6/12/2019

O Alcaide de Santarém (Conto), de Alexandre Herculano



O Alcaide de Santarém
(Século X)


 CAPÍTULO I
O Guadamelato é uma ribeira que, descendo das solidões mais agras da Serra Morena, vem através de um território montanhoso e selvático desaguar no Guadalquivir pela margem direita, pouco acima de Córdova. Houve tempo em que nestes desvios habitou uma população numerosa: foi nas eras do domínio sarraceno em Hispânia. Desde o governo do emir Abul-Khatar o distrito de Córdova fora distribuído às tribos árabes do Iêmen e da Síria, as mais nobres e mais numerosas entre todas as raças da África e da Ásia, que tinham vindo residir na Península por ocasião da conquista ou depois dela. As famílias que se estabeleceram naquelas encostas meridionais das longas serranias chamadas pelos antigos Montes Marianos, conservaram por mais tempo os hábitos erradios dos povos pastores. Assim no meio do décimo século, posto que esse distrito fosse assas povoado, o seu aspecto assemelhava-se ao de um deserto; porque nem se descortinavam por aqueles cabeços e vales vestígios alguns de cultura, nem alvejava um único edifício no meio das colinas rasgadas irregularmente pelos algares das torrentes, ou cobertas de selvas bravias e escuras. Apenas um ou outro dia se enxergava na extrema de algum almargem virente a tenda branca do pegureiro, que no dia seguinte não se encontraria ali, se porventura se buscasse.
Havia, contudo, povoações fixas naqueles ermos; havia habitações humanas, porém não de vivos. Os árabes colocavam os cemitérios nos lugares mais saudosos dessas solidões, nos pendores meridionais dos outeiros, onde o sol, ao pôr-se, estirasse de soslaio os seus últimos raios pelas lajens lisas das campas, por entre os raminhos floridos das sarças açoutadas do vento. Era ali que, depois do vaguear incessante de muitos anos, eles vinham deitar-se mansamente uns ao pé dos outros, para dormirem o longo sono sacudido sobre as suas pálpebras das asas do anjo Azrael.
A raça árabe, inquieta, vagabunda e livre, como nenhuma outra família humana, gostava de espalhar na terra aqueles padrões, mais ou menos suntuosos, do cativeiro e imobilidade da morte, talvez para avivar mais o sentimento da sua independência ilimitada durante a vida.
No recosto de um teso, elevado no extremo de extensa gandra que subia das margens do Guadamellato para o nordeste, estava sentado um desses cemitérios pertencente à tribo iemenita dos Beni-Homair. Subindo pelo riu, viam-se alvejar ao longe as pedras das sepulturas como um vasto estendal, e três únicas palmeiras, plantadas na coroa do outeiro, lhe tinham feito dar o nome de cemitério de Al-tamarah. Transpondo o cabeço para o lado oriental, encontrava-se um desses brincos da natureza, que nem sempre a ciência sabe explicar: era um cubo de granito de desconforme dimensão, que parecia ter sido posto ali pelos esforços de centenares de homens, porque nada o prendia ao solo. Do cimo desta espécie de atalaia natural descortinavam-se para todos os lados vastos horizontes.
Era um dia à tarde: o sol descia rapidamente, e já as sombras começavam do lado de leste a empastar a paisagem ao longe em negrumes confusos. Assentado na borda do rochedo quadrangular um árabe dos Beni-Homair, armado da sua comprida lança, volvia olhos atentos, ora para o lado do norte, ora para o de oeste: depois sacudia a cabeça com um sinal negativo, inclinando-se para o lado oposto da grande pedra. Quatro sarracenos estavam ali também sentados em diversas posturas e em silêncio, o qual só era interrompido por algumas palavras rápidas, dirigidas ao da lança, e a que ele respondia sempre do mesmo modo com o seu abanar de cabeça.
"Al-barr," — disse por fim um dos sarracenos cujo trajo e gestos indicavam uma grande superioridade sobre os outros — "parece que o kaid de Chantoryu esqueceu a sua injúria como o wali de Zarkosta a sua ambição de independência; e até os partidários de Hafsun, esses guerreiros tenazes, tantas vezes vencidos pelo meu pai, não podem acreditar que Abdallah realize as promessas que me induziste a fazer-lhes."
 "Amir-al-melek" — replicou Al-bar — "ainda não é tarde: os mensageiros podem ter sido retidos por algum sucesso imprevisto. Não creias que a ambição e a vingança adormeçam tão facilmente no coração humano. Diz, Al-athar, não te juraram eles pela santa Kaaba que os enviados com a notícia da sua revolta e da entrada dos cristãos chegariam hoje a este lugar aprazado, antes do anoitecer?"
"Juraram — respondeu Al-athar —; mas que fé merecem homens que não duvidam de quebrar as promessas solenes feitas ao califa, e além disso de abrir o caminho aos infiéis para derramarem o sangue dos crentes? Amir, nestas negras tramas tenho-te servido lealmente; porque a ti devo quanto sou; mas oxalá que falhassem as esperanças que pões nos tens ocultos aliados. Oxalá não tivesse de tingir o sangue as ruas de Korthoba, e não houvera de ser o supedâneo do trono que ambicionas o túmulo do teu irmão!"
Al-athar cobriu a cara com as mãos, como se quisesse esconder a sua amargura. Abdallah parecia comovido por duas paixões opostas. Depois de se conservar algum tempo em silêncio, exclamou:
"Se os mensageiros dos revoltosos não chegarem até o anoitecer, não falemos mais nisso. O meu irmão Al-hakém acaba de ser reconhecido sucessor do califado: eu próprio o aceitei por futuro senhor poucas horas antes de vir ter convosco. Se o destino assim o quer, faça-se a vontade de Deus! Al-barr, imagina que os teus sonhos ambiciosos e os meus foram uma kassideh que não soubeste acabar, como aquela que debalde tentaste repetir na presença dos embaixadores do Frandjat, e que foi causa de caíres no desagrado do meu pai e de Al-hakém, e de conceberes esse ódio que alimentas contra eles, o mais terrível ódio deste mundo, o do amor próprio ofendido."
Ahmed Al-athar e o outro árabe sorriram ao ouvirem estas palavras de Abdallah. Os olhos, porém, de Al-bar faiscaram de cólera.
