6/07/2019

O rouxinol do Calvário (Conto), de João Grave


O rouxinol do Calvário

Conta um poema antigo, em versos puros de cristal e ouro, cheios de evocação, de embalo, de ondulação e ritmo, este doce milagre:

— Era no Calvário, ao descer da noite branda e fulgente de estrelas. Já pelos cabeços dos montes, tocados duma cor fluída de lilás e ouro, a lua aparecia, fina e branca, ascendendo em triunfo como um enorme lírio de luz, e o sol da Galileia, que toda a manhã flamejara e ardera, em fogachos de braseiro, morria serenamente no ocaso. Em ranchos silenciosos, as pombas recolhiam aos pombais ermos, as fontes, mais desoladas, choravam pelas colinas verdes e as açucenas cândidas fechavam, tremendo, as corolas de neve.

Havia apenas momentos que Jesus Cristo fora pregado na alta cruz trágica, manchando a meia tinta do crepúsculo e estendendo numa angústia os seus dois braços de sombra. Lágrimas de sangue que a claridade expirante fazia brilhar como carbúnculos desprendiam-se da fronte do Nazareno e rolavam, redondas e vivas, pelo madeiro.

O calor abafava. O centurião, hirto e brônzeo, erguia a pesada lança com um agudo ferro cintilando ao alto. De vez em quando, enxugava o suor da cara às costas da mão calosa. Jesus, com a cabeça pendente e quase desfalecido, sorria ainda, olhando com infinita bondade os homens ferozes que assistiam ao seu suplício, respirando com volúpia o cheiro acre da sangueira. A sua imaculada fronte empalidecia ao derradeiro fulgor do poente; as suas pálpebras cerravam-se.

De longe, chegavam os balidos das ovelhas regressando das pastagens ao redil, o som idílico e fugidio das canções de amor e de alegria, o tumulto da cidade sinistra, que, a distância, a lua banhava de fulgores brancos. Perto da cruz, as pobres mães desgraçadas, de braços tisnados e rostos enrugados e lívidos, levantando nos braços criancinhas inocentes, gritavam aos três justiçados:

— Vede! Vede!...

E o monte áspero, íngreme e cansado, bocejava e parecia perder, a pouco e pouco, o último alento. As suas linhas, os seus contornos, as suas cruezas, os seus ângulos agressivos, suavizavam-se na penumbra, esfumavam-se, esmoreciam da violência das tonalidades. Sobre a terra estéril e maldita, onde apenas as urzes rastejavam e as piteiras bravas espirravam, sedentas de ar, torcendo-se como numa condenação, alvejava o sudário lívido que a lua desdobrava vagarosamente.

Jesus atravessara, vergando sob o madeiro, as coléricas filas de povo que se juntava à sua passagem, disputando os lugares a murro e praguejando para ver antes de justiçado esse Rabi condenado à morte. Tanto se falava dos seus milagres, que era já célebre em toda a Judeia. Relembrava-se à porta das sinagogas, onde os doutores da lei liam os papiros amarelados; era invocado nos casais que um clarão de ventura jamais alumiara; os pequeninos que lhe sentiram na face a carícia tranquila das mãos abençoadas, diziam, gorjeando, o seu nome; os namorados olhavam-no de longe, se o avistavam por entre as várzeas em flor, meditando as suas doutrinas. Mas, nesse dramático dia, uma febre de loucura desvairava, embriagava as almas que clamavam pelo espetáculo bárbaro do sacrifício.

Vibravam-lhe blasfêmias abjetas, cuspiam-lhe nas pregas do manto, injuriavam-no, mostravam-lhe o punho fechado, numa ameaça. Os soldados romanos empurravam-no bestialmente, se as suas pernas enfraquecidas vacilavam. E só raras mulheres, sempre inclinadas à mágoa e ao perdão, lamentavam esse lindo moço, duns olhos tão fundos e meigos sob a coroa de espinhos que o diademava duma auréola de ouro e de sangue.

Uma rapariga em plena florescência e em plena beleza da mocidade, de peplum de linho bordado, surgiu com molhadas de junquilhos e de anêmonas, que lançou, chorando, aos pés de Jesus; e Ele olhou-a com placidez, a boca iluminou-se-lhe dum sorriso sereno, estendeu o braço numa bênção; mas, logo as megeras, rugindo entre a multidão, apedrejaram a compadecida moça como se ela fosse uma cadela.

E agora, ia morrendo lentamente, enquanto as rosas sonhavam, os berços e os ninhos repousavam poeticamente sob dosséis de ilusões e os lares não tardariam a adormecer.

Os rouxinóis acordaram nas balsas, naquela quieta e miraculosa noite alva como uma comunhão; o grande coração da natureza arrepiava-se de medo; e Jerusalém, onde medrava a flor escarlate do vício, dardejava de luzes, correndo ao prazer, a orgia, e sugando com avidez o mel diabólico do gozo impuro.

Sobre o Calvário, o silêncio foi pesando mais; a populaça afastou-se, gargalhando; as horas eram cheias de temor religioso. O centurião caminhava de um lado para o outro, de lança ao ombro. Os bandos de corvos, famintos de carne, crocitavam, batendo as asas negras.

