Mestre Gil
(Século XV — 1481-84)
(Século XV — 1481-84)
CAPÍTULO 1: OS DOIS PROCURADORES DE CORTES
— Não! que
el-rei lhes quebrará as ousadias. D. João II não é D. Afonso V.
— A paz do
Senhor seja com o filho de D. Duarte; que em boas nos meteu. Ele tinha mais
jeito para cavaleiro andante do que para rei. Lá repousa, enfim, das suas
lidas, no Mosteiro da Batalha, onde esperará quieto pela ressurreição
universal.
Isto diziam
dois procuradores, um por certa cidade, outro por certa vila do reino, numa
casa baixa, em Évora, morada de mestre Gil, barbeiro da Corte, onde o esperavam,
para lhes ele trosquiar os cabelos e rapar as barbas. O mestre andava fora: e
tanto era o afã, que ele e dois aprendizes (a que hoje chamaríamos oficiais)
tinham abalado da loja deixando a cargo de uma velha escrava moura o tomar
conta dela, e o demorar os fregueses que aparecessem.
A boa da
velha fiava a tarefa de lã que a sua ama, a veneranda esposa de mestre Gil, lhe
talhara, e procurava por todos os modos que os fregueses se não fossem. Este
zelo nascia de ponderosos motivos: havia muito tempo que nem um bocado de
cabrito — comida vulgar daquele tempo — tinha atravessado por entre as suas
queixadas solitárias. A proibição que havia tempos el-rei fizera de que se
rapassem as barbas ou se tosquiassem os cabelos, tinha posto in extremis a
nobre arte de mestre Gil; e este fatal sucesso quase ia convertendo a pobre
velha numa estátua da morte.
— Mestre Gil
não pode tardar; e quando ele não venha, virá Vicente, ou Ambrósio: e não sei
se vos diga que qualquer deles é mais acabado oficial que o meu senhor.
Falando
assim, a moura olhava para dentro, e puxava com ânsia as barbas à roca. Os dois
procuradores, hóspedes em Évora, tendo já entrado em outra loja de barbeiro,
donde saíram fartos de esperar, resolveram demorar-se nesta até que mestre Gil,
ou algum dos seus rapazes, chegasse; e para matar o tempo tinham travado a
conversa que acima transcrevemos.
— Esperemos
pois — prosseguiu um dos procuradores, — já que é força esperar.
— Sim —
disse o outro. — Mouro que não o podes haver, dá-o pelo amor de Deus.
— Assim é o
mundo — replicou o primeiro; — ainda não há muito, vimos nós o atual rei descer
do trono, e passar de rei a príncipe, quando seu pai D. Afonso V, vindo de
França, aportou em Cascais.
— É verdade;
e por sinal que o cardeal D. Jorge da Costa partiu logo para Roma.
— Ouvi dizer
isso: mas não atino com o motivo de semelhante partida; salvo se o cardeal
tinha de requerer algumas bulas do santo padre.
— Quais
bulas! Nada. D. Jorge da Costa é finório e ladino, e, como diz o adágio, não
quis haver-se com justiças novas. O caso foi outro. Andava passeando à borda do
Tejo com o príncipe D. João já intitulado rei, e agora tal de fato, e com o
duque de Bragança. Veio a eles correndo um mensageiro anunciar a chegada de
el-rei D. Afonso V; perguntou D. João: “Agora que havemos de fazer?” O duque
atalhou: “Procurar el-rei vosso senhor e pai, e entregar-lhe o governo destes
seus reinos.” “Nada”, disse D. João; mas, pegando num seixo da praia, atirou
com ele ao mar: foi o seixo dando saltos por cima da água até que se afundou.
— Mas que
tem essa história com o cardeal? — interrompeu impaciente o outro interlocutor.
—
Dir-vos-ei. Apenas viu o que el-rei fizera, virando-se para o duque e mais
senhores que cerca dele estavam, disse-lhes: “À fé que me não dará ela na
cabeça”, e sem mais esperar, foi-se caminho de Roma.
Nisto
estavam, quando mestre Gil entrou pela porta dentro. Era um homem baixo, gordo,
quase redondo, nariz pequeno, olhos vivos e chamejantes, pernas arqueadas, e
pés de prodigioso comprimento. Trazia vestido um gibão de cor duvidosa; não
que, não a tivesse tido muito fixa; mas o tempo a fizera de cambiantes; porque
em consciência se não podia dizer já que cor tinha. O barrete era de veludo
raso, os borzeguins pretos, e as calças de pano amarelo, golpeadas, e com