6/04/2019

O conselho judicioso (Fábula), de Ana de Castro Osório



O conselho judicioso

Isto passou-se na primeira quarta-feira de maio de um ano que já lá vai, no tempo em que ainda se usavam os cruzados novos.

Dois compadres, que eram muito amigos, resolveram ir a uma feira comprar algumas coisas que precisavam para casa. Mas, logo na primeira taverna, pararam e entraram. E só depois de bem confortados com pão, azeitonas e vinho, tornaram a pôr-se a caminho.

Como iam quentes da bebida, que era boa e lhes subira à cabeça, não se cansavam de contar casos dos seus tempos de rapazes e de muito rir e cantar, pela estrada fora.

Até que, chegando a um pinhal, ouviram cantar o cuco e logo ambos se puseram a questionar. Dizia o mais velho:

— Olha como o cuco canta bem! Aquilo é para mim.

— Isso é que não! Estás redondamente enganado. Ele canta mas é para mim. 

E, dize tu, direi eu, nesta birra estiveram muito tempo, até quase chegarem às do cabo.

Já se preparavam para se esmurrarem um ao outro, quando o primeiro lembrou:

— Ó compadre, que vamos nós fazer? Nós não sabemos nada, e por isto nunca chegaremos à razão. O melhor é irmos à vila consultar o Letrado. Que eu tenho a certeza de não me enganar! Mas vamos lá ver!

— Pois vamos. Com muito gosto pagarei o conselho, pois tenho a certeza que me dará razão.

— Isto é o que veremos!...

— Não há dúvida...

E assim foram questionando, e já se dispunham a nova guerreia, quando chegaram a casa do Advogado. Entraram e cumprimentaram com muito respeito o senhor doutor, que sem dizer nada, os foi ouvindo.

Dadas por ambos as suas razões, o bom do advogado tirou a caixa do rapé, sorveu uma pitada com sossego, e disse:

— Meus amigos: um bom Letrado nada pode julgar sem ver a cara ao Rei. Ponham ali cada qual seu pinto.

Os homens tiraram o dinheiro do bolso e apresentaram-no ao Letrado, que imediatamente o passou para a sua algibeira, dizendo, com toda a gravidade:

— Vão em paz, meus amigos, que o cuco nem cantou para um nem para o outro. Cucou e recucou mas foi para mim!

Os dois palermas agradeceram ao Letrado, que tão bem sabia de leis, e saíram satisfeitos, com o seu pinto de menos, mas contentes por cada um ter a certeza de que o outro não vencera. Sempre é uma consolaçãozinha, para um teimoso, saber que, se não tem razão nenhuma, também o seu adversário não a tem.


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Fonte:
Ana de Castro Osório: “Contos, fábulas, facécias e exemplos da tradição popular portuguesa” (editado a partir da edição da Bibliotrônica Portuguesa)

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