O Alcaide de Santarém
(Século X)
CAPÍTULO I
O Guadamelato
é uma ribeira que, descendo das solidões mais agras da Serra Morena, vem através
de um território montanhoso e selvático desaguar no Guadalquivir pela margem
direita, pouco acima de Córdova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma
população numerosa: foi nas eras do domínio sarraceno em Hispânia. Desde o
governo do emir Abul-Khatar o distrito de Córdova fora distribuído às tribos
árabes do Iêmen e da Síria, as mais nobres e mais numerosas entre todas as
raças da África e da Ásia, que tinham vindo residir na Península por ocasião da
conquista ou depois dela. As famílias que se estabeleceram naquelas encostas
meridionais das longas serranias chamadas pelos antigos Montes Marianos,
conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos povos pastores. Assim no
meio do décimo século, posto que esse distrito fosse assas povoado, o seu aspecto
assemelhava-se ao de um deserto; porque nem se descortinavam por aqueles
cabeços e vales vestígios alguns de cultura, nem alvejava um único edifício no
meio das colinas rasgadas irregularmente pelos algares das torrentes, ou
cobertas de selvas bravias e escuras. Apenas um ou outro dia se enxergava na
extrema de algum almargem virente a tenda branca do pegureiro, que no dia
seguinte não se encontraria ali, se porventura se buscasse.
Havia,
contudo, povoações fixas naqueles ermos; havia habitações humanas, porém não de
vivos. Os árabes colocavam os cemitérios nos lugares mais saudosos dessas
solidões, nos pendores meridionais dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se,
estirasse de soslaio os seus últimos raios pelas lajens lisas das campas, por
entre os raminhos floridos das sarças açoutadas do vento. Era ali que, depois
do vaguear incessante de muitos anos, eles vinham deitar-se mansamente uns ao
pé dos outros, para dormirem o longo sono sacudido sobre as suas pálpebras das
asas do anjo Azrael.
A raça
árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família humana, gostava
de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos suntuosos, do cativeiro e
imobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independência
ilimitada durante a vida.
No recosto
de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do
Guadamellato para o nordeste, estava sentado um desses cemitérios pertencente à
tribo iemenita dos Beni-Homair. Subindo pelo riu, viam-se alvejar ao longe as
pedras das sepulturas como um vasto estendal, e três únicas palmeiras,
plantadas na coroa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemitério de Al-tamarah.
Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da
natureza, que nem sempre a ciência sabe explicar: era um cubo de granito de
desconforme dimensão, que parecia ter sido posto ali pelos esforços de
centenares de homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta espécie de
atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horizontes.
Era um dia à
tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras começavam do lado de leste a
empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do
rochedo quadrangular um árabe dos Beni-Homair, armado da sua comprida lança,
volvia olhos atentos, ora para o lado do norte, ora para o de oeste: depois
sacudia a cabeça com um sinal negativo, inclinando-se para o lado oposto da
grande pedra. Quatro sarracenos estavam ali também sentados em diversas
posturas e em silêncio, o qual só era interrompido por algumas palavras
rápidas, dirigidas ao da lança, e a que ele respondia sempre do mesmo modo com
o seu abanar de cabeça.
"Al-barr,"
— disse por fim um dos sarracenos cujo trajo e gestos indicavam uma grande
superioridade sobre os outros — "parece que o kaid de Chantoryu esqueceu a sua injúria como o wali de Zarkosta a sua ambição de
independência; e até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas
vezes vencidos pelo meu pai, não podem acreditar que Abdallah realize as promessas
que me induziste a fazer-lhes."
"Amir-al-melek"
— replicou Al-bar — "ainda não é tarde: os mensageiros podem ter sido
retidos por algum sucesso imprevisto. Não creias que a ambição e a vingança
adormeçam tão facilmente no coração humano. Diz, Al-athar, não te juraram eles
pela santa Kaaba que os enviados com a notícia da sua revolta e da entrada dos
cristãos chegariam hoje a este lugar aprazado, antes do anoitecer?"
"Juraram
— respondeu Al-athar —; mas que fé merecem homens que não duvidam de quebrar as
promessas solenes feitas ao califa, e além disso de abrir o caminho aos infiéis
para derramarem o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te
servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem as
esperanças que pões nos tens ocultos aliados. Oxalá não tivesse de tingir o
sangue as ruas de Korthoba, e não houvera de ser o supedâneo do trono que
ambicionas o túmulo do teu irmão!"
Al-athar
cobriu a cara com as mãos, como se quisesse esconder a sua amargura. Abdallah
parecia comovido por duas paixões opostas. Depois de se conservar algum tempo
em silêncio, exclamou:
"Se os
mensageiros dos revoltosos não chegarem até o anoitecer, não falemos mais
nisso. O meu irmão Al-hakém acaba de ser reconhecido sucessor do califado: eu
próprio o aceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter convosco. Se
o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus
sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassideh
que não soubeste acabar, como aquela que debalde tentaste repetir na presença
dos embaixadores do Frandjat, e que foi causa de caíres no desagrado do meu pai
e de Al-hakém, e de conceberes esse ódio que alimentas contra eles, o mais
terrível ódio deste mundo, o do amor próprio ofendido."
Ahmed
Al-athar e o outro árabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os
olhos, porém, de Al-bar faiscaram de cólera.
"Pagas
mal, Abdallah, — disse ele com a voz presa garganta — os riscos que tenho
corrido para te obter a herança do mais belo e poderoso império do Islão. Pagas
com alusões afrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te por na tua
uma coroa. És filho do teu pai!... Não importa. Só te direi que é já tarde para
o arrependimento. Pensas acaso que uma conspiração sabida de tantos ficará
oculta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que hás de encontrar o
abismo!"
No rosto de
Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez
para ver de novo se divertia o príncipe da arriscada empresa de disputar a
coroa ao seu irmão Al-hakém. Um grito, porém, de atalaia o interrompeu. Ligeiro
como relâmpago um vulto saíra do cemitério, galgara o cabeço, e se aproximara
sem ser sentido: vinha envolto num albornoz escuro, cujo capuz quase lhe
encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro
sarracenos puseram-se em pé de um pulo, e arrancaram as espadas.