"Pagas mal, Abdallah, — disse ele com a voz presa garganta — os riscos que tenho corrido para te obter a herança do mais belo e poderoso império do Islão. Pagas com alusões afrontosas aos que jogam a cabeça com o algoz para te por na tua uma coroa. És filho do teu pai!... Não importa. Só te direi que é já tarde para o arrependimento. Pensas acaso que uma conspiração sabida de tantos ficará oculta? No ponto a que chegaste, retrocedendo é que hás de encontrar o abismo!"
No rosto de Abdallah pintava-se o descontentamento e a incerteza. Ahmed ia a falar, talvez para ver de novo se divertia o príncipe da arriscada empresa de disputar a coroa ao seu irmão Al-hakém. Um grito, porém, de atalaia o interrompeu. Ligeiro como relâmpago um vulto saíra do cemitério, galgara o cabeço, e se aproximara sem ser sentido: vinha envolto num albornoz escuro, cujo capuz quase lhe encobria as feições, vendo-se-lhe apenas a barba negra e revolta. Os quatro sarracenos puseram-se em pé de um pulo, e arrancaram as espadas.
Ao ver aquele movimento, o que chegara não fez mais do que estender para eles a mão direita e com a esquerda recuar o capuz do albornoz: então as espadas abaixaram-se como se uma corrente elétrica tivesse adormecido os braços dos quatro sarracenos. Al-bar exclamara: — "Muulin o profeta! Muulin o santo!..."
"Muulin o pecador: — interrompeu o novo personagem — Muulin, o pobre faquir penitente e quase cego de chorar as próprias culpas e as culpas dos homens, mas a quem Deus por isso ilumina às vezes os olhos da alma para antever o futuro ou ler no fundo dos corações.
 Li no vosso, homens de sangue, homens de ambição! Sereis satisfeitos! O senhor pesou na balança dos destinos a ti, Abdallah, e ao teu irmão Al-hakém. Ele foi achado mais leve. A ti o trono; a ele o sepulcro. Está escrito. Vai; não pares na carreira, que não te é dado parar! Volta a Kortheba. Entra no teu palácio Merwan; é o palácio dos califas da tua dinastia. Não foi sem mistério que o teu pai to deu por morada. Sobe ao sótão da torre. Aí acharás cartas do kaid de Chantarya, e delas verás que nem ele, nem o wali de Zarkosta, nem os Beni-Hafsun faltam ao que te juraram!"
"Santo faquir — replicou Abdallab, crédulo como todos os muçulmanos daqueles tempos de fé viva, e visivelmente perturbado — creio o que dizes, porque nada para ti é oculto. O passado, o presente, o futuro dominá-los com a tua inteligência sublime. Asseguras-me o triunfo; mas o perdão do crime podes tu assegurá-lo?"
"Verme, que te crês livre! — atalhou com voz solene o faquir. — Verme, cujos passos, cuja vontade mesma, não são mais do que frágeis instrumentos nas mãos do destino, e que te crês autor de um crime! Quando a frecha despedida do arco fere mortalmente o guerreiro, pede ela acaso a Deus perdão do seu pecado? Átomo varrido pela cólera de cima contra outro átomo, que vais aniquilar, pergunta antes se nos tesouros do Misericordioso há perdão para o orgulho insensato!"
Fez então uma pausa. A noite descia rápida. Ao lusco-fusco ainda se viu sair da manga do albornoz um braço felpudo e mirrado, que apontava para os lados de Córdova.
Nesta postura a figura do faquir fascinava. Coando pelos lábios as sílabas, ele repeliu três vezes:
"Para Merwan!"
Abdallah abaixou a cabeça, e partiu vagarosamente, sem olhar para traz. Os outros sarracenos seguiram-no. El-Muulin ficou só.
Mas quem era este homem? Todos o conheciam em Córdova; se vivêsseis, porém, naquela época e o perguntásseis nessa cidade de mais de um milhão de habitantes, ninguém vos saberia dizer. Era um mistério a sua pátria, a sua raça, donde viera. Passava a vida pelos cemitérios ou nas mesquitas. Para ele o ardor da canícula, a neve ou as chuvas do inverno eram como se não existissem. Raras vezes se via que não fosse lavado em lágrimas. Fugia das mulheres como de um objeto de horror. O que, porém, o tornava geralmente respeitado, ou antes temido, era o dom de profecia, o qual ninguém lhe disputava. Mas era um profeta terrível, porque as suas predições recaiam unicamente sobre futuros males. No mesmo dia em que nas fronteiras do império os cristãos faziam alguma correria, ou destruíam alguma povoação, ele anunciava publicamente o sucesso nas praças de Córdova: qualquer membro da família numerosa dos Beni-Umeyas caía debaixo do punhal de um assassino desconhecido, na mais remota província do império, ainda das do Moghreb ou Mauritânia, na mesma hora, no mesmo instante às vezes, ele o chorava redobrando os seus choros habituais. O terror que inspirava era tal, que no meio do maior tumulto popular a sua presença bastava para tudo cair em mortal silêncio. A imaginação exaltada do povo tinha feito dele um santo, santo como o islamismo os concebia; isto é, um homem cujas palavras e aspecto gelavam de terror.
Ao passar por ele, Al-bar apertou-lhe a mão, dizendo-lhe em voz quase imperceptível: "Salvaste-me!"
O faquir deixou-o afastar, e fazendo um gesto de profundo desprezo, murmurou:
"Eu?! Eu teu cúmplice, miserável?!"
Depois, levantando ambas as mãos abertas para o ar, começou a agitar os dedos rapidamente, e rindo com um rir sem vontade, exclamou:
"Pobres títeres!"
Quando se fartou de representar com os dedos a ida de escarnio que lhe sorria lá dentro, dirigiu-se, ao longo do cemitério, também para os lados de Córdova, mas por diverso atalho.
  
CAPÍTULO 2
Nos paços de Azahrat, o magnífico alcaçar dos califas de Córdova, há muitas horas que cessou o estrepito de uma grande festa. O luar de noite serena de abril bate pelos jardins que se dilatam desde o alcaçar até o Guad-al-kebir, e alveja trémulo pelas fitas cinzentas dos caminhos tortuosos, em que parecem enredados os bosquezinhos de arbustos, os maciços de árvores silvestres, as veigas de flores, os vergéis embalsamados, onde a laranjeira, o limoeiro, e as restantes árvores frutíferas, trazidas da Pérsia, da Síria e do Cathay, espalham os aromas variados das suas flores. Lá ao longe Córdova, a capital da Hispânia muçulmana, repousa da lida diurna, porque sabe que Abdur-rahman III, o ilustre califa, vê-la pela segurança do império. A vasta cidade repousa profundamente; e o ruído mal distinto que parece revoar por cima dela, é apenas o respiro lento dos seus largos pulmões, o bater regular das suas robustas artérias. Das almádenas de seiscentas mesquitas não soa uma única voz de almuhaden, e os sinos das igrejas moçárabes guardam também silêncio. As ruas, as praças, os azokes, ou mercados, estão desertos. Somente o murmúrio das novecentas fontes ou banhos públicos, destinados às abluções dos crentes, ajuda o zumbido noturno da suntuosa rival de Bagdá.