Um dos condenados pediu água e desfaleceu. Cristo abriu os olhos enternecidos e contemplou as estrelas. Depois, fechou as pálpebras como num sono e ficou inerte.

O soldado espetou-lhe o ferro da lança no peito e abalou também. Então, na paz inviolável dessa noite de tragédia, um rouxinol passou sobre Jerusalém num voo ligeiro e veio pousar na cruz rude, cantando até ao raiar da madrugada fresca. Que dizia no seu canto essa ave estranha que assim enchia a solidão lacrimosa duma nota de triunfo e de alegria virginal?...

O rouxinol dizia isto: — “Antes de dealbar a aurora, a alma do justo entrará na imortalidade. Ela é enorme, encherá os tempos imemoriais,os séculos vindouros e proféticos. Lutou pela verdade e pela justiça; combateu pela fraternidade e pelo amor. E, mesmo na morte, Cristo resplandece de perpétua graça e de perpétua luz.

Por que foi que os homens crucificaram o mais puro dos homens? Jesus criou, com o esplendor do seu gênio, o ideal, a fé, um Evangelho de libertação que se estendeu ao mundo inteiro; sublimou o nosso sentimento, com a eloquência do seu verbo e o inefável fervor da sua crença; purificando-nos de ódios, de invejas e de acervos de misérias; aos desalentos amargos trouxe a doçura elísia da esperança; deu aos torturados e aos humildes a consolação sacrossanta das ilusões; vestiu os nus com um pano da sua túnica; afagou os pequeninos imaculados, serenou a fome dos famintos, alumiou os dias de claridade, as noites de estrelas, amou tudo o que era cristalino e sem mácula e tudo o que era desgraçado. Enlevou as consciências de ventura e de poesia; fez pulsar nos cérebros a força augusta do pensamento; abalou as iniquidades; revelou, como um visionário sublime, as conquistas igualitárias do futuro.

Do cimo da montanha da perfeição, a sua palavra poderosa revoou pelo universo severa e terrível, varejando os despotismos e celebrando a bondade e a virtude! Ele, que tanto chorou pelos deserdados e pelos vencidos, foi por eles arrastado nas pedras e assassinado. Disseram-lhe pragas as bocas pálidas a que tinha oferecido pão; arremessaram-lhe pedras as mãos que os seus lábios beijaram; coriscaram de raiva e de furor os olhos a que havia enxugado misericordiosamente as lágrimas ardentes. Mas a sua alma heroica, unção e candura, inocência e perdão, abençoou e perdoou.

Porque o mataram, pois, os homens? Era irmão deles este Homem sem pecados que o migar dum grande ideal guiava pelos despenhadeiros da vida. Atravessou farsas e torpezas, com o seu bordão de jasmins sempre florido; era o amor e o bem! Venceu os perigos, zombou das tentações, espiritualizou tudo em que tocou. A Natureza formou-lhe o gênio; e foi a Natureza, mãe fecunda do que palpita, lateja e brilha, que o compreendeu. A noite da sua morte será eternamente bela. Como este pálio azul dos céus é transparente e lindo! Como é alvo este luar elísio que deixa nas próprias podridões, a reluzir, ósculos de luz! O ar refrigera como um bálsamo, como a carícia duma asa, e rescende ao hálito virginal dos vergéis. E a alma de Jesus vai ascendendo para os intermúndios da suprema beleza!...

Afinal, esta morte era precisa. Era precisa, oh! condenados para quem o mal tem seduções dominadoras! Ela vem dar maior relevo moral à epopeia que começou há trinta e três anos, num casebre perdido de Nazaré, e que terminou nesta cruz que rompe da incerteza, como um formidável ponto de interrogação. Se o sangue de Cristo não corresse, a verdade da sua obra talvez se apagasse. O sangue fecunda, vitaliza, dá voo e onipotência às ideias dominadoras. Há quantos séculos toda a existência se alimenta da morte! Os trigais, os frutos, as rosas, as relvas, as florestas, sugam cadáveres. Toda a humana carne se desfaz, se pulveriza, se dispersa em poeira que as sonoras aragens revolvem nas espumas, nas folhagens, nos astros, nas areias, rias algas.

Os choupos esguios, os ciprestes, os pinheiros são corações que dão ais, de noite. Mas não se quebra o sagrado vaso que contém a essência. As formas são transitórias, as linhas corrompem-se, as aspirações efêmeras e vulgares envelhecem e tombam; mas a alma, a ânsia, os relâmpagos do gênio, vivem, cintilam, fulguram entre todas as escuridões, eternizando-se. A memória de Cristo — a redenção e o espírito — nunca mais esquecerá na humanidade. O seu gesto sem par de revoltado causará a admiração de poetas, santos, videntes e filósofos, pelos tempos fora. Medita as suas parábolas, imita a sua bondade, homem mau, se queres vencer na terra mesquinha, que é, no entanto, vitória bem trivial. Cá embaixo sufocamos. O chão é estreito para as vaidades e para as vilezas. Levanta os braços, pousa o olhar nos infindáveis horizontes, respira, sobe, enobrece-te e diviniza-te. Vê o céu como é enorme no seu esplendor e no seu mistério!...”

Eis o que dizia, no seu canto, esse rouxinol profético, sobre a cruz onde Cristo agonizava...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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