Ao ver
aquele movimento, o que chegara não fez mais do que estender para eles a mão
direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as espadas
abaixaram-se como se uma corrente elétrica tivesse adormecido os braços dos
quatro sarracenos. Al-bar exclamara: — "Muulin o profeta! Muulin o santo!..."
"Muulin
o pecador: — interrompeu o novo personagem — Muulin, o pobre faquir penitente e
quase cego de chorar as próprias culpas e as culpas dos homens, mas a quem Deus
por isso ilumina às vezes os olhos da alma para antever o futuro ou ler no
fundo dos corações.
Li no
vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O senhor pesou
na balança dos destinos a ti, Abdallah, e ao teu irmão Al-hakém. Ele foi achado mais leve. A ti o trono; a ele o sepulcro.
Está escrito. Vai; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a
Kortheba. Entra no teu palácio Merwan; é o palácio dos califas da tua dinastia.
Não foi sem mistério que o teu pai to deu por morada. Sobe ao sótão da torre.
Aí acharás cartas do kaid de
Chantarya, e delas verás que nem ele, nem o wali
de Zarkosta, nem os Beni-Hafsun faltam ao que te juraram!"
"Santo faquir
— replicou Abdallab, crédulo como todos os muçulmanos daqueles tempos de fé
viva, e visivelmente perturbado — creio o que dizes, porque nada para ti é
oculto. O passado, o presente, o futuro dominá-los com a tua inteligência
sublime. Asseguras-me o triunfo; mas o perdão do crime podes tu assegurá-lo?"
"Verme,
que te crês livre! — atalhou com voz solene o faquir. — Verme, cujos passos,
cuja vontade mesma, não são mais do que frágeis instrumentos nas mãos do
destino, e que te crês autor de um crime! Quando a frecha despedida do arco
fere mortalmente o guerreiro, pede ela acaso a Deus perdão do seu pecado? Átomo
varrido pela cólera de cima contra outro átomo, que vais aniquilar, pergunta
antes se nos tesouros do Misericordioso há perdão para o orgulho
insensato!"
Fez então
uma pausa. A noite descia rápida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair da manga do albornoz
um braço felpudo e mirrado, que apontava para os lados de Córdova.
Nesta
postura a figura do faquir fascinava. Coando pelos lábios as sílabas, ele
repeliu três vezes:
"Para
Merwan!"
Abdallah
abaixou a cabeça, e partiu vagarosamente, sem olhar para traz. Os outros
sarracenos seguiram-no. El-Muulin ficou só.
Mas quem era
este homem? Todos o conheciam em Córdova; se vivêsseis, porém, naquela época e
o perguntásseis nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, ninguém vos
saberia dizer. Era um mistério a sua pátria, a sua raça, donde viera. Passava a
vida pelos cemitérios ou nas mesquitas. Para ele o ardor da canícula, a neve ou
as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que não
fosse lavado em lágrimas. Fugia das mulheres como de um objeto de horror. O
que, porém, o tornava geralmente respeitado, ou antes temido, era o dom de
profecia, o qual ninguém lhe disputava. Mas era um profeta terrível, porque as
suas predições recaiam unicamente sobre futuros males. No mesmo dia em que nas
fronteiras do império os cristãos faziam alguma correria, ou destruíam alguma
povoação, ele anunciava publicamente o sucesso nas praças de Córdova: qualquer
membro da família numerosa dos Beni-Umeyas caía debaixo do punhal de um
assassino desconhecido, na mais remota província do império, ainda das do
Moghreb ou Mauritânia, na mesma hora, no mesmo instante às vezes, ele o chorava
redobrando os seus choros habituais. O terror que inspirava era tal, que no
meio do maior tumulto popular a sua presença bastava para tudo cair em mortal
silêncio. A imaginação exaltada do povo tinha feito dele um santo, santo como o
islamismo os concebia; isto é, um homem cujas palavras e aspecto gelavam de
terror.
Ao passar
por ele, Al-bar apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quase imperceptível:
"Salvaste-me!"
O faquir
deixou-o afastar, e fazendo um gesto de profundo desprezo, murmurou:
"Eu?!
Eu teu cúmplice, miserável?!"
Depois,
levantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os dedos
rapidamente, e rindo com um rir sem vontade, exclamou:
"Pobres
títeres!"
Quando se
fartou de representar com os dedos a ida de escarnio que lhe sorria lá dentro,
dirigiu-se, ao longo do cemitério, também para os lados de Córdova, mas por
diverso atalho.
CAPÍTULO 2
Nos paços de
Azahrat, o magnífico alcaçar dos califas de Córdova, há muitas horas que cessou
o estrepito de uma grande festa. O luar de noite serena de abril bate pelos
jardins que se dilatam desde o alcaçar até o Guad-al-kebir, e alveja trémulo
pelas fitas cinzentas dos caminhos tortuosos, em que parecem enredados os bosquezinhos
de arbustos, os maciços de árvores silvestres, as veigas de flores, os vergéis
embalsamados, onde a laranjeira, o limoeiro, e as restantes árvores frutíferas,
trazidas da Pérsia, da Síria e do Cathay, espalham os aromas variados das suas
flores. Lá ao longe Córdova, a capital da Hispânia muçulmana, repousa da lida
diurna, porque sabe que Abdur-rahman III, o ilustre califa, vê-la pela
segurança do império. A vasta cidade repousa profundamente; e o ruído mal
distinto que parece revoar por cima dela, é apenas o respiro lento dos seus
largos pulmões, o bater regular das suas robustas artérias. Das almádenas de
seiscentas mesquitas não soa uma única voz de almuhaden, e os sinos das igrejas
moçárabes guardam também silêncio. As ruas, as praças, os azokes, ou mercados,
estão desertos. Somente o murmúrio das novecentas fontes ou banhos públicos,
destinados às abluções dos crentes, ajuda o zumbido noturno da suntuosa rival
de Bagdá.
