—
Pois a minha aventura é bem mais simples do que todas essas — disse o João de
S., que nos ouvira calado, estendido no canapé, com as duas mãos cruzadas sob a
nuca. — Nem foi, a dizer a verdade, uma aventura; foi apenas uma impressão de
momento, uma dessas sensações mil vezes mais fugitivas do que o raio de sol que
doura uma nuvem, mil vezes mais intangíveis do que o perfume do rosmaninho,
evolvendo-se em manhã de orvalho. E, no entanto, de todas as minhas recordações
femininas, é a única esta que me flutua ainda na memória tão fresca como na
primeira hora; a única de que me não ficou remorso, nem azedume; a única em que
o tédio ou a desilusão nunca puseram a sua mancha.
O
ano passado tive de ir a M... no pino do Verão. Por que e para quê, não vem ao
caso. Achei-me ali preso bastantes dias, com um destes calores alentejanos de
que vocês por cá nem fazem ideia, e tendo muito pouco em que me ocupar. Logo no
dia seguinte à chegada, a pessoa com quem ia tratar o meu negócio levou-me à
botica, onde alguns ricaços da vila passavam as tardes em doce cavaco. Mas
nunca mais lá voltei, afugentado pelo cheiro das drogas, que se exacerbava em
trinta e nove centígrados — à sombra! — e pelas discussões de política local,
de que não percebia uma única palavra. Privado assim do recurso da botica, eu
ia todas as tardes passear pelos arredores da vila, sozinho, com um cigarro
entre os dentes, e a minha bengalinha lisboeta na mão.
Ao
sair da hospedaria, tomava à esquerda uma ruazita estreita, tortuosa, mal
calçada, encaixada entre casarias altas de aspecto mourisco, que levava às
muralhas da vila. Na rua havia já sombra — uma sombra muito clara, toda cheia
de reflexos das paredes caiadas; mas lá no fundo, a velha porta, rasgada na muralha
negra, abria-se para um deslumbramento. Léguas e léguas de terreno se estendiam
sem fim, banhadas pelo Sol já baixo, indistintas na luz demasiado intensa, como
se as cobrisse um pó fino de ouro incandescente. E, aos meus pés, caía para o
vale o arrabalde, com os seus muros caiados, com os seus telhados denegridos,
com os fumozitos tênues das suas chaminés.
Eu
descia lentamente. O Sol: tocava no horizonte — muito vermelho, esbraseando o
céu, anunciando para o dia seguinte um calor ainda mais forte. No largo campo
torrado, todo amarelo, nas grandes restolhiças amarelas, nas pastagens secas e
amarelas, os olivais formavam manchas escuras, que principiavam a
esbater-se" dissolvendo-se na luz já mais fraca. Não corria vento; a
campina dormia, extenuada e lassa, acordando a custo daquela longa sesta,
dormida sob o sol implacável. E muito longe, para os lados da serra, os fumos
grossos das queimadas subiam perpendiculares no ar parado.
As
moças da vila começavam a descer para o poço em pequenos riachos, às duas, às
três, às quatro, com as suas bilhas — as suas infusas, como lá se diz — vazias,
atravessadas sobre a cabeça. Algumas vinham já de volta, com as infusas cheias,
molhadas de mergulharem no poço, esguias e bem aprumadas. Subiam num passo
firme, envolvidas nos grandes xales escuros de lã, com os lenços de chita
traçados na boca, naquele abafo tão singular e tão característico do nosso povo
do meio-dia.
Pareciam
assim mais altas, alongadas pela curva da infusa e pelas pregas retas e caídas
dos xales. Ao cruzarem-me, via-lhes apenas os olhos bem fendidos, assombrados
pelas pestanas negras; e elas, sem voltarem a cabeça, sem um gesto, diziam-me
baixo, no tom lento de uma saudação grave:
—
Tenha muito boas tardes.
Aquelas
figuras negras, envoltas e quase veladas, atravessando as linhas daquele país
árido e pálido, levavam-me o pensamento para longe e para trás. Podia julgar-me
em alguma vilazita dos confins do Sara, em El-Aguat ou In-Salá, onde, ao
sol-posto, as raparigas muçulmanas, veladas e misteriosas, descem a encher os
cântaros no poço do oásis, sob a folhagem rígida das palmeiras, enquanto, à
volta, as sombras azuladas vão invadindo lentamente as longas colinas de areia.
E pensava que estas moças eram do mesmo sangue; desciam ao poço como desceram
as suas avós, e as avós das suas avós, desde as raparigas berberes, que
passaram o estreito com os exércitos de Tárique.
Perante
o encanto, triste mas tão penetrante, destas coisas e destes hábitos velhos,
destas coisas que são porque já foram, eu sentia uma pena funda — a pena de que
tudo aquilo acabasse mais dia menos dia, destruído pela nossa civilização reles
e niveladora. Porque era fatal, dentro de dois, de três, ou de dez anos, viria
uma municipalidade ilustrada, louvada em artigos de fundo pelos jornais de dez
réis, que dotasse a vila com os melhoramentos
materiais indispensáveis. E então, encanada a água, postos marcos
fontenários nas esquinas das ruas, as moças deixariam de vir ao poço como
vieram as suas avós, e as avós das suas avós, desde os antigos tempos de
Tárique.
Pensando
nestas coisas eu ia descendo a estrada, orlada de grandes piteiras glaucas.