Que festa fora essa que expirara algumas horas antes de nascer a lua, e de tingir com a brancura pálida da sua luz aqueles dois vultos enormes de Azahrat e de Córdova, que olhavam um para o outro, a cinco milhas de distância, como dois fantasmas gigantes envoltos em largos sudários? Na manhã do dia que findara, Al-hakém, o filho mais velho de Abdur-rahman, fora associado ao trono. Os walis, wasires e khatehs da monarquia dos Beni-Umeyas tinham vindo reconhece-lo Wali-al-ahdi; isto é, futuro califa do Andalus e do Moghreb. Era uma ida afagada longamente pelo velho príncipe dos crentes que se realizara, e o júbilo de Abdur-rahman se havia espraiado numa dessas festas, por assim dizer fabulosas, que só sabia dar no século decimo a corte mais polida da Europa, e talvez do mundo, a do soberano sarraceno de Hispânia.
O palácio Merwan, junto dos muros de Córdova, distingue-se à claridade duvidosa da noite pelas suas formas maciças e retangulares, e a sua cor tisnada, bafo dos séculos que entristece e santifica os monumentos, contrasta com a das cúpulas aéreas e douradas dos edifícios, com a das almádenas esguias e leves das mesquitas, e com a dos campanários cristãos, cuja tez docemente pálida suaviza ainda mais o brando raio de luar que se quebra naqueles estreitos panos de pedra branca, de onde não se reflete, mas cabe na terra preguiçoso e dormente. Como Azahrat e como Córdova, calado e aparentemente tranquilo, o palácio Merwan, a antiga morada dos primeiros califas, suscita ideias sinistras, enquanto o aspecto da cidade e da vila imperial unicamente inspiram um sentimento de quietação e paz. Não é só a negridão das suas vastas muralhas a que produz essa apertura do coração que experimenta quem o considera assim solitário e carrancudo; é também o clarão avermelhado que ressumbra da mais alta das raras frestas abertas na face exterior da sua torre albarrã, a maior de todas as que o cercam, a que atalaia a campanha. Aquela luz, no ponto mais elevado do grande e escuro vulto da torre, é como um olho de demônio, que contempla colérico a paz profunda do império, e que espera ansioso o dia em que renasçam as lutas e as devastações de que por mais de dois séculos fora teatro o solo ensanguentado de Hispânia.
Alguém vê-la, talvez, no paço de Merwan. No de Azahrat, posto que nenhuma luz bruxuleei nos centenares de varandas, de miradouros, de pórticos, de balcões, que lhe arrendam o imenso circuito, alguém vê-la por certo.
A sala denominada do Califa, a mais espaçosa entre tantos aposentos quantos encerra aquele rei dos edifícios, devera a estas horas mortas estar deserta, e não o está. Dois lampadários de muitos lumes pendem dos artesões primorosamente lavrados, que, cruzando-se em ângulos retos, servem de moldura ao almofadado de azul e ouro, que reveste as paredes e o teto. A água de fonte perene murmura caindo num tanque de mármore construído no centro do aposento, e no topo da sala ergue-se o trono de Abdur-rahman, alcatifado dos mais ricos tapetes do país de Fars. Abdur-rahman está aí sozinho. O califa passeia de um para outro lado, com olhar inquieto, e de instante a instante para e escuta, como se esperasse ouvir um ruído longínquo. No seu gesto e meneios pinta-se a mais viva ansiedade; porque o único ruído que lhe fere os ouvidos é o dos próprios passos sobre o xadrez variegado, que forma o pavimento da imensa quadra. Passado algum tempo, uma porta, escondida entre os brocados que forram os lados do trono, abre-se lentamente, e um novo personagem aparece. No rosto de Abdur-rahman, que o vê aproximar, pinta-se uma inquietação ainda mais viva.
O recém-chegado oferecia notável contraste no seu gesto e vestiduras com as pompas do lugar em que se introduzia, e com o aspecto majestoso de Abdur-rahman, ainda belo apesar dos anos e dos cabelos brancos que começavam a misturar-se-lhe na longa e espessa barba negra. Os pés do que entrara apenas faziam um rumor sumido no chão de mármore. Vinha descalço. A sua aljarabia ou túnica era de lã grosseiramente tecida, o cinto uma corda de esparto. Divisava-se-lhe, porém, no despejo do andar e na firmeza dos movimentos que nenhum espanto produzia nele aquela magnificência. Não era velho; e todavia a sua tez tostada pelas injúrias do tempo estava sulcada de rugas, e uma orla vermelha circulava-lhe os olhos, negros, encovados e reluzentes. Chegando ao pé do califa, que ficara imóvel, cruzou os braços e pôs-se a contemplá-lo calado. Abdur-rahman foi o primeiro em romper o silêncio:
"Tardaste muito, e foste menos pontual do que costumas, quando anuncias a tua vinda a hora fixa, Al-muulin! Uma visita tua é sempre triste como o teu nome. Nunca entraste a ocultas em Azahrat senão para me saciares de amargura; mas apesar disso eu não deixarei de abençoar a tua presença, porque Algafir — dizem-no todos e eu o creio — é um homem de Deus. Que vens anunciar-me, ou que pretendes de mim?"
"Amir-al-muminin, que pode pretender de ti um homem cujos dias se passam à sombra dos túmulos pelos cemitérios, e a cujas noites de oração basta por abrigo o pórtico de um templo; cujos olhos tem queimado o choro, e que não esquece um instante que tudo neste desterro, a dor e o gozo, a morte e a vida, está escrito lá em cima? Que venho anunciar-te?!. O mal; porque só mal há na terra para o homem, que vive como tu, como eu, como todos, entre o apetite e o rancor; entre o mundo e Eblis; isto é, entre os seus eternos e implacáveis inimigos!" 