Que festa
fora essa que expirara algumas horas antes de nascer a lua, e de tingir com a
brancura pálida da sua luz aqueles dois vultos enormes de Azahrat e de Córdova,
que olhavam um para o outro, a cinco milhas de distância, como dois fantasmas
gigantes envoltos em largos sudários? Na manhã do dia que findara, Al-hakém, o
filho mais velho de Abdur-rahman, fora associado ao trono. Os walis, wasires e khatehs da
monarquia dos Beni-Umeyas tinham vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto é,
futuro califa do Andalus e do Moghreb. Era uma ida afagada longamente pelo
velho príncipe dos crentes que se realizara, e o júbilo de Abdur-rahman se
havia espraiado numa dessas festas, por assim dizer fabulosas, que só sabia dar
no século decimo a corte mais polida da Europa, e talvez do mundo, a do
soberano sarraceno de Hispânia.
O palácio
Merwan, junto dos muros de Córdova, distingue-se à claridade duvidosa da noite
pelas suas formas maciças e retangulares, e a sua cor tisnada, bafo dos séculos
que entristece e santifica os monumentos, contrasta com a das cúpulas aéreas e
douradas dos edifícios, com a das almádenas esguias e leves das mesquitas, e
com a dos campanários cristãos, cuja tez docemente pálida suaviza ainda mais o
brando raio de luar que se quebra naqueles estreitos panos de pedra branca, de
onde não se reflete, mas cabe na terra preguiçoso e dormente. Como Azahrat e
como Córdova, calado e aparentemente tranquilo, o palácio Merwan, a antiga
morada dos primeiros califas, suscita ideias sinistras, enquanto o aspecto da
cidade e da vila imperial unicamente inspiram um sentimento de quietação e paz.
Não é só a negridão das suas vastas muralhas a que produz essa apertura do
coração que experimenta quem o considera assim solitário e carrancudo; é também
o clarão avermelhado que ressumbra da mais alta das raras frestas abertas na
face exterior da sua torre albarrã, a maior de todas as que o cercam, a que
atalaia a campanha. Aquela luz, no ponto mais elevado do grande e escuro vulto
da torre, é como um olho de demônio, que contempla colérico a paz profunda do
império, e que espera ansioso o dia em que renasçam as lutas e as devastações
de que por mais de dois séculos fora teatro o solo ensanguentado de Hispânia.
Alguém
vê-la, talvez, no paço de Merwan. No de Azahrat, posto que nenhuma luz
bruxuleei nos centenares de varandas, de miradouros, de pórticos, de balcões,
que lhe arrendam o imenso circuito, alguém vê-la por certo.
A sala
denominada do Califa, a mais espaçosa entre tantos aposentos quantos encerra
aquele rei dos edifícios, devera a estas horas mortas estar deserta, e não o
está. Dois lampadários de muitos lumes pendem dos artesões primorosamente
lavrados, que, cruzando-se em ângulos retos, servem de moldura ao almofadado de
azul e ouro, que reveste as paredes e o teto. A água de fonte perene murmura
caindo num tanque de mármore construído no centro do aposento, e no topo da
sala ergue-se o trono de Abdur-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes do
país de Fars. Abdur-rahman está aí sozinho. O califa passeia de um para outro
lado, com olhar inquieto, e de instante a instante para e escuta, como se
esperasse ouvir um ruído longínquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais viva
ansiedade; porque o único ruído que lhe fere os ouvidos é o dos próprios passos
sobre o xadrez variegado, que forma o pavimento da imensa quadra. Passado algum
tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do trono,
abre-se lentamente, e um novo personagem aparece. No rosto de Abdur-rahman, que
o vê aproximar, pinta-se uma inquietação ainda mais viva.
O
recém-chegado oferecia notável contraste no seu gesto e vestiduras com as
pompas do lugar em que se introduzia, e com o aspecto majestoso de Abdur-rahman,
ainda belo apesar dos anos e dos cabelos brancos que começavam a misturar-se-lhe
na longa e espessa barba negra. Os pés do que entrara apenas faziam um rumor
sumido no chão de mármore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou túnica era de lã
grosseiramente tecida, o cinto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, porém, no
despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nele
aquela magnificência. Não era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injúrias
do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos,
negros, encovados e reluzentes. Chegando ao pé do califa, que ficara imóvel,
cruzou os braços e pôs-se a contemplá-lo calado. Abdur-rahman foi o primeiro em
romper o silêncio:
"Tardaste
muito, e foste menos pontual do que costumas, quando anuncias a tua vinda a
hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre triste como o teu nome. Nunca
entraste a ocultas em Azahrat senão para me saciares de amargura; mas apesar
disso eu não deixarei de abençoar a tua presença, porque Algafir — dizem-no
todos e eu o creio — é um homem de Deus. Que vens anunciar-me, ou que pretendes
de mim?"
"Amir-al-muminin,
que pode pretender de ti um homem cujos dias se passam à sombra dos túmulos
pelos cemitérios, e a cujas noites de oração basta por abrigo o pórtico de um
templo; cujos olhos tem queimado o choro, e que não esquece um instante que
tudo neste desterro, a dor e o gozo, a morte e a vida, está escrito lá em cima?
Que venho anunciar-te?!. O mal; porque só mal há na terra para o homem, que
vive como tu, como eu, como todos, entre o apetite e o rancor; entre o mundo e
Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacáveis inimigos!"
"Vens,
pois, anunciar-me uma desventura?!. Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado
perto de quarenta anos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas
ambições tem sido satisfeitas, todos os meus desejos preenchidos; e todavia
nesta longa carreira de glória e prosperidade só fui inteiramente feliz
quatorze dias da minha vida. Pensava que este fosse o décimo quinto. Devo acaso
apagá-lo do registo em que conservo a memória deles, e em que já o tinha
escrito?"
"Podes
apagá-lo: — replicou o rude faquir — podes, até, rasgar todas as folhas brancas
que restam no livro. Califa! vês estas faces sulcadas pelas lágrimas? vês estas
pálpebras requeimadas por elas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se em
breve as tuas pálpebras e as tuas faces não estão semelhantes às minhas."
