6/18/2019

O vício de Fernandes Coutinho (Conto), de Alberto Rangel



O vício de Fernandes Coutinho

Apesar dos numerosos, perpétuos e pingues privilégios de juro e herdade averbados na sua carta de doação, desde o cativeiro do gentio, com a faculdade de mandar vendê-lo ao Reino, até receber os quinhentos réis por ano do ofício de tabelião do público e judicial, e bem assim o dízimo do quinto dos metais e pedras preciosas, a vintena do pescado e pau brasil e o redizimo das várias produções da terra, chegara do Espírito Santo à Bahia do Salvador o herói da Ásia portuguesa, donatário Vasco Fernandes Coutinho, sem um ceitil na escarcela de indigente e grão proprietário.

Fizeram-lhe por isso muito gasalhado e até esmola, condoídos daquele homem astroso, que possuindo terras de um mundo, andava como se não tivesse terreiro onde pudesse aquecer-se ao sol, ou estender a enxugar as peças da vestimenta.

O Governador da Bahia D. Duarte da Costa recebeu em sua casa o infausto capitão, sobre a cabeça do qual se pejavam os revezes civilizadores iniciais das terras do Espírito Santo. Amparou-o D. Duarte em hospitalidade de carinho, por ver assim, despojado de tudo, quem se atirara de Portugal, com os cruzados ganhos no Oriente e os provindos da venda de uma quinta e da cessão de uma tença, aproveitados ao transporte de sessenta fidalgos e moradores diversos à terra dos Micos e Papagaios. Desmoronara o monte de esperanças nascidas nas dobras do alvará do 1º de janeiro de 1534. Tudo perdera o desgraçado, bem insensato para o governo de tal empresa, recaída numa região maldita, infestada do goitacá e do tupiniquim, que trucidavam os habitantes e deixavam raso tudo quanto era plantação e engenho.

Afetando transbordante acolhença, D. Duarte falava ao encanecido e infortunoso Fernandes Coutinho, enquanto os criados retiravam os saleiros, galhetas e salseiras de estanho, os restos do pernil de porco e os pratos e covilhetes da índia azuis e brancos, da mesa do almoço forrada de um mantém em pano de Bengala.

— Eh! Vasco, andas um choquento! Emborca este carrascão sem lhe respeitares a rascância de estreme, que um barril dos de quatro em pipa, vindo pelo último galeão, retém ainda alguns almudes da vinhoca. Esta pinga reinol levanta mortos, e terá a força de exalçar o abatimento dos melancólicos sentenciados de D. Pedro Fernandes. Então? Demoliu-te o bom humor e a resignação esse engrimanço exorcisório do Bispo, pondo-te de mistura com a ralé que lhe ouve as diatribes, segue as trampas e teme a bravaria de anatematizador?

Assentavam-se em roda D. Álvaro da Costa, Fernão Vaz, Rodrigues Peçanha e outros. A palestra ia prazenteira no pospasto; mas Fernandes Coutinho, meio murchado, evitava participar das réplicas e casos de tão folgados convivas. Forçado, porém, pela intervenção direta de D. Duarte, o mofinento, desentranhando-se de um gabão de ranzal muito surrado, desatou a falar:

— Ainda hoje de manhã na Só, depois de me vexar com um chorrilho de admoestações, a que estive a responder com uma certeira estroncada na pança, ou uma boa virotada na tonsura de masmarro, D. Pedro me excomungou de novo. Tornado um belizário, tão infeliz nos negócios de minha jurisdição, e ainda por quebra a insistência desse prosseguimento de tão alto ministro de Deus, o qual devia ter mais a fazer que se ocupar da singularidade alheia; esta afinal não prejudica a ninguém, nem autoriza me mandem ao encalço o meirinho da Correição. Lembrar-me ter amarrado, em Malaca, uma catana à tromba de um elefante, e assim haver afrontado o inimigo, para agora andar corrido das igrejas, qual podengo pirento e espurco!...

— Mas, porque não pões termo a esse raio de maluqueira de “beber fumo”, fumigando-te pelos gorgomilos abaixo com o fedor e a acridez dessa aborrida coisa de tapuio? Aposto uma dobra mourisca que te voltaria a esquença, adiantou D. Duarte. Além de que a saúde não te iria embora nas azas desses vapores execráveis...

