra entre os dois aquilo do namoro — quase não se conversando senão com os olhos, e falando só, quando se falavam, em coisa do serviço da casa — que vê-la uma noite nos seus braços, agarrados como no regresso de uma longa viagem, ainda agora lhe parecia um sonho, e a ela também... — "Mas como foi isso?!" — dissera-lhe então a rapariga.
— Não sei, não sei! Foi Deus! — respondera-lhe ele.
Um descuido, depois, pusera no segredo dos dois a velha Maria Teresa, que a amava a ela como se fosse mãe, que a criara desde pequena — que era também para ele, órfão, quase uma segunda mãe...
Angústias que ela tinha passado, a pobre mulher, ao vir a saber o pecado dos dois! E por fim, agora, também a ela a enganavam — persuadida, por um conluio, de que esses amores tinham acabado...
— Ó Manuel! pia alminha da tua mãe?!... — perguntara-lhe ela ainda na véspera.
— Sossegue, tia Maria, isso passou — respondera-lhe ele.
... Mas não passara, não, nem pelos modos tinha de passar. E o último conselho do pobre José Candana: — "Foge de tentações, Manuel, livra-te de tentações!" — atraía-o como um aviso prudente, sim mas não lograra emendar-lhe o porte...
— Seja o que Deus quiser, acabou-se!
Amando-o como doida, a Maria Rosa, maiores perigos corria a rapariga, afinal! E ainda na antevéspera — nessa noite, precisamente, em que fora morto o José Candana, e à mesma hora, talvez, a que o pobre velho, da choça, erguia para o assassino mãos suplicantes — ela lhe repetira aludindo ao pai:
— Deixa-lo! Se me matar, morro por ti!"
***
Horas antes, na manhã desse mesmo dia, o João Ferrador tinha-se encontrado com o pai de Rosa, e os dois, muito chegados, haviam estado de conversa à borda de um caminho, debaixo de uma figueira.
O João Ferrador fora o encarregado pelo lavrador de espreitar quem lhe namorava a filha, seguro de que uma noite, chegando de uma feira de madrugada, vira alguém saltar para o quintal da janela da rapariga...
Não tornara a dormir sossegado, desde então, o José Tomás; e ele mesmo, algumas noites fizera rondas até desora, a espreitar, com a clavina aperrada, algum vulto que por ali surdisse. Mas como a vida dele era por fora, hoje, numa feira, amanhã noutra, deixara o ferrador na cola do "melro", ameaçando-o, se desse pio, de lhe fazer o que faria ao outro...
— Ouviste? — dissera-lhe ele. — Sabe-me tu quem ele é, que pró vindimar depois cá estou eu.
— Sossegue! — tornara-lhe o João. — Não me espante vossemecê a caça, com algum destampatório lá por casa, e o resto deixe-mo cá. O mal já se não remedeia, e o ponto agora é apanhar o "melro".
— Bem. Combinados! — fechara o lavrador.
E avistando-se os dois, agora, o João Ferrador fora para o compadre com cara de alvíssaras, e desfechara-lhe a novidade:
— Até que já sei quem é o "melro", senhor compadre! É o Manuel!
— O Manuel, que Manuel? — interrogou o lavrador.
— O seu, o de lá de casa: o filho da Maria Maçores.
— O Manuel Maçores?! — tornou o outro estranhando a nova.
— Esse mesmo. Vi-o eu entrar depois da ceia.
— Pelo quintal?
— Pois? E quando saiu era manhãzinha.
— O malandro! — remordeu-se de ira o lavrador. — E isso hoje?
— Não senhor, amanhecendo pra ontem. Na noite do José Candana. E agora é dar-lhe cabo d.a pele, se vossemecê quer.
Queria...
Mas recolhido um instante com o seu ódio, quando tornou a si disse ao ferrador:
— Tenho uma ideia, ó compadre!
Trocaram os dois um lance de olhos, e o João Ferrador ficou-se à espera...
— Empurrar-lhe a morte do José Candana, que dizes? — aventou o lavrador. — A justiça depois que se avenha com ele.
Contrapôs o João Ferrador:
— Mas testemunhas, ó compadre?
— Testemunhas, ninguém vai matar um homem diante de gente, pró roubar!
Ia pôr alguma objeção o João Ferrador.
— Homem! cortou-lha o outro — ele essa noite dormiu no palheiro?!
— Não, isso não podia.
— Então aí está! E os outros moços não o hão de saber? Se não dormiu no palheiro, onde é que dormiu?...
— Ah! — fez admirado o João Ferrador.
— E tu não vais jurar também que o viste pra esses lados, de manhã cedo?
— E é que não juro falso — anuiu o outro.
— Então que mais queres?
—... Queria — hesitava ainda o João Ferrador. — E que o rapaz, demais a mais, assistira à autópsia do Candana, de princípio ao fim... — Por sinal — pormenorizou — que até o sangue se lhe soltou do nariz. Todos viram. Parecia uma goteira quando está a chover.
— Deixa — desdenhou do pormenor o lavrador. — Que demônio tem isso? — E já com pressa: — Está decidido! Larga-me mas é, tu, a espalhar a nova: "que quem matou o Candana foi o rapaz".
O ferrador ia abalar...
— Mas as provas, ó compadre, se mas perguntarem? — voltou ele a interrogar.
— Que to disseram — resolveu o lavrador.
— Quem? — tornou o outro.
O José Tomás ia-se enfurecendo.
— Que te não lembras! Que o ouviste! Que já o ouviste a mais de cem passos! Arre! Larga, avia-te! E como o outro largasse a correr:
— Ouves? Ó João? — chamou ele pelo ferrador — espalha-me tudo isso pias mulheres, principalmente, e verás depois se não pegam as bichas! Pias mulheres. Anda, avia-te! E aí pia tarde, ouves? — tornou a chamar — aparece, que hás de ser preciso.
Acenou-lhe o outro que sim. —  Que lá iria.
Logo adiante, num caminho estreito, entre paredes atufadas de silvas, o ferrador encontrou uma mulher, carregada com um feixe de lenha.
— Ó Maria Perpétua! Pois sempre te eu digo que tens um afilhado!...
— Um afilhado, que afilhado, ó João? — perguntou a velha.
— O Manuel! Lá o filho da tua comadre!
— O da Maçores?
— Esse!
— Então que é que tem o rapaz? — perguntou a mulher ainda muito estranha, parada agora para ouvir a resposta.
— Que é que tem?!... Ora faz-te de novas, anda. Bem me finto eu que inda o não saibas?...
E desfechou, sem parar:
— Quem matou o José Candana foi ele! Ele é que matou o José Candana! Seguro que ainda o não saibas.
A mulher arriou o feixe, caindo a chorar em cima da lenha.
— Mas ele como é que se soube, ó João? Mas então que desgraça foi essa? Jesus! Ai Jesus!
— Soube-se! Tudo se sabe! — Dizia o ferrador já de longe. — Ele não dormiu no palheiro, essa noite!
Um pastor que ouvira a conversa, de uma riba próxima, largou a correr a espalhar a nova; e no alarido que fazia a velha, gritando como se a matassem, o rebate espalhou-se logo pelas hortas à roda, pela ribeira onde se levava o pão, e quando chegou o moinho já se lá sabia...
— Já se cá sabe! Já se cá sabe! — dissera o moleiro ao da novidade. — Diz que até o viram sair da cabana, e que passou além à boca do prado, inda com estrelas!
— Vi-o eu! Isso vi-o eu! — afirmou um rapaz que vinha chegando.
— Mas viste o quê?! — estranharam os do moinho. — Sabes lá tu do que está a falar?!
— Do Maçores! Toda a gente já o sabe! Vi-o eu com estes dois olhos.
— Oh! — ficaram todos muito admirados. — E conheceste-o?
— Comas minhas mãos! E disse-me ainda agora o José Felício, que dorme também no mesmo palheiro, que ele essa noite não ficou lá!
— Oh diabo! — exclamou o moleiro. — Então o rapaz está apanhado!
— Apanhado e bem apanhado! — acudiu a Ana Pratas que chegava a correr. — Mas a mini, ouvis? a mim é que me não enganou!
Sentara-se, esbaforida — "capaz de arrebentar!"
— Mas então? Mas por quê? — rodearam-na todos.
— Quando vi ontem soltar-se-lhe o sangue, tate! disse logo comigo! aqui está quem matou o Candana! Não to disse eu logo, ó Regina?!
— Credo, mulher! Vossemecê disse-me lá isso?! Largou a gritar a Pratas:
— Ai a porca! Ai a desavergonhada! — E correu para outra de punhos cerrados: — Nega-mo aqui na cara, se és capaz!... desafiava ela esbofeteando-se.
... Mas ao tempo a que isto se passava, o Manuel Maçores, lá baixo, era procurado no lameiro por uma mulher.
— Estás perdido, ouves?! Estás perdido! — gritava a mulher, que era a Maria Teresa.
— Mas que é?! Perdido por quê?! Mas que foi?! — dizia o Maçores correndo para ela.
— Foge! Some-te! Uma grande desgraça! "A minha menina que te diz que fujas!"
— Mas o quê? Mas por quê?!
— O pai que te bota as culpas do José Candana! Que quem matou o pastor que foste tu!
— O quê! Mas o quê!
— Que fujas! Que te sumas! Que o pai que te desgraça! Fechou-se com ela no quarto do- forro mais de uma hora! Chamou-me: entregou-ma! Estava no chão, que parecia morta!
— Morreu?! Mas então morreu?!
— Não! Mas antes morresse! Quando veio a si parecia doida! Morre! Endoidece! O pai mata-a! Capaz é ele de a matar!
E caindo de joelhos diante do rapaz, imprecava-lhe de mãos levantadas:
— Não me descubras, Manuel! Por alma de tua mãe não me descubras! Manuel! Manuel! — gritava ela enclavinhando as mãos. — Pias tuas alminhas não me descubras!
— Mas então?! Mas agora?! — clamava o rapaz numa aflição.
— Foge! Ela quer que fujas! Que passes o rio e que te sumas! Foge, esconde-te, some-te!
— Mas eu que fiz para fugir, tia Maria?! Mas eu que fiz! — gritava o rapaz estorcegando os braços. — Tia Maria! Tia Maria! Não sabe vossemecê onde estive essa noite?!
— Sei, sei, cala-te! Mas viram-te! Espreitavam-te! Tinha-te já visto uma noite e não te conheceu! Mandou-te espreitar !
— E agora?! Mas então agora?! — dizia o Maçores imprecando o céu.
— Foge! Desaparece! Bota-te as culpas pra se vingar!
— E ela?! Então ela?!
— Endoidece! Dá em doida! Ficou fechada no quarto do forro, a pão e água! Não torna a ver a luz do dia! Vou lá baixo tirar a barreia: a correr passei por aqui. Foge, esconde-te, some-te!
E a Maria Teresa desapareceu.
Medira o Maçores todo o abismo, num lance. Mas entre sacrificá-la a ela no conceito dos outros, onde o pai a queria proteger, e sacrificar-se ele diante do mundo até se cobrir de infâmia e de maldição, não hesitou nem trepidou. — "Fora então ele que matara o Candana, acabou-se! Quem matara o Candana e o roubara! Fora ele!"
— Olha a vida! — resumia o Maçores correndo já. — Como isto é!...
Quando daí a pouco, desaustinado, o rapaz vadeava o rio, os do moinho ainda o conheceram:
— Lá vai ele! Olha! Ou é o diabo por ele! Lá vai ele! É ele!
E de pé num morro de fraga, uns poucos inda gritaram, acenando-lhe com os chapéus e atirando-lhe pedras:
— Ó Manuel! Ó grande malvado! Não fujas, ó grande malvado!
... Bem calculado, aquela hora já o João Ferrador estava de outra banda do rio, com os cabos e o regedor, alapardados num monte de silvas. Num atalho saíram-lhe todos à frente apontando-lhe ao peito as caçadeiras:
— Faz lá alto, ó tu! Estás preso!
— Já sabia! — foi a resposta do Manuel Maçores. — Ponham-me as algemas e vamos lá.
A esse tempo, já a loucura irremediável resgatara do conhecimento do lance a rapariga; e passado um mês, à justa,a mísera despenava, expirando também de dor, não tardou, a velha Maria Teresa.
Depois, sem defesa possível, e não a aceitando de casta nenhuma, o Maçores deixou-se condenar; e quando se viu enfim na sua pequena cela, e um número, que era agora todo o seu nome, resumindo-lhe no peito toda a tragédia, represando as lágrimas com violência, perguntou "como se lia aquilo". Quando lhe fecharam a porta responderam-lhe:

---
Pesquisa, digitalização e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...