O sangue
tingiu o rosto alvo e suavemente pálido de Abdur-rahman: os seus olhos serenos
como o céu, que imitavam na cor, tomaram a terrível expressão que ele costumava
dar-lhes no revólver dos combates, olhar esse que só por si fazia recuar os
inimigos. O faquir não se moveu, e pôs-se a olhar também para ele fito.
"Al-muulin,
o herdeiro dos Beni-Umeyas pode chorar arrependido dos seus erros diante de
Deus; mas quem disser que há neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma
lágrima, diz-lhe ele que mentiu!"
Os cantos da
boca de Al-gafir encresparam-se com um quase impercetível sorriso. Houve um
largo espaço de silêncio. Abdur-rahman não o interrompeu: o faquir prosseguiu:
"Amir-al-muminin,
qual dos teus dois filhos amas tu mais? Al-hakém, o sucessor do trono, o bom e
generoso Al-hakém, ou Abdallah, o sábio e guerreiro Abdallah, o ídolo do povo
de Korthoba?"
"Oh, —
replicou o califa sorrindo — já sei o que me queres dizer. Devias prever que a
nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os cristãos passaram a um tempo
as fronteiras do norte e do oriente. O meu velho tio Al-mod-dhafer já depôs a
espada vitoriosa, e crês necessário expor a vida de um deles aos golpes dos
infiéis. Vens profetizar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih, creio em
ti, que és aceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrela dos Beni-Umeyas.
Se eu amasse um mais do que outro não hesitaria na escolha: fora esse que eu
mandara, não à morte, mas ao triunfo. Se, porém, essas são as tuas previsões, e
elas tem de realizar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte posso eu
desejar aos meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed (guerra santa)
contra os infiéis?"
Al-gafir
escutou Abdur-rahman sem o menor sinal de impaciência.
Quando ele
acabou de falar repetiu tranquilamente a pergunta:
"Califa,
qual amas tu mais dos teus dois filhos?"
"Quando
a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakém se me representa no espírito, amo
mais Al-hakém: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a cara
vasta e inteligente do meu Abdallah, amo-o mais a ele. Como te posso eu, pois,
responder, faquir?"
"E
todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro.
Um deles
deve morrer na próxima noite, obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez,
sem glória, debaixo do cutelo do algoz, ou do punhal do assassino."
Abdur-rahman
recuara ao ouvir estas palavras: o suor começou a descer-lhe em bagas da cara.
Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sentira apertar-se-lhe o coração
desde que o faquir começara a falar. A reputação de iluminado de que gozava
Al-muulin, o caráter supersticioso do califa, e mais que tudo, terem verificado
todas as negras profecias que num longo decurso de anos ele lhe fizera, tudo
contribuía para aterrar o príncipe dos crentes. Com voz trémula replicou:
"Deus é
grande e justo. Que lhe fiz eu para me condenar no fim da vida a perpétua
aflição, a ver correr o sangue dos meus filhos queridos às mãos da desonra ou
da perfídia?"
"Deus é
grande e justo, — interrompeu o faquir. — Acaso nunca fizeste correr
injustamente o sangue? Nunca por ódio brutal despedaçaste de dor nenhum coração
de pai, de irmão, de amigo?"
Al-muulin
tinha carregado na palavra irmão com um acento singular. Abdur-rahman, possuído
de mal refreado susto, não atentou por isso.
"Posso
eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrível profecia — exclamou ele
por fim — sem que me expliques o modo porque se deve realizar esse terrível
sucesso; e como há de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de
Azahrat verter o sangue de um dos filhos do califa de Korthoba, cujo nome,
seja-me lícito dize-lo, é o terror dos cristãos, e a glória do islamismo?"
Al-muulin
tomou um ar imperioso e solene, estendeu a mão para o trono, e disse:
"Assenta-te,
califa, no teu trono, e escuta-me, porque em nome da futura sorte do Andalus,
da paz e da prosperidade do império, e das vidas e do repouso dos muçulmanos eu
venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de
custar-te um filho. Sucessor do profeta, ímã da divina religião do Koran, escuta-me, porque é obrigação tua
ouvir-me."
O tom
inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mistério que
encerravam as palavras do faquir tinham subjugado a alma profundamente
religiosa de Abdur-rahman. Maquinalmente subiu ao trono, encruzou-se em cima da
pilha de coxins em que ele rematava, e encostando ao punho o rosto demudado,
disse com voz presa: — "Podes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"
Tomando
então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre o peito, Al-gafir o
triste começou da seguinte maneira a sua narrativa.
CAPÍTULO 3
"Califa!
— começou Al-muulin — tu és grande; tu és poderoso. Não sabes o que é a afronta
ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e enérgico, se este não pode
repeli-la, e sem demora, com o mal ou com a afronta, vingá-la à luz do sol! Tu
não sabes o que então se passa na alma desse homem, que por todo o desagravo
deixa fugir alguma lágrima furtiva, e até, às vezes, é obrigado a beijar a mão
que o feriu nos seus mais santos afetos. Não sabes o que isto é; porque todos
os teus inimigos tem caído diante do alfanje do almogaure, ou deixado tombar a
cabeça de cima do cepo do algoz. Ignoras por isso o que é o ódio; o que são
essas solidões tenebrosas, por onde o ressentimento, que não pode vir ao gesto,
se dilata e vive à espera do dia da vingança. Dir-to-ei eu. Nessa noite imensa,
em que se envolve o coração chagado, há uma luz sanguinolenta que vem do
inferno, e que ilumina o espírito vagabundo. Há aí terríveis sonhos, em que o
mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desagravo. Imagina como será
fácil aos altos entendimentos o encontrá-lo! É por isso que a vingança, que
parecia morta e esquecida, aparece às vezes inesperada, tremenda, irresistível,
e morde-nos surgindo debaixo dos pés como a víbora, ou despedaça-nos como o
leão pulando de entre os juncais. Que lhe importa a ela a majestade do trono, a
santidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro?