Deixava atrás o poço, e seguia até uma das hortas do vale, termo habitual dos
meus passeios. Entrara na horta uma tarde por acaso, e agora vinha ali todos os
dias.
Àquela
hora, a horteloa e a filha tomavam o fresco, sentadas em cadeiras baixas, num
terreirinho varrido diante da casa. Eu era já um amigo da família. A rapariga
ia-me buscar uma cadeira; o hortelão largava a enxada da rega, soltava a mula
velha da nora, e vinha também para ali, em mangas de camisa, com o colarinho
desabotoado. Conversávamos tranquilamente... Daqueles fortes calores que iam
queimando a uva toda, da novidade de laranja que prometia, do peco que tinha
dado nos abrunhos.
Presos
sob uma figueira, dois carneiros pretos miravam-nos seriamente com os seus
olhos de ouro pálido, como se se interessassem na conversa. Lá no alto da
colina, os reflexos do poente tingiam ainda de vermelho as muralhas altas da
vila; mas na horta a luz do crepúsculo ia-se morrendo. O grande laranjal viçoso
formava uma mancha absolutamente negra. Dos canteiros do meloal, regados de
fresco, orlados de milho em flor, levantava-se pouco a pouco uma umidade tênue
que adoçava o ar morno da noite. E, no azul fino, muito claro ainda, começavam
a acender-se uma a uma as pequeninas luzes frias das estrelas.
Era
a hora em que a filha do hortelão regava os seus craveiros. Levantava-se para
ir encher a infusa na pia da nora; e, quando voltava pelo carreirinho com a
infusa à cabeça, eu via a sua figura fina, de adolescente apenas mulher,
recortada no céu pálido, todo picado já de estrelas. Depois, curvada, com a
infusa pesada nos braços, começava a regar os vasos, alinhados sobre o alegrete
de ladrilho. A curva da sua cinta flexível era tão graciosa e ao mesmo tempo
tão robusta, o seu gesto era tão forte, que ela parecia derramar em volta de si
uma sensação de vida intensa e plena. A sensação da vida corria dela
naturalmente, como da sua infusa corria a vida sobre os craveiros emurchecidos.
Terminada
a rega vinha sentar-se, debruçada, com os braços apoiados sobre os joelhos, e o
lenço da cabeça descaído para os ombros. À luz das estrelas via-lhe
indistintamente as ondas lustrosas dos cabelos negros, o oval fino, os olhos
grandes, atentos à minha conversa com o pai. Pelas nove horas hora da ceia —
despedia-me, e subia para os horrores da hospedaria, pensando que na tarde
seguinte voltaria à horta ver a rapanga regar os seus craveiros.
E
voltava — todas as tardes, sem faltar uma. Ela começava a familiarizar-se
comigo; perguntava-me coisas de Lisboa, daquele mundo estranho e distante de
que fazia uma ideia tão vaga e tão falsa. Mas, se lhe dirigia mais diretamente
a palavra, calava-se num retraimento arisco. Tinha a confiança, cortada de
sustos, de um pequenino animal selvagem que principia a domesticar-se.
Às
vezes ficávamos sós, quando a mãe ia lá dentro tratar da ceia, e o pai dava uma
volta pela cavalariça a ver se a mula levantava a ração. Ficávamos calados. Na
horta soavam as leves bulhas misteriosas da noite; ao fundo do laranjal, uma
luca soltava a sua nota fina, regularmente espaçada; de quando em quando um
sopro brando passava na folhagem, dando-lhe um frêmito doce, como uma festa na
pele; e, na obscuridade quase completa, eu já a não via, mas sentia os seus olhos fitos nos meus.
Os
negócios que fora tratar estavam terminados. Creio mesmo que demorei a sua
conclusão mais três ou quatro dias do que era absolutamente necessário; mas
enfim uma tarde vim à horta despedir-me dos meus amigos, e anunciar-lhes que
partia no dia seguinte para Lisboa. A rapariga ficou calada, com uma vaga
expressão de tristeza nos olhos.
Quando
veio regar os craveiros, aproximei-me do alegrete; e ela, ao pousar a infusa,
colheu dois cravos — dois pobres cravitos ordinários — e deu-mos sem dizer uma
palavra. Colhi também um cravo vermelho; e, brincando, quis-lho pôr na cabeça.
Enquanto forcejava peito plantar na massa espessa dos seus cabelos negros, vi-a
corar, como se o vermelho do cravo se diluísse e descesse, tingindo-lhe as
faces e o pescoço; e assim, tão junto dela, senti-a tremer entre os meus
braços. Foi uma sensação de uma suavidade infinita.
— E
depois? — perguntou um de nós.
—
Depois, mais nada.
— O
quê, mais nada! — exclamamos todos em coro.
—
Absolutamente mais nada. E que mais queriam vocês?
Ela
dera-me nessa sensação tão fugitiva, e por isso mesmo tão fresca, o que tinha
de mais precioso; o que nos, dá a flor que respiramos sem a colhermos; a borboleta
que passa na nesga de sol, sem que um toque brutal venha a macular o pó dourado
das suas asas; dera-me a primeira vibração da sua
virgindade
que acordava.
— E
nem soubeste dela depois?
—
Nunca mais. Deve ter casado com algum cabreiro, ou com algum vaqueiro; mas que
me importa?
E o
João de S., indignado com o nosso materialismo, cruzou as mãos sob a nuca e
estirou-se ao comprido no canapé, sem dizer mais uma palavra.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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