— Como te enganas, D. Duarte! E o petum que me dá vida, alumia o entendimento, expele os maus humores da atrabílis, e me sustenta até nos embates da má fortuna. Afundar na miséria, ver os amigos e companheiros devorados pelo selvagem, possuir rios, montanhas e praias enormes e sem conta, com a sacola do farrapão, sem dispor de uma mealha!... Alafé, se não fosse o fumo que me enleva e faz esquecer, ha muito teria espichado uma corda para esganar-me, descansando de tanta desventura! Graças à nefanda erva me curo das reumas e salva-se esta alma. Se D. Pedro bem compreendesse os deveres do seu ministério, haveria de exigir a levasse eu entrançada ás palmas de Ramos, para que ele a santificasse com as borrifadas do hissope. Quando chove e se alagam as almargens, quando a seca esturrica as panasqueiras e os roçados, quando vem a arraiada? ou monta o sol a pino e vai declinando, e a noite choca o sono no silêncio e na escuridão, o melhor divertimento é tragar um pouco dessa substância, que repara e incita, alivia e entretém!

— A mim esse olfortum me fede a rato pesteado, repontou Peçanha.

— A mim me sabe a megalino, inebria-me. Não te deu a natura delicadeza de sentidos para seres capaz de apreciar o dom da terra virgem que mais me apraz, contrapôs Coutinho. A-de-mais essa dádiva celeste é um bálsamo à adversidade, acessível por todo tempo e o qual sustentando o homem, o consola das aflições e mata o berne dos animais, dissipa as inflamações, aproveita ao sono, solda as bostelas frescas e as chagas corruptas, e acaba com os piolhos, as sarnas, as lombrigas e a dor de cólica...

— Há de acabar transtornando-te a cabeça, alterando-te a vista e dando-te fleimas ao estômago, redarguiu D. Duarte.

— Talvez. Mas já era tempo para esses prejuízos se pronunciarem. Ando cada vez mais lúcido enxergo sempre bem, e apetite é regular, que nunca fui nenhum alarve. Destrenga-Deus voltar eu pra o “vilão farto” da minha donatária, a renovar o empreendimento de povoar aquelas solidões; poderia D. Pedro Fernandes Sardinha gastar-se em latinórios e malavenças, que Vasco merendaria com os anjos, chupitando a “erva santa”.

— Sem necessidade de anunciá-lo em pregão público, a tom de caixas, adianto-te uns seiscentos cruzados para o renhimento dos teus esforços na brenseda com que te doaram, proclamou D. Duarte. Tentarás o impossível... A mitra há de pensar que, reduzido de meios, não te restará senão abaixares a cabeça, e secares o corpo à imposição dos seus castigos, dizendo adeus às terras do Espírito Santo. Enganar-se-á.

— O donatário sem outros bafejos da sorte beija as mãos do hospedoso Governador, disse sorrindo Fernandes Coutinho, desanuveado pelo imprevisto adjutório do amigo.

— O façanhudo D. Pedro verá que ninguém se atrasa com as suas punições tão pouco teológicas, segundo a opinião deste bicho de concha, o padre Luís da Gram. Irás hoje, Vasco, em companhia do meu filho Álvaro, rodar pela cidade, evitando passar, bem entendido, na alcáceria do Bispo, para que ele não escreva a D. João III dizendo-lhe mando ultrajar a casa; e deem então boas gargalhadas, discreteando entre si por essas cales, subideiros e calejas, mais por acinte ao prelado e a suas imprecações, que por sincero contentamento.

— Levarei a minha cangoeira bem à mostra, pregada entre os beiços...

—Bem lembrado, Vasco, encherás com a tua chaminé a cidade do Salvador de uma fumarada de fogo-posto em renqueia de paveias, acrescentou risonho D. Duarte.

— Até que chegue às ventas episcopais de Sua Excelência Reverendíssima e o faças espirrar feito um bode na primavera, alardeou D. Álvaro.

Badalavam os sinos do mosteiro de Jesus e da Sé nas doze batedelas do meio-dia. A cidade soniculosa, cingida das ruínas da taipa grossa de Tomé de Souza, aquietava-se nos mormaços derreantes da hora. O mar parado no calmão, lá em baixo, cobria-se do surgidouro das naus até Itaparica de escamas fulgurais, às zagaiadas do sol. Na altura da ponta do Padrão, uma carraca desvelejando ferrava os panos, circundada por biguás.

Delicioso, mas intraduzível, o sabor dessas folhas castanhas e sumarentas da manoca fornecida pelo algarvio ladino, que vivia com um genro de Caramuru, a barganhar com índios. Para o senhor Bispo, quando acendia o pitimbau em que uma delas se enrolava, o tempo corria numa fugida de acalento, no ligeiro torpor e gosto das cismas leves, no transporte caricioso de nuvem morna e cor de rosa.

Também ele sofria da pertinácia desse vicio ferrenho, em que se desmandava o azarado D. Vasco Fernandes Coutinho. Começara a adversia pela simples curiosidade de como esse capitão e governador donatário se pudera curtir no maldito costume tupinambá; e caíra o prelado por sua vez no apego veemente e indestrutível desse aprazimento ao qual não sabia mais resistir. Com que dor de vergonha se vira obrigado ao anátema sobre o delinquente de tão feio habito, quando ele com o báculo castigador incidia na extravagância do mesmo crime!