Mediu as distâncias, calculou as dificuldades, meditou no silêncio, e riu-se de
tudo isso!"
E Al-gafir o
triste desatou a rir ferozmente, Abdur-rahman olhava para ele espantado.
"Mas —
prosseguiu o faquir — às vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus
servos de ânimo tenaz e forte, possuído também de alguma ida oculta e profunda,
que se levante, e rompa a trama urdida nas trevas. Este homem no caso presente
sou eu.
Para bem?
Para mal? — Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se prepara a ruína do teu trono, e a destruição da tua dinastia."
"A ruína do meu trono? — gritou Abdur-rahman pondo-se em pé e levando a mão ao
punho da espada. — Quem, a não ser algum louco, imagina que o trono dos Beni-Umeyas
pode, não digo desconjuntar-se, mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdur-rahman?
Quando, porém, falarás enfim claro, Al-muulin?"
E a cólera e
o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual impassibilidade o faquir
prosseguiu:
"Esqueces-te,
califa, da tua reputação de prudência e longanimidade. Pelo profeta! Deixa
divagar um velho tonto como eu. Não!. Tens razão. Basta! O raio que fulmina o
cedro desce rápido do céu. Quero ser como ele. Amanhã a estas horas o teu filho
Abdallah ter-te-á já privado da coroa para a cingir na própria cara, e o teu sucessor
Al-hakém terá perecido sob um punhal de assassino. Ainda te encolerizas? Foi
acaso demasiado extensa a minha narrativa?"
"Infame!
— exclamou Abdur-rahman — Hipócrita, que me tens enganado! Tu ousas caluniar o
meu Abdallah? Sangue! Sangue há de correr, mas é o teu. Crias que com essas
visagens de inspirado, com esses trajos de penitência, com essa linguagem dos
santos poderias quebrar a afeição mais pura, a de um pai? Enganas-te, Al-gafir!
A minha reputação de prudente, verás que era bem merecida."
Dizendo isto
o califa ergueu as mãos como quem ia a bater as palmas. Al-muulin interrompeu-o
rapidamente, mas sem mostrar o menor indício de perturbação ou terror.
"Não
chames ainda os eunucos; porque assim é que dás provas de que não a merecias.
Conheces que me seria impossível fugir. Para matar ou morrer sempre é tempo.
Escuta, pois, o infame, o hipócrita até o fim. Acreditarias tu na palavra do
teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que ele é incapaz de mentir ao seu amado
pai, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possíveis."
O faquir
desatara de novo num rir trémulo e hediondo. Meteu a mão no peitilho da
aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e
entregou-as ao califa, que começou a ler com avidez. A pouco e pouco Abdur-rahman
foi empalidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cair sobre os
coxins do trono, e cobrindo a cara com as mãos, murmurou: — "Meu Deus!
porque te mereci isto!"
Al-muulin
fitara nele um olhar de girifalte, e nos lábios vagueava-lhe um riso sardônico
e quase imperceptível.
Os
pergaminhos eram várias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das
fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos sheiks berberes, dos que se tinham instalado na Hispânia,
conhecidos pelo seu pouco afeto aos Beni-Umeyas. O mais importante, porém, de
tudo era uma extensa correspondência com Umeya-ibn-Ishak, guerreiro célebre e
antigo alcaide de Santarém, que por graves ofensas passara ao serviço dos
cristãos de Oviedo e Astúrias com muitos cavaleiros ilustres da sua clientela.
Esta correspondência era completa de parte a parte. Por ela se via que Abdallah
contava não só com os recursos dos muçulmanos seus parciais, mas também com
importantes socorros dos infiéis por intervenção de Umeya. A revolução devia
rebentar em Córdova pela morte de Al-hakém e pela deposição de Abdur-rahman.
Uma parte da guarda do alcácer de Azahrat estava comprada. Al-barr, que
figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb
ou primeiro ministro do novo califa. Ali se liam, enfim, os nomes dos
principais personagens implicados na revolta, e todas as circunstâncias desta
eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquela individuação que nas
suas cartas ele constantemente exigia. Al-muulin falara verdade: Abdur-rahman
via despregar diante de si a longa teia da conspiração, escrita com letras de
sangue pela mão do seu próprio filho.
Durante
algum tempo o califa conservou-se como a estátua da dor na postura que tomara.
O faquir olhava fito para ele com uma espécie de cruel complacência. Al-muulin
foi o primeiro que rompeu o silêncio: o príncipe Beni-Umeya, esse parecia ter
perdido o sentimento da vida.
"É
tarde: — disse o faquir. — Chegará em breve a manhã. Chama os eunucos. Ao
romper do sol a minha cabeça pregada nas portas de Azahrat deve dar testemunho
da prontidão da tua justiça. Elevei ao trono de Deus a última oração, e estou
aparelhado para morrer, eu o hipócrita, eu o infame, que pretendia lançar
sementes de ódio entre ti e o teu virtuoso filho. Califa, quando a justiça
espera não são boas horas para meditar ou dormir."
Al-gafir
retomava a sua habitual linguagem sempre irônica e insolente, e ao redor dos
lábios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.
A voz do faquir
despertou Abdur-rahman dos seus tenebrosos pensamentos. Pôs-se em pé. As
lágrimas tinham corrido por aquelas faces, mas estavam enxutas. A procela de
paixões encontradas tumultuava lá dentro; mas o gesto do príncipe dos crentes
recobrara aparente serenidade. Descendo do trono pegou na mão mirrada de Al-muulin,
e apertando-a entre as suas, disse:
"Homem
que guias teus passos pelo caminho do céu; homem aceito ao profeta, perdoa as
injúrias de um insensato! Cria ser superior à fraqueza humana. Enganava-me! Foi
um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou tranquilo... bem
tranquilo. Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz
desígnio. Alguém lho inspirou: alguém verteu naquele ânimo soberbo as vans e
criminosas esperanças de subir ao trono por cima do meu cadáver e do de Al-hakém.