"Vens, pois, anunciar-me uma desventura?!. Cumpra-se a vontade de Deus. Tenho reinado perto de quarenta anos, sempre poderoso, vencedor e respeitado; todas as minhas ambições tem sido satisfeitas, todos os meus desejos preenchidos; e todavia nesta longa carreira de glória e prosperidade só fui inteiramente feliz quatorze dias da minha vida. Pensava que este fosse o décimo quinto. Devo acaso apagá-lo do registo em que conservo a memória deles, e em que já o tinha escrito?"
"Podes apagá-lo: — replicou o rude faquir — podes, até, rasgar todas as folhas brancas que restam no livro. Califa! vês estas faces sulcadas pelas lágrimas? vês estas pálpebras requeimadas por elas? Duro é o teu coração, mais que o meu, se em breve as tuas pálpebras e as tuas faces não estão semelhantes às minhas."
O sangue tingiu o rosto alvo e suavemente pálido de Abdur-rahman: os seus olhos serenos como o céu, que imitavam na cor, tomaram a terrível expressão que ele costumava dar-lhes no revólver dos combates, olhar esse que só por si fazia recuar os inimigos. O faquir não se moveu, e pôs-se a olhar também para ele fito.
"Al-muulin, o herdeiro dos Beni-Umeyas pode chorar arrependido dos seus erros diante de Deus; mas quem disser que há neste mundo desventura capaz de lhe arrancar uma lágrima, diz-lhe ele que mentiu!"
Os cantos da boca de Al-gafir encresparam-se com um quase impercetível sorriso. Houve um largo espaço de silêncio. Abdur-rahman não o interrompeu: o faquir prosseguiu:
"Amir-al-muminin, qual dos teus dois filhos amas tu mais? Al-hakém, o sucessor do trono, o bom e generoso Al-hakém, ou Abdallah, o sábio e guerreiro Abdallah, o ídolo do povo de Korthoba?"
"Oh, — replicou o califa sorrindo — já sei o que me queres dizer. Devias prever que a nova viria tarde, e que eu havia de sabe-lo... Os cristãos passaram a um tempo as fronteiras do norte e do oriente. O meu velho tio Al-mod-dhafer já depôs a espada vitoriosa, e crês necessário expor a vida de um deles aos golpes dos infiéis. Vens profetizar-me a morte do que partir. Não é isto? Fakih, creio em ti, que és aceito ao Senhor; mas ainda creio mais na estrela dos Beni-Umeyas. Se eu amasse um mais do que outro não hesitaria na escolha: fora esse que eu mandara, não à morte, mas ao triunfo. Se, porém, essas são as tuas previsões, e elas tem de realizar-se, Deus é grande! Que melhor leito de morte posso eu desejar aos meus filhos do que um campo de batalha em al-djihed (guerra santa) contra os infiéis?"
Al-gafir escutou Abdur-rahman sem o menor sinal de impaciência.
Quando ele acabou de falar repetiu tranquilamente a pergunta:
"Califa, qual amas tu mais dos teus dois filhos?"
"Quando a imagem pura e sancta do meu bom Al-hakém se me representa no espírito, amo mais Al-hakém: quando com os olhos da alma vejo o nobre e altivo gesto, a cara vasta e inteligente do meu Abdallah, amo-o mais a ele. Como te posso eu, pois, responder, faquir?"
"E todavia é necessário que escolhas, hoje mesmo, neste momento, entre um e outro.
Um deles deve morrer na próxima noite, obscuramente, nestes paços, aqui mesmo talvez, sem glória, debaixo do cutelo do algoz, ou do punhal do assassino."
Abdur-rahman recuara ao ouvir estas palavras: o suor começou a descer-lhe em bagas da cara. Bem que tivesse mostrado uma firmeza fingida, sentira apertar-se-lhe o coração desde que o faquir começara a falar. A reputação de iluminado de que gozava Al-muulin, o caráter supersticioso do califa, e mais que tudo, terem verificado todas as negras profecias que num longo decurso de anos ele lhe fizera, tudo contribuía para aterrar o príncipe dos crentes. Com voz trémula replicou:
"Deus é grande e justo. Que lhe fiz eu para me condenar no fim da vida a perpétua aflição, a ver correr o sangue dos meus filhos queridos às mãos da desonra ou da perfídia?"
"Deus é grande e justo, — interrompeu o faquir. — Acaso nunca fizeste correr injustamente o sangue? Nunca por ódio brutal despedaçaste de dor nenhum coração de pai, de irmão, de amigo?"
Al-muulin tinha carregado na palavra irmão com um acento singular. Abdur-rahman, possuído de mal refreado susto, não atentou por isso.
"Posso eu acreditar uma tão estranha, direi antes tão incrível profecia — exclamou ele por fim — sem que me expliques o modo porque se deve realizar esse terrível sucesso; e como há de o ferro do assassino ou do algoz vir dentro dos muros de Azahrat verter o sangue de um dos filhos do califa de Korthoba, cujo nome, seja-me lícito dize-lo, é o terror dos cristãos, e a glória do islamismo?"
Al-muulin tomou um ar imperioso e solene, estendeu a mão para o trono, e disse:
"Assenta-te, califa, no teu trono, e escuta-me, porque em nome da futura sorte do Andalus, da paz e da prosperidade do império, e das vidas e do repouso dos muçulmanos eu venho denunciar-te um grande crime. Que punas, que perdoes, esse crime tem de custar-te um filho. Sucessor do profeta, ímã da divina religião do Koran, escuta-me, porque é obrigação tua ouvir-me."
O tom inspirado com que Al-muulin falava, a hora de alta noite, o negro mistério que encerravam as palavras do faquir tinham subjugado a alma profundamente religiosa de Abdur-rahman. Maquinalmente subiu ao trono, encruzou-se em cima da pilha de coxins em que ele rematava, e encostando ao punho o rosto demudado, disse com voz presa: — "Podes falar, Suleyman-ibn-Abd-al-gafir!"
Tomando então uma postura humilde, e cruzando os braços sobre o peito, Al-gafir o triste começou da seguinte maneira a sua narrativa.