Realmente a erva pagana era dotada de embeleco diabólico. Não embebedava, inaugurava-se pela repugnância e os espasmos do vomito; na continuação era a doçura incomparável de um recreio, o entretenimento daquele aspirar e espirar, e as ideias na cabeça vagamundeando por aí além... O gozo tênue não lhe estava em proporção às ganas e atracadas do atraimento. Que desejo imoderado de o sorver quando faltava, que anciã de o buscar mal o seu praticante se via só, por exemplo, na hora da sesta, para se repor de alguma fadiga, ou preencher o tempo na calentura do vácuo e da estupidez de ócio inaceitável...

Pesada estante com sermonários, pontificais, hagiológios, baldoairos, passioneiros e outros livros de instruções litúrgicas, análises de concílios, decretais, panegíricos e obras de Doutores da Igreja, enchia completamente uma parede. O Senhor Crucificado, de osso, tetricamente espichado numa cruz de ébano, estendia os pés sangrentos para os banhar numa concha de água benta. O genuflexório de jacarandá vermelho estufado a gorgorão. A Virgem enlevava-se na peanha, sobre a grande mesa, em frente ao cadeirão abacial, recoberto da espaldeira de veludo lionês. Um baúlão e banquetas esparsas. No apartamento assim ornado, o eborense D. Pedro Fernandes-ocultava o seu delito, como se escondesse o pragão de um câncer sob o brocado do pluvial. Começara apenas havia dias o vício de escarmento, irmão do que praticava D. Vasco, e no entanto já o subjugava até as entranhas. E ainda mais o horrorizava o mal desse habito, porque o flagício se fazia soberano do dignitário da Igreja e responsável pela propagação nefasta desse indecoro. Vira-se obrigado a fulgurar, com as faíscas e trovejo de sua cólera, o cristão perdido no rito gentílico, enquanto ele, pregado no trono episcopal, por sua vez chupava a emanação do vegetal, que ardia olente e extasiante, deliciando-lhe as papilas da língua e as glândulas da pituita...

Nesse instante, deixando de lado o Ritual Romano, acabava o Bispo de tomar de dentro de uma arca braguesa, com pesados fechos de segredo, a folha seca e amorfanhada de um belo castanho escuro, e a enrolara cuidadosamente, depois de se assegurar de possíveis indiscrições no salão em que se achava. Pusera D. Pedro fogo ao pequeno rolo de petum e começara a respirar-lhe os fumos, quando alguém se anunciou para além dos batentes cerrados. Foi só o tempo do precavido expelir a baforada, apagar o pitimbau, abafá-lo sob o troneto da imagem de Nossa Senhora dos Prazeres, ao lado, no grosseiro mesão de araribá, e começar a folhear as páginas de um abominário encontrado mais à mão.

Levantada a aldrava da porta, entrou por ela um sacerdote meio corcunda, com remendos na loba e o chumaço dos cabelos espirrando em franja da calote do solidéu.

Benedicite! assoviou o reverendo chantre da Sé, atirando para trás o capelo e aparecendo rubicundo, qual um tiepiranga. Entrava o capiscol para falar à Sua Ilustríssima a propósito de novo desaguisado entre o deão Fernão Pires, o cônego Luís d'Ávila e mais dignidades do cabido, transformado numa estalagem de velhas peixeiras e arrieiros galegos.

O sexagenário D. Pedro Fernandes parecia não estar bem-disposto nessa tarde pura e radiante de abril de 1554, pois recebeu o chefe do coro com certo agastamento:

— Avalio ao que vêm, nova disputa entre o deão e o arcediago, soprada por esse malfadado solfista e ribaldo Francisco de Vacas, na garupa do físico e licenciado Jorge Fernandes! E concertou o píleo, no alto da cabeça redonda, com um gesto lasso. Ter letras de um grande barrete e canonista, ser provado em religião e virtude, exercer o magistério em Paris e em Salamanca para viver a sermoar uns escravos, degredados e mercadores!... Valha-me São Jaques de Compostela, que não me faltam aborrimentos neste episcopado, tendo pela proa as malversões desse molengueiro. Duarte-armeiro mor, para me baixar a intervir na parlenga inacabável de murçados dessa craveira, na infame cidade da Rixa e da Libertinagem, capital da índia brasílica! Querem reduzir a minha croça a um varapau de porqueiro! Seja!...