Não desejo sabe-lo para o absolver; porque ele já não pode evitar o destino
fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pai fui califa, e Deus
confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas hão de acompanhá-lo
todos os que o precipitaram no abismo."
"Ainda
há pouco te disse — replicou Al-gafir — o que pôde inventar o ódio que é
obrigado a esconder-se debaixo do manto da indiferença, e até da submissão.
Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu ofendeste no seu amor próprio de poeta, e
que expulsaste de Azahrat como um homem sem engenho nem saber, quis provar-te
que ao menos possuía o talento de conspirador. Foi ele que preparou este
terrível sucesso. Hás de confessar que se houve com destreza. Só numa coisa
não: em pretender associar-me aos seus desígnios. Associar-me?... não digo bem...
fazer-me seu instrumento. A mim!... Queria que eu te apontasse ao povo como um ímpio
pelas tuas alianças com os emires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e
chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei ao meu cargo as mensagens
aos rebeldes do oriente e a Umeya-ibn-Ishak, o aliado dos cristãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude
coligir estas provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças eram a miragem
do deserto. Dos seus aliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla
não foram um sonho. As cartas de Umeya, as promessas do emir nazareno de
Djalikia, tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a
letra de Umeya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu deixarás,
califa, que eu guarde para mim... Oh, os insensatos! os insensatos!"
E desatou a
rir.
A noite
tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava trazer à Hispânia
muçulmana todos os horrores da guerra civil, devia rebentar dentro de poucas
horas, talvez. Era necessário afogá-la em sangue. O longo habito de reinar,
junto ao caráter enérgico de Abdur-rahman, fazia com que nestas crises ele
desenvolvesse de um modo admirável todos os recursos que o gênio amestrado pela
experiência lhe sugeria. Recalcando no fundo do coração a cruel lembrança de
que era um filho que ia sacrificar à paz e à segurança do império, o califa
despediu Al-muulin, e mandando imediatamente reunir o divã deu largas
instruções ao chefe da guarda dos eslavos.
Ao romper da
manhã todos os conspiradores que residiam em Córdova estavam presos, e muitos
mensageiros tinham partido levando as ordens de Abdur-rahman aos walis das províncias e aos generais das
fronteiras. Apesar das lágrimas e rogos do generoso Al-hakém, que lutou
tenazmente por salvar a vida do seu irmão, o califa mostrou-se inflexível. A
cabeça de Abdallah caiu aos pés do algoz na própria câmara do príncipe no
palácio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra em que o tinham lançado,
evitou assim o suplício.
O dia
imediato à noite em que se passou a cena entre Abdur-rahman e Al-gafir, que
tentamos descrever, foi um dia de sangue para Córdova, e de luto para muitas
das mais ilustres famílias.
CAPÍTULO 4
Era pelo fim
da tarde. Numa alcova do palácio de Azahrat via-se reclinado um velho sobre as
almofadas persas de um vasto almatrah,
ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de peles alvíssimas, faziam
sobressair as feições enrugadas, a palidez do rosto, o encovado dos olhos, que
lhe davam ao gesto todas as características de um cadáver. Pela imobilidade
dir-se-ia que era uma destas múmias que se encontram pelas catacumbas do Egito,
apertadas entre as cem voltas das suas faixas mortuárias, e inteiriçadas dentro
dos sarcófagos de pedra. Um único sinal revelava a vida nessa grande ruína de
um homem grande; era o movimento da barba longa e pontiaguda que se lhe
estendia como um cone de neve tombado sobre o peitilho da túnica de precioso
tiraz. Abdur-rahman, o ilustre califa dos muçulmanos do ocidente, jazia aí e
falava com outro velho, que, em pé em frente dele, o escutava atentamente; mas
a sua voz saia tão fraca e lenta, que, apesar do silêncio que reinava no
aposento, só na curta distancia a que estava o outro velho se poderiam perceber
as palavras do califa.
O seu
interlocutor é uma personagem que o leitor conhecerá apenas reparar no modo
porque está trajado. A sua vestidura é uma aljarabia de burel cingida de uma
corda de esparto. Há muitos anos que nisto cifrou todos os cômodos que aceita à
civilização. Está descalço, e a grenha hirsuta e já grisalha cai-lhe sobre os
ombros em madeixas revoltas e emaranhadas. A sua tez não é pálida, os seus olhos
não perderam o brilho, como a tez e como os olhos de Abdur-rahman. Naquela,
coriácea e crestada, domina a cor mista de verde-negro e amarelo do ventre de
um crocodilo; nestes, cada vez que os volve, fulgura a centelha de paixões
ardentes, que lhe sussurram dentro de alma como a lava prestes a jorrar do
vulcão que ainda parece dormir. É Al-muulin, o santo faquir, que vimos salvar,
onze anos antes, o califa e o império da intentada revolução de Abdallah.
Tinham de fato
passado onze anos desde os terríveis sucessos acontecidos naquela noite em que
Al-muulin descobrira a conspiração que se urdia, e desde então nunca mais se
vira Abdur-rahman sorrir. O sangue de tantos muçulmanos vertido pelo ferro do
algoz, e sobretudo o sangue do seu próprio filho descera como a maldição do
profeta sobre a cabeça do príncipe dos crentes. Entregue a melancolia profunda,
nem as notícias de vitórias, nem a certeza do estado florescente império o
podiam distrair dela senão momentaneamente. Encerrado durante os últimos tempos
da vida no palácio de Azahrat, a maravilha de Hispânia, abandonara os cuidados
do governo ao seu sucessor Al-hakém. Os gracejos da escrava Nuirat-edia, a
conversa instrutiva da bela Ayecha, e as poesias de Mozna e de Sofyia eram o
único alívio que adoçava a existência aborrida do velho leão do islamismo. Mas
apenas Al-gafir o triste se apresentava perante o califa, ele fazia retirar
todos, e ficava encerrado horas e horas com este homem, tão temido quanto
venerado do povo pela austeridade das suas doutrinas, pregadas com a palavra,
mas ainda mais com o exemplo. Abdur-rahman parecia inteiramente dominado pelo
rude faquir, e, ao vê-lo, qualquer poderia ler no gesto do velho príncipe os
sentimentos opostos do terror e do afeto, como se metade da sua alma o arrastasse
irresistivelmente para aquele homem, e a outra metade o repelisse com
repugnância invencível. O mistério que havia entre ambos ninguém o podia
entender.
E todavia a
explicação era bem simples: estava no caráter extremamente religioso do califa,
na sua velhice e no seu passado de príncipe absoluto, situação em que são
fáceis grandes virtudes e grandes crimes. Habituado à lisonja, a linguagem
áspera e altivamente sincera de Al-muulin tivera a princípio o atrativo de ser
para ele inaudita; depois a reputação de virtude de Al-gafir, a crença de que
era um profeta, a maneira porque, para o salvar e ao império, arrostara com a
sua cólera, e provara desprezar completamente a vida, tudo isto fizera com que Abdur-rahman
visse nele, como o mais crédulo dos seus súbditos, um homem predestinado, um
verdadeiro santo. Sentindo avizinhar a morte, Abdur-rahman tinha sempre diante
dos olhos que esse faquir era como o anjo que devia conduzi-lo pelos caminhos
da salvação até o trono de Deus. Cifrava-se nele a esperança de um futuro
incerto, que não podia tardar, e assim o espírito do monarca, enfraquecido
pelos anos, estudava ansiosamente a mínima palavra, o menor gesto de Al-muulin;
prendia-se ao monge muçulmano como a hera antiga ao carvalho, em cujo tronco se
alimenta, se ampara, e vai trepando para o céu. Mas, às vezes, Al-gafir
repugnava-lhe. No meio das expansões mais sinceras, dos mais ardentes voos de
uma piedade profunda, de uma confiança inteira na misericórdia divina, o Faquir
fitava de repente nele os olhos cintilantes, e com sorriso diabólico vibrava
uma frase irônica, insolente e desanimadora, que ia gelar no coração do califa
as consolações da piedade, e despertar remorsos e terrores, ou completa
desesperação. Era um jogo terrível em que se deleitava Al-muulin, como o tigre
com o palpitar dos membros da rês que se lhe agita moribunda entre as garras
sanguentas. Nessa luta infernal em que lhe trazia a alma estava o segredo da atração
e repugnância, que ao mesmo tempo o velho monarca mostrava para com o faquir,
cujo aparecimento em Azahrat cada vez se tornava mais frequente, e agora se
renovava todos os dias.
A noite
descia triste: as nuvens corriam rapidamente do lado do oeste, e deixavam de
vez em quando passar um raio afogueado do sol que se punha. O vento tépido, úmido
e violento fazia ramalhar as árvores dos jardins que circundavam os aposentos
de Abdur-rahman. As folhas, retintas já de um verde amarelado e mortal,
desprendiam-se das tranças das romeiras, dos sarmentos das videiras e dos ramos
dos choupos em que estas se enredavam, e, remoinhando nas correntes da
ventania, iam, iam, até rastejar pelo chão e empeçar na erva seca dos prados. O
califa, exausto, sentia aquele ciclo da vegetação moribunda chamá-lo também
para a terra, e a melancolia da morte pesava-lhe sobre o espírito. Al-muulin
durante a conversa daquela tarde havia-se mostrado, contra o seu costume,
severamente grave, e nas suas palavras havia o que quer que era acorde com a
tristeza que o rodeava.
"Conheço
que se aproxima a hora fatal: — dizia o califa. — Nestas veias em breve se
gelará o sangue; mas, santo faquir, não me será lícito confiar na misericórdia
de Deus? Derramei o bem entre os muçulmanos, o mal entre os infiéis: fiz
emudecer o livro de Jesus perante o de Mohammed; e deixo ao meu filho um trono
firmado no amor dos súbditos e na veneração e temor dos inimigos da dinastia
dos Beni-Umeyas. Fiz quanto a um homem era dado fazer pela glória do Islão. Que
mais pretendes? — Por que não tens nos lábios para o pobre moribundo senão
palavras de terror? — Por que há tantos anos me fazes beber gole a gole a taça
da desesperação?"
Os olhos do faquir,
ao ouvir estas perguntas, brilharam com desusado fulgor, e um daqueles sorrisos
diabólicos, com que costumava fazer gelar todas as ardentes ideias místicas do
príncipe, lhe assomou ao rosto enrugado e carrancudo. Contemplou por um momento
o do velho monarca, onde de fato já vagueavam as sombras da morte: depois
dirigiu-se à porta da câmara, assegurou-se bem de que não era possível
abrirem-na exteriormente, e voltando para ao pé do almatrah, tirou do peitilho um rolo de pergaminho, e começou a ler
em tom de indizível escarnio:
"Resposta
de Al-gafir o triste às últimas perguntas do poderoso Abdur-rahman, oitavo califa
de Córdova, o sempre vencedor, justiceiro e bem-aventurado entre todos os
príncipes da raça dos Beni-Umeyas. Capítulo avulso da sua história."
Um rir
prolongado seguiu a leitura do título do manuscrito.
Al-muulin
continuou:
"No
tempo deste celebre, virtuoso, ilustrado e justiceiro monarca havia no seu divã
um wasir, homem sincero, zeloso da
lei do profeta, e que não sabia torcer por humanos respeitos a voz da sua
consciência. Chamava-se Mohammed-Ibn-Ishak, e era irmão de Umeya-Ibn-Ishak, kaid de Chantaryn, um dos guerreiros
mais ilustres do Islão, segundo diziam."
"Ora
esse wasir caiu no desagrado do Abdur-rahman, porque lhe falava verdade, e
rebatia as adulações dos seus lisonjeiros. Como o califa era generoso, o
desagrado para com Mohammed converteu-se em ódio; e como era justo, o ódio breve
se traduziu numa sentença de morte. A cabeça do ministro caiu no cadafalso, e a
sua memória passou à posteridade manchada pela calúnia. Todavia o príncipe dos
fiéis sabia bem que tinha assassinado um inocente."
As feições
transtornadas de Abdur-rahman tomaram uma expressão horrível de angústia: quis
falar, mas apenas pôde fazer um sinal como que pedindo ao faquir que se
calasse. Este prosseguiu:
"Parece-me
que o ouvir a leitura dos anais do teu ilustre reinado te alivia e revoca à vida.
Continuarei. Pudesse eu prolongar assim os teus dias, clementíssimo califa!"
"Umeya,
quando soube da morte ignominiosa do seu querido irmão, ficou como insensato. À
saudade juntava-se o horror do ferrete posto sobre o nome, sempre imaculado, da
sua família. Dirigiu as súplicas mais veementes ao príncipe dos fiéis para que
ao menos reabilitasse a memória da pobre vítima; mas soube-se que ao ler a sua
carta o virtuoso príncipe desatara a rir! Era, conforme lhe relatou o
mensageiro, deste modo que ele ria."
E Al-muulin
aproximou-se de Abdur-rahman, e soltou uma gargalhada.
O moribundo
arrancou um gemido.
"Estás
um pouco melhor... não é verdade, invencível califa? Prossigamos. Umeya quando
tal soube, calou-se. O mesmo mensageiro que chegara de Korthoba partiu para
Oviedo. O rei cristão de Al-djuf não se riu da sua mensagem. Daí a pouco
Radmiro tinha passado o Douro, e as fortalezas e cidades muçulmanas até o Tejo
tinham aberto as portas ao rei franco, por ordem do kaid de Chantaryn. Com um numeroso esquadrão de amigos leais este
ajudou a devastar o território muçulmano do Gharb até Mérida.
Foi uma esplêndida
festa; um sacrifício digno da memória do seu irmão. Seguiram-se muitas
batalhas, em que o sangue humano correu em torrentes."
"Pouco
a pouco Umeya começou a refletir. Era Abdur-rahman quem o ofendera. Para que
tanto sangue vertido? A sua vingança fora a de uma besta-fera; fora estúpida e
van. Ao califa, quase sempre vitorioso, que importavam os que por ele pereciam?
O kaid de Chantaryn mudou então de
sistema. A guerra pública e inútil converteu-a em perseguição oculta e eficaz:
à forca opôs a destreza. Fingiu abandonar os seus aliados e sumiu-se nas
trevas. Esqueceram-se dele. Quando voltou a aparecer à luz do dia ninguém o
conheceu. Era outro. Vestia um burel grosseiro; cingia uma corda de esparto; os
cabelos caiam-lhe desordenados sobre os ombros e velavam-lhe metade do rosto:
as faces tinha-lhas tisnado o sol dos desertos. Correra o Andaluz e o Moghreb;
espalhara por toda a parte os tesouros da sua família e os próprios tesouros
até o último dirhem, e em toda a
parte deixara agentes e amigos fiéis. Depois veio viver nos cemitérios de
Korthoba, junto dos pórticos soberbos do seu inimigo mortal; espiar todos os
momentos em que pudesse oferecer-lhe a amargura, as angústias em troca do
sangue de Mohammed-Ibn-Isbak. O guerreiro chamou-se desde esse tempo Al-gafir,
e o povo denominava-o Al-muulin, o santo faquir."
Como
sacudido por uma corrente elétrica, Abdur-rahman dera um pulo no almatrah ao ouvir estas últimas
palavras, e ficara sentado, hirto e com as mãos estendidas. Queria bradar, mas
o sangue escumou-lhe nos lábios, e só pôde murmurar já quase
ininteligivelmente:
"Maldito!"
"Boa
coisa é a história, — prosseguiu o seu algoz sem mudar de postura — quando nos
recordamos do nosso passado, e não achamos lá para colher um único espinho de
remorso! É o teu caso, virtuoso príncipe! Mas sigamos avante. O santo faquir
Al-muulin foi quem instigou Al-bar a conspirar contra Abdur-rahman; quem perdeu
Abdallah; quem delatou a conspiração; quem se apoderou do teu ânimo crédulo;
quem te puniu com os terrores de tantos anos; quem te acompanha no trance
derradeiro, para te lembrar junto às portas do inferno que se foste o assassino
do seu irmão, também o foste do próprio filho; para te dizer que se cobriste o
seu nome de ignomínia, também ao teu se juntará o de tirano. Ouve pela última
vez o rir que responde ao teu riso de há dez anos. Ouve, ouve, califa!"
Al-gafir, ou
antes Umeya, levantara gradualmente a voz, e estendia os punhos cerrados para Abdur-rahman,
cravando nele os olhos reluzentes e desvairados. O velho monarca tinha os seus
abertos, e parecia também olhar para ele, mas perfeitamente tranquilo. A quem
tivesse presenciado aquela tremenda cena não seria fácil dizer qual dos dois
tinha mais horrendo gesto.
Era um
cadáver o que estava diante de Umeya: o que estava diante do cadáver era a
expressão mais enérgica da atrocidade de coração vingativo.
"Oh, se
não ouviria as minhas derradeiras palavras!." — murmurou o faquir depois de
ter conhecido que o califa estava morto. Pôs-se depois a pensar durante muito
tempo: as lágrimas rolavam-lhe a quatro e quatro pelas faces rugosas. —
"Um ano mais de tormentos, e ficava satisfeito! — exclamou por fim. —
Pudera eu dilatar-lhe a vida!"
Dirigiu-se
então para a porta, abriu-a de par em par e bateu as palmas. Os eunucos, as
mulheres, e o próprio Al-hakém, inquieto pelo estado do seu pai,
precipitaram-se no aposento. Al-muulin parou no limiar da porta, voltou-se para
traz, e com voz lenta e grave disse:
"Orai
ao profeta pelo repouso do califa."
Houve quem o
visse sair, quem à luz baça do crepúsculo o visse tomar para o lado de Córdova
com passos vagarosos, apesar das lufadas violentas do oeste, que anunciavam uma
noite procelosa. Mas nem em Córdova, nem em Azahrat, ninguém mais o viu desde
aquele dia.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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