 

CAPÍTULO 3
"Califa! — começou Al-muulin — tu és grande; tu és poderoso. Não sabes o que é a afronta ou a injustiça cruel que esmaga o coração nobre e enérgico, se este não pode repeli-la, e sem demora, com o mal ou com a afronta, vingá-la à luz do sol! Tu não sabes o que então se passa na alma desse homem, que por todo o desagravo deixa fugir alguma lágrima furtiva, e até, às vezes, é obrigado a beijar a mão que o feriu nos seus mais santos afetos. Não sabes o que isto é; porque todos os teus inimigos tem caído diante do alfanje do almogaure, ou deixado tombar a cabeça de cima do cepo do algoz. Ignoras por isso o que é o ódio; o que são essas solidões tenebrosas, por onde o ressentimento, que não pode vir ao gesto, se dilata e vive à espera do dia da vingança. Dir-to-ei eu. Nessa noite imensa, em que se envolve o coração chagado, há uma luz sanguinolenta que vem do inferno, e que ilumina o espírito vagabundo. Há aí terríveis sonhos, em que o mais rude e ignorante descobre sempre um meio de desagravo. Imagina como será fácil aos altos entendimentos o encontrá-lo! É por isso que a vingança, que parecia morta e esquecida, aparece às vezes inesperada, tremenda, irresistível, e morde-nos surgindo debaixo dos pés como a víbora, ou despedaça-nos como o leão pulando de entre os juncais. Que lhe importa a ela a majestade do trono, a santidade do templo, a paz domestica, o ouro do rico, o ferro do guerreiro? Mediu as distâncias, calculou as dificuldades, meditou no silêncio, e riu-se de tudo isso!"
E Al-gafir o triste desatou a rir ferozmente, Abdur-rahman olhava para ele espantado.
"Mas — prosseguiu o faquir — às vezes Deus suscita um dos seus servos, um dos seus servos de ânimo tenaz e forte, possuído também de alguma ida oculta e profunda, que se levante, e rompa a trama urdida nas trevas. Este homem no caso presente sou eu.
Para bem? Para mal? — Não sei; mas sou! Sou eu que, venho revelar-te como se prepara a ruína do teu trono, e a destruição da tua dinastia."
"A ruína do meu trono? — gritou Abdur-rahman pondo-se em pé e levando a mão ao punho da espada. — Quem, a não ser algum louco, imagina que o trono dos Beni-Umeyas pode, não digo desconjuntar-se, mas apenas vacilar debaixo dos pés de Abdur-rahman? Quando, porém, falarás enfim claro, Al-muulin?"
E a cólera e o despeito faiscavam-lhe nos olhos. Com a sua habitual impassibilidade o faquir prosseguiu:
"Esqueces-te, califa, da tua reputação de prudência e longanimidade. Pelo profeta! Deixa divagar um velho tonto como eu. Não!. Tens razão. Basta! O raio que fulmina o cedro desce rápido do céu. Quero ser como ele. Amanhã a estas horas o teu filho Abdallah ter-te-á já privado da coroa para a cingir na própria cara, e o teu sucessor Al-hakém terá perecido sob um punhal de assassino. Ainda te encolerizas? Foi acaso demasiado extensa a minha narrativa?"
"Infame! — exclamou Abdur-rahman — Hipócrita, que me tens enganado! Tu ousas caluniar o meu Abdallah? Sangue! Sangue há de correr, mas é o teu. Crias que com essas visagens de inspirado, com esses trajos de penitência, com essa linguagem dos santos poderias quebrar a afeição mais pura, a de um pai? Enganas-te, Al-gafir! A minha reputação de prudente, verás que era bem merecida."
Dizendo isto o califa ergueu as mãos como quem ia a bater as palmas. Al-muulin interrompeu-o rapidamente, mas sem mostrar o menor indício de perturbação ou terror.
"Não chames ainda os eunucos; porque assim é que dás provas de que não a merecias. Conheces que me seria impossível fugir. Para matar ou morrer sempre é tempo. Escuta, pois, o infame, o hipócrita até o fim. Acreditarias tu na palavra do teu nobre e altivo Abdallah? Bem sabes que ele é incapaz de mentir ao seu amado pai, a quem deseja longa vida e todas as prosperidades possíveis."
O faquir desatara de novo num rir trémulo e hediondo. Meteu a mão no peitilho da aljarabia e tirou uma a uma muitas tiras de pergaminho: pô-las sobre a cabeça e entregou-as ao califa, que começou a ler com avidez. A pouco e pouco Abdur-rahman foi empalidecendo, as pernas vergaram-lhe, e por fim deixou-se cair sobre os coxins do trono, e cobrindo a cara com as mãos, murmurou: — "Meu Deus! porque te mereci isto!"
Al-muulin fitara nele um olhar de girifalte, e nos lábios vagueava-lhe um riso sardônico e quase imperceptível.
Os pergaminhos eram várias cartas dirigidas por Abdallah aos rebeldes das fronteiras do oriente, os Beni-Hafsun, e a diversos sheiks berberes, dos que se tinham instalado na Hispânia, conhecidos pelo seu pouco afeto aos Beni-Umeyas. O mais importante, porém, de tudo era uma extensa correspondência com Umeya-ibn-Ishak, guerreiro célebre e antigo alcaide de Santarém, que por graves ofensas passara ao serviço dos cristãos de Oviedo e Astúrias com muitos cavaleiros ilustres da sua clientela. Esta correspondência era completa de parte a parte. Por ela se via que Abdallah contava não só com os recursos dos muçulmanos seus parciais, mas também com importantes socorros dos infiéis por intervenção de Umeya. A revolução devia rebentar em Córdova pela morte de Al-hakém e pela deposição de Abdur-rahman. Uma parte da guarda do alcácer de Azahrat estava comprada. Al-barr, que figurava muito nestas cartas, seria o hadjeb ou primeiro ministro do novo califa. Ali se liam, enfim, os nomes dos principais personagens implicados na revolta, e todas as circunstâncias desta eram explicadas ao antigo alcaide de Santarém com aquela individuação que nas suas cartas ele constantemente exigia. Al-muulin falara verdade: Abdur-rahman via despregar diante de si a longa teia da conspiração, escrita com letras de sangue pela mão do seu próprio filho.
Durante algum tempo o califa conservou-se como a estátua da dor na postura que tomara. O faquir olhava fito para ele com uma espécie de cruel complacência. Al-muulin foi o primeiro que rompeu o silêncio: o príncipe Beni-Umeya, esse parecia ter perdido o sentimento da vida.
"É tarde: — disse o faquir. — Chegará em breve a manhã. Chama os eunucos. Ao romper do sol a minha cabeça pregada nas portas de Azahrat deve dar testemunho da prontidão da tua justiça. Elevei ao trono de Deus a última oração, e estou aparelhado para morrer, eu o hipócrita, eu o infame, que pretendia lançar sementes de ódio entre ti e o teu virtuoso filho. Califa, quando a justiça espera não são boas horas para meditar ou dormir."
Al-gafir retomava a sua habitual linguagem sempre irônica e insolente, e ao redor dos lábios vagueava-lhe de novo o riso mal reprimido.
A voz do faquir despertou Abdur-rahman dos seus tenebrosos pensamentos. Pôs-se em pé. As lágrimas tinham corrido por aquelas faces, mas estavam enxutas. A procela de paixões encontradas tumultuava lá dentro; mas o gesto do príncipe dos crentes recobrara aparente serenidade. Descendo do trono pegou na mão mirrada de Al-muulin, e apertando-a entre as suas, disse:
"Homem que guias teus passos pelo caminho do céu; homem aceito ao profeta, perdoa as injúrias de um insensato! Cria ser superior à fraqueza humana. Enganava-me! Foi um momento que passou. Possas tu esquece-lo! Agora estou tranquilo... bem tranquilo. Abdallah, o traidor que era meu filho, não concebeu tão atroz desígnio. Alguém lho inspirou: alguém verteu naquele ânimo soberbo as vans e criminosas esperanças de subir ao trono por cima do meu cadáver e do de Al-hakém. Não desejo sabe-lo para o absolver; porque ele já não pode evitar o destino fatal que o aguarda. Morrerá; que antes de ser pai fui califa, e Deus confiou-me no Andalus a espada da suprema justiça. Morrerá; mas hão de acompanhá-lo todos os que o precipitaram no abismo."
"Ainda há pouco te disse — replicou Al-gafir — o que pôde inventar o ódio que é obrigado a esconder-se debaixo do manto da indiferença, e até da submissão. Al-barr, o orgulhoso Al-barr, que tu ofendeste no seu amor próprio de poeta, e que expulsaste de Azahrat como um homem sem engenho nem saber, quis provar-te que ao menos possuía o talento de conspirador. Foi ele que preparou este terrível sucesso. Hás de confessar que se houve com destreza. Só numa coisa não: em pretender associar-me aos seus desígnios. Associar-me?... não digo bem... fazer-me seu instrumento. A mim!... Queria que eu te apontasse ao povo como um ímpio pelas tuas alianças com os emires infiéis do Frandjat. Fingi estar por tudo; e chegou a confiar plenamente na minha lealdade. Tomei ao meu cargo as mensagens aos rebeldes do oriente e a Umeya-ibn-Ishak, o aliado dos cristãos, o antigo kaid de Chantaryin. Foi assim que pude coligir estas provas de conspiração. Loucos! as suas esperanças eram a miragem do deserto. Dos seus aliados apenas os de Zarkosta e das montanhas de Al-kibla não foram um sonho. As cartas de Umeya, as promessas do emir nazareno de Djalikia, tudo era feito por mim. Como eu enganei Al-barr, que bem conhece a letra de Umeya, esse é um segredo que depois de tantas revelações, tu deixarás, califa, que eu guarde para mim... Oh, os insensatos! os insensatos!"
E desatou a rir.
A noite tinha-se aproximado do seu fim. A revolução, que ameaçava trazer à Hispânia muçulmana todos os horrores da guerra civil, devia rebentar dentro de poucas horas, talvez. Era necessário afogá-la em sangue. O longo habito de reinar, junto ao caráter enérgico de Abdur-rahman, fazia com que nestas crises ele desenvolvesse de um modo admirável todos os recursos que o gênio amestrado pela experiência lhe sugeria. Recalcando no fundo do coração a cruel lembrança de que era um filho que ia sacrificar à paz e à segurança do império, o califa despediu Al-muulin, e mandando imediatamente reunir o divã deu largas instruções ao chefe da guarda dos eslavos.
Ao romper da manhã todos os conspiradores que residiam em Córdova estavam presos, e muitos mensageiros tinham partido levando as ordens de Abdur-rahman aos walis das províncias e aos generais das fronteiras. Apesar das lágrimas e rogos do generoso Al-hakém, que lutou tenazmente por salvar a vida do seu irmão, o califa mostrou-se inflexível. A cabeça de Abdallah caiu aos pés do algoz na própria câmara do príncipe no palácio Merwan. Al-barr, suicidando-se na masmorra em que o tinham lançado, evitou assim o suplício.
O dia imediato à noite em que se passou a cena entre Abdur-rahman e Al-gafir, que tentamos descrever, foi um dia de sangue para Córdova, e de luto para muitas das mais ilustres famílias.

CAPÍTULO 4
Era pelo fim da tarde. Numa alcova do palácio de Azahrat via-se reclinado um velho sobre as almofadas persas de um vasto almatrah, ou camilha. Os seus ricos trajos, orlados de peles alvíssimas, faziam sobressair as feições enrugadas, a palidez do rosto, o encovado dos olhos, que lhe davam ao gesto todas as características de um cadáver. Pela imobilidade dir-se-ia que era uma destas múmias que se encontram pelas catacumbas do Egito, apertadas entre as cem voltas das suas faixas mortuárias, e inteiriçadas dentro dos sarcófagos de pedra. Um único sinal revelava a vida nessa grande ruína de um homem grande; era o movimento da barba longa e pontiaguda que se lhe estendia como um cone de neve tombado sobre o peitilho da túnica de precioso tiraz. Abdur-rahman, o ilustre califa dos muçulmanos do ocidente, jazia aí e falava com outro velho, que, em pé em frente dele, o escutava atentamente; mas a sua voz saia tão fraca e lenta, que, apesar do silêncio que reinava no aposento, só na curta distancia a que estava o outro velho se poderiam perceber as palavras do califa.
O seu interlocutor é uma personagem que o leitor conhecerá apenas reparar no modo porque está trajado. A sua vestidura é uma aljarabia de burel cingida de uma corda de esparto. Há muitos anos que nisto cifrou todos os cômodos que aceita à civilização. Está descalço, e a grenha hirsuta e já grisalha cai-lhe sobre os ombros em madeixas revoltas e emaranhadas. A sua tez não é pálida, os seus olhos não perderam o brilho, como a tez e como os olhos de Abdur-rahman. Naquela, coriácea e crestada, domina a cor mista de verde-negro e amarelo do ventre de um crocodilo; nestes, cada vez que os volve, fulgura a centelha de paixões ardentes, que lhe sussurram dentro de alma como a lava prestes a jorrar do vulcão que ainda parece dormir. É Al-muulin, o santo faquir, que vimos salvar, onze anos antes, o califa e o império da intentada revolução de Abdallah.
Tinham de fato passado onze anos desde os terríveis sucessos acontecidos naquela noite em que Al-muulin descobrira a conspiração que se urdia, e desde então nunca mais se vira Abdur-rahman sorrir. O sangue de tantos muçulmanos vertido pelo ferro do algoz, e sobretudo o sangue do seu próprio filho descera como a maldição do profeta sobre a cabeça do príncipe dos crentes. Entregue a melancolia profunda, nem as notícias de vitórias, nem a certeza do estado florescente império o podiam distrair dela senão momentaneamente. Encerrado durante os últimos tempos da vida no palácio de Azahrat, a maravilha de Hispânia, abandonara os cuidados do governo ao seu sucessor Al-hakém. Os gracejos da escrava Nuirat-edia, a conversa instrutiva da bela Ayecha, e as poesias de Mozna e de Sofyia eram o único alívio que adoçava a existência aborrida do velho leão do islamismo. Mas apenas Al-gafir o triste se apresentava perante o califa, ele fazia retirar todos, e ficava encerrado horas e horas com este homem, tão temido quanto venerado do povo pela austeridade das suas doutrinas, pregadas com a palavra, mas ainda mais com o exemplo. Abdur-rahman parecia inteiramente dominado pelo rude faquir, e, ao vê-lo, qualquer poderia ler no gesto do velho príncipe os sentimentos opostos do terror e do afeto, como se metade da sua alma o arrastasse irresistivelmente para aquele homem, e a outra metade o repelisse com repugnância invencível. O mistério que havia entre ambos ninguém o podia entender.
E todavia a explicação era bem simples: estava no caráter extremamente religioso do califa, na sua velhice e no seu passado de príncipe absoluto, situação em que são fáceis grandes virtudes e grandes crimes. Habituado à lisonja, a linguagem áspera e altivamente sincera de Al-muulin tivera a princípio o atrativo de ser para ele inaudita; depois a reputação de virtude de Al-gafir, a crença de que era um profeta, a maneira porque, para o salvar e ao império, arrostara com a sua cólera, e provara desprezar completamente a vida, tudo isto fizera com que Abdur-rahman visse nele, como o mais crédulo dos seus súbditos, um homem predestinado, um verdadeiro santo. Sentindo avizinhar a morte, Abdur-rahman tinha sempre diante dos olhos que esse faquir era como o anjo que devia conduzi-lo pelos caminhos da salvação até o trono de Deus. Cifrava-se nele a esperança de um futuro incerto, que não podia tardar, e assim o espírito do monarca, enfraquecido pelos anos, estudava ansiosamente a mínima palavra, o menor gesto de Al-muulin; prendia-se ao monge muçulmano como a hera antiga ao carvalho, em cujo tronco se alimenta, se ampara, e vai trepando para o céu. Mas, às vezes, Al-gafir repugnava-lhe. No meio das expansões mais sinceras, dos mais ardentes voos de uma piedade profunda, de uma confiança inteira na misericórdia divina, o Faquir fitava de repente nele os olhos cintilantes, e com sorriso diabólico vibrava uma frase irônica, insolente e desanimadora, que ia gelar no coração do califa as consolações da piedade, e despertar remorsos e terrores, ou completa desesperação. Era um jogo terrível em que se deleitava Al-muulin, como o tigre com o palpitar dos membros da rês que se lhe agita moribunda entre as garras sanguentas. Nessa luta infernal em que lhe trazia a alma estava o segredo da atração e repugnância, que ao mesmo tempo o velho monarca mostrava para com o faquir, cujo aparecimento em Azahrat cada vez se tornava mais frequente, e agora se renovava todos os dias.
A noite descia triste: as nuvens corriam rapidamente do lado do oeste, e deixavam de vez em quando passar um raio afogueado do sol que se punha. O vento tépido, úmido e violento fazia ramalhar as árvores dos jardins que circundavam os aposentos de Abdur-rahman. As folhas, retintas já de um verde amarelado e mortal, desprendiam-se das tranças das romeiras, dos sarmentos das videiras e dos ramos dos choupos em que estas se enredavam, e, remoinhando nas correntes da ventania, iam, iam, até rastejar pelo chão e empeçar na erva seca dos prados. O califa, exausto, sentia aquele ciclo da vegetação moribunda chamá-lo também para a terra, e a melancolia da morte pesava-lhe sobre o espírito. Al-muulin durante a conversa daquela tarde havia-se mostrado, contra o seu costume, severamente grave, e nas suas palavras havia o que quer que era acorde com a tristeza que o rodeava.
"Conheço que se aproxima a hora fatal: — dizia o califa. — Nestas veias em breve se gelará o sangue; mas, santo faquir, não me será lícito confiar na misericórdia de Deus? Derramei o bem entre os muçulmanos, o mal entre os infiéis: fiz emudecer o livro de Jesus perante o de Mohammed; e deixo ao meu filho um trono firmado no amor dos súbditos e na veneração e temor dos inimigos da dinastia dos Beni-Umeyas. Fiz quanto a um homem era dado fazer pela glória do Islão. Que mais pretendes? — Por que não tens nos lábios para o pobre moribundo senão palavras de terror? — Por que há tantos anos me fazes beber gole a gole a taça da desesperação?"
Os olhos do faquir, ao ouvir estas perguntas, brilharam com desusado fulgor, e um daqueles sorrisos diabólicos, com que costumava fazer gelar todas as ardentes ideias místicas do príncipe, lhe assomou ao rosto enrugado e carrancudo. Contemplou por um momento o do velho monarca, onde de fato já vagueavam as sombras da morte: depois dirigiu-se à porta da câmara, assegurou-se bem de que não era possível abrirem-na exteriormente, e voltando para ao pé do almatrah, tirou do peitilho um rolo de pergaminho, e começou a ler em tom de indizível escarnio:
"Resposta de Al-gafir o triste às últimas perguntas do poderoso Abdur-rahman, oitavo califa de Córdova, o sempre vencedor, justiceiro e bem-aventurado entre todos os príncipes da raça dos Beni-Umeyas. Capítulo avulso da sua história."
Um rir prolongado seguiu a leitura do título do manuscrito.
Al-muulin continuou:
"No tempo deste celebre, virtuoso, ilustrado e justiceiro monarca havia no seu divã um wasir, homem sincero, zeloso da lei do profeta, e que não sabia torcer por humanos respeitos a voz da sua consciência. Chamava-se Mohammed-Ibn-Ishak, e era irmão de Umeya-Ibn-Ishak, kaid de Chantaryn, um dos guerreiros mais ilustres do Islão, segundo diziam."
"Ora esse wasir caiu no desagrado do Abdur-rahman, porque lhe falava verdade, e rebatia as adulações dos seus lisonjeiros. Como o califa era generoso, o desagrado para com Mohammed converteu-se em ódio; e como era justo, o ódio breve se traduziu numa sentença de morte. A cabeça do ministro caiu no cadafalso, e a sua memória passou à posteridade manchada pela calúnia. Todavia o príncipe dos fiéis sabia bem que tinha assassinado um inocente."
As feições transtornadas de Abdur-rahman tomaram uma expressão horrível de angústia: quis falar, mas apenas pôde fazer um sinal como que pedindo ao faquir que se calasse. Este prosseguiu:
"Parece-me que o ouvir a leitura dos anais do teu ilustre reinado te alivia e revoca à vida. Continuarei. Pudesse eu prolongar assim os teus dias, clementíssimo califa!"
"Umeya, quando soube da morte ignominiosa do seu querido irmão, ficou como insensato. À saudade juntava-se o horror do ferrete posto sobre o nome, sempre imaculado, da sua família. Dirigiu as súplicas mais veementes ao príncipe dos fiéis para que ao menos reabilitasse a memória da pobre vítima; mas soube-se que ao ler a sua carta o virtuoso príncipe desatara a rir! Era, conforme lhe relatou o mensageiro, deste modo que ele ria."
E Al-muulin aproximou-se de Abdur-rahman, e soltou uma gargalhada.
O moribundo arrancou um gemido.
"Estás um pouco melhor... não é verdade, invencível califa? Prossigamos. Umeya quando tal soube, calou-se. O mesmo mensageiro que chegara de Korthoba partiu para Oviedo. O rei cristão de Al-djuf não se riu da sua mensagem. Daí a pouco Radmiro tinha passado o Douro, e as fortalezas e cidades muçulmanas até o Tejo tinham aberto as portas ao rei franco, por ordem do kaid de Chantaryn. Com um numeroso esquadrão de amigos leais este ajudou a devastar o território muçulmano do Gharb até Mérida.
Foi uma esplêndida festa; um sacrifício digno da memória do seu irmão. Seguiram-se muitas batalhas, em que o sangue humano correu em torrentes."
"Pouco a pouco Umeya começou a refletir. Era Abdur-rahman quem o ofendera. Para que tanto sangue vertido? A sua vingança fora a de uma besta-fera; fora estúpida e van. Ao califa, quase sempre vitorioso, que importavam os que por ele pereciam? O kaid de Chantaryn mudou então de sistema. A guerra pública e inútil converteu-a em perseguição oculta e eficaz: à forca opôs a destreza. Fingiu abandonar os seus aliados e sumiu-se nas trevas. Esqueceram-se dele. Quando voltou a aparecer à luz do dia ninguém o conheceu. Era outro. Vestia um burel grosseiro; cingia uma corda de esparto; os cabelos caiam-lhe desordenados sobre os ombros e velavam-lhe metade do rosto: as faces tinha-lhas tisnado o sol dos desertos. Correra o Andaluz e o Moghreb; espalhara por toda a parte os tesouros da sua família e os próprios tesouros até o último dirhem, e em toda a parte deixara agentes e amigos fiéis. Depois veio viver nos cemitérios de Korthoba, junto dos pórticos soberbos do seu inimigo mortal; espiar todos os momentos em que pudesse oferecer-lhe a amargura, as angústias em troca do sangue de Mohammed-Ibn-Isbak. O guerreiro chamou-se desde esse tempo Al-gafir, e o povo denominava-o Al-muulin, o santo faquir."
Como sacudido por uma corrente elétrica, Abdur-rahman dera um pulo no almatrah ao ouvir estas últimas palavras, e ficara sentado, hirto e com as mãos estendidas. Queria bradar, mas o sangue escumou-lhe nos lábios, e só pôde murmurar já quase ininteligivelmente:
"Maldito!"
"Boa coisa é a história, — prosseguiu o seu algoz sem mudar de postura — quando nos recordamos do nosso passado, e não achamos lá para colher um único espinho de remorso! É o teu caso, virtuoso príncipe! Mas sigamos avante. O santo faquir Al-muulin foi quem instigou Al-bar a conspirar contra Abdur-rahman; quem perdeu Abdallah; quem delatou a conspiração; quem se apoderou do teu ânimo crédulo; quem te puniu com os terrores de tantos anos; quem te acompanha no trance derradeiro, para te lembrar junto às portas do inferno que se foste o assassino do seu irmão, também o foste do próprio filho; para te dizer que se cobriste o seu nome de ignomínia, também ao teu se juntará o de tirano. Ouve pela última vez o rir que responde ao teu riso de há dez anos. Ouve, ouve, califa!"
Al-gafir, ou antes Umeya, levantara gradualmente a voz, e estendia os punhos cerrados para Abdur-rahman, cravando nele os olhos reluzentes e desvairados. O velho monarca tinha os seus abertos, e parecia também olhar para ele, mas perfeitamente tranquilo. A quem tivesse presenciado aquela tremenda cena não seria fácil dizer qual dos dois tinha mais horrendo gesto.
Era um cadáver o que estava diante de Umeya: o que estava diante do cadáver era a expressão mais enérgica da atrocidade de coração vingativo.
"Oh, se não ouviria as minhas derradeiras palavras!." — murmurou o faquir depois de ter conhecido que o califa estava morto. Pôs-se depois a pensar durante muito tempo: as lágrimas rolavam-lhe a quatro e quatro pelas faces rugosas. — "Um ano mais de tormentos, e ficava satisfeito! — exclamou por fim. — Pudera eu dilatar-lhe a vida!"
Dirigiu-se então para a porta, abriu-a de par em par e bateu as palmas. Os eunucos, as mulheres, e o próprio Al-hakém, inquieto pelo estado do seu pai, precipitaram-se no aposento. Al-muulin parou no limiar da porta, voltou-se para traz, e com voz lenta e grave disse:
"Orai ao profeta pelo repouso do califa."
Houve quem o visse sair, quem à luz baça do crepúsculo o visse tomar para o lado de Córdova com passos vagarosos, apesar das lufadas violentas do oeste, que anunciavam uma noite procelosa. Mas nem em Córdova, nem em Azahrat, ninguém mais o viu desde aquele dia.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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