Tendo desabafado o resto da acrimônia no antigo dominico o pregador Gomes Ribeiro, o bispo mudou familiarmente de assunto:

— Então padre mestre, o fulheiro Luís de Góes, metido de gorra com o desbatizado e tranca-ruas D. Álvaro da Costa, aforciou a filha órfã de um cristão novo, uma carocha mais champuda que o sino grande da Nossa Senhora da Ajuda! Os maganos da crápula estão roubados. No seu fornizio arpoaram um grosso cachalote pensando levar no papo uma sereia. Falaciosa dissolutio...

— A corrupção vai desmanivada nestes povos. Fala-se também que amanheceu hoje suspensa à lindeira da porta do almotacé Oliveira uma capela de chifres. A cidade, porém, está mais alvoroçada com a excomunhão do Coutinho, disse o chantre, espremendo na mão seca o volume do processionário, e sentando-se num tamborete de belbute, que na devassidade dos vaganaus e na grinalda de agravo. Muitos deploram que esse" doudarraz e bobo alegre, por uma esquisita mania...

— Mania?! reverendo chantre. Pois então esse donatário por graça d'El-Rei dá o funestíssimo exemplo a seus sesmeiros e colonos de usar uma droga infernal, que lhe entra pela garganta abaixo, tal a fumarola do Érebo sorvido nas goelas de Belzebu, e devo eu ficar indiferente a tão escandaloso manejo?! Tão convicto anda esse homem de perdição da inocência da excentricidade de bruxo, como Sua Reverendíssima de concertar o canto chão com os tunantes da colegiada. Compreende-se que o devoto da Igreja gaste a fazenda e o tempo a sugar fogo de umas ervas do gentio, às baforadas, assim o arcanjo do mal no meio dos danados do Tártaro? Não é coisa de costa arriba? Se o pastor não acode a tempo, gafam-se e esmadrigam-se as ovelhas imitando esse engole peçonha, disfarçada em fumareda. Por isso afixei na porta da Sé a carta de excomunhão que tanto espanta o rebanho, o qual por meus pecados me foi dado apascentar. Ando a par das constituições da minha prelazia. Não ficarei nisso. Hei de pôr um cobro à teimosice. Quem se meter na viciação ficará nu da cinta para cima, com as tais folhas penduradas do pescoço, à missa do Domingo. Mandei arrebatar a cadeira de espaldas que pertencia a D. Vasco, numa igreja de Pernambuco, o exclui-lo da comunhão dos fiéis. Mas o desditoso réprobo não cria vergonha, obstina-se a usar a substância execratória, tal um condenado eterno às perversões de Gomorra. Não lhe bastaram as azorragadas do meu sermão. Infatigável, hei de fulminar novamente o excomungatório com todos os raios da minha potestade! Para desviar D. Pedro Fernandes do assumpto que tanto o agastava, o chantre noticiou:

— Segundo ouvi dizer ao mestre de capela, acabou-se infelizmente o óleo da Pérsia destinado ao crisma e à extrema unção.

— E bastante suave o extraído da cabureíba. Adotemos esse bálsamo tão virtuoso, pois o Santíssimo Padre há de aprovar a substituição.

—A Sua Ilustríssima, Senhor Bispo, não lhe chega aqui um cheiro meio acre, que nunca senti igual? interrompeu de repente o chantre, inclinando para uma e outra banda a ponta do seu beque de araçari. Tênue caracol de fumo desfazia-se num farrapo azulado, torcendo-se na aberta da janela, procurando absorver-se na luz em que se esbatia.

— O aroma é singular, continuou o chantre. Não alcanço defini-lo bem. Talvez o produto da algália misturado a alguma resina desses sertões, ou antes a morrinha de um mono temperada com o aroma suavíssimo de quando arde a ubirataia...

— Odor do demônio, Reverendo chantre, esclareceu D. Pedro Fernandes, mostrando o ar desconfiado de seminarista pilhado na transgressão. Às vezes o diabo mescla o enxofre do Orco e o perfume do benjoim dos mouros. Pode bem ser queira o Tentador disfarçar o bodum da presença com este pixé, que tão pecaminosamente o embevece. O Príncipe das Trevas rescendia mais que o incenso, o cinamomo e o nardo, a perseguir São Domingos de Gusmão. Tome de suas contas e se ajoelhe aí neste genuflexório. A fim de ajudar-lhe a resipiscência, reze duas coroas, que também se peca pelas narinas, reverendo Tomé! Spurtitia nasi imissus in re peregrina est...

O chantre ajoelhou-se e começou a rezar, intrigado da penitencia. E a olhar para o fiapo daquela fumaçazinha a desfazer-se de todo no ouro borbotante da janela aberta, ele distraía-se, esbrugando os bugalhos das camândulas...


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Alberto Rangel (Quando o Brasil amanhecia..., 1919)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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