O Açude
Viviam duas
velhinhas em duas cabanas vizinhas, construídas num campo extenso e cobertas de
um colmo tão verde que, de longe, se confundiam na cor geral da vegetação.
Ali passavam
elas sua existência humilde, longe de toda a convivência importuna,,
preocupando-se apenas com o cultivo da sua horta e com o trato dos seus
bacorinhos.
À tarde
sentavam-se juntas à soleira da porta, com o fuso na mão para distraírem-se, e
conversavam horas inteiras sobre a sua vida passada, rememorando episódios
antigos, velhas recordações da mocidade.
Eram felizes
na sua miséria; não lhes faltavam ervas para a alimentação do corpo e orações
para a purificação da alma.
Uma delas.
porém, a que parecia mais moça, tinha um defeito — a preguiça. Abandonava-se
durante o dia à preguiça, dormindo pelos cantos, esquecida do trabalho, de modo
que muitas vezes era a sua vizinha quem lhe trazia o sustento.
Suas casas
tinham sido feitas por elas mesmas numa planície rasa, muito plana, por onde os
ventos passavam livremente, refrescando a atmosfera.
Do lado do
poente havia uma coluna de certa elevação, regada por um arroio fresco e
límpido, que nascia no alto e escorregava pelo dorso da colina em pequenas
catadupas.
Do lado
oposto, um rico proprietário tinha construído um grande açude, onde se
acumulavam as águas de um rio próximo, cercado por uma represa de pedras. Essas
águas serviam nas secas do estio para a rega das plantações.
Um dia um
caminhante que atravessava a campina veio abrigar-se dos ardores do sol numa
das cabanas onde as duas velhas estavam reunidas, a fiar.
E ele
disse-lhes:
— Minhas
velhinhas, é urgente que mudeis vossas habitações para o alto daquela colina,
porque o açude está-se esboroando aos poucos, pode partir-se a represa e a água
inundar este campo, matando-vos. Fugi daqui, velhinhas.
A mais velha, que
era solícita e prudente, respondeu:
— Amanhã me
mudarei.
A outra, que
era, preguiçosa, contentou-se com sacudir os ombros, incrédula, e disse:
— Veremos.
De fato, no
dia seguinte, mal a manhã tinha despontado, já a velhinha estava tratando da
sua mudança, arrancando os batentes das portas, a palha do telhado, e pouco a
pouco ia levantando, não sem pequeno esforço, sua nova habitação sobre a
colina.
Depois de
colocado tudo em seus lugares, feita a cerca grosseira que prendia as suas aves
e bacorinhos, instalou-se descansadamente, livre de todo o perigo.
A outra,
apesar das instâncias da primeira, deixou-se ficar em baixo, e, preguiçosa como
era, ia adiando a mudança.
Uma tarde,
quando o crepúsculo descia e espalhava um aspecto de tristeza religiosa sobre a
verdura dos campos, a velhinha, que estava sentada na soleira da sua casa, no
alto da colina, viu com espanto a represa de pedras que segurava as águas do
açude romper-se com estrondo, cair, dando passagem a uma enorme massa d'água. A
água caiu. desceu e veio galopando pelo campo, espumando e roncando, com uma
força e ímpeto a que nada poderia resistir. Tudo que encontrava na frente ia
torcendo e arrancando.
A velhinha
preguiçosa deitou a correr, os cabelos soltos, gritando de desespero. Coitada!
A água
alcançou-a logo, envolveu-a com a sua espuma, arrastou-a nas ondas e levou-a,
morta já, até à outra extremidade do campo.
Sua
companheira, que tinha ficado ao abrigo do perigo, por ser cuidadosa e
prudente, elevou as mãos ao céu num resignado gesto de súplica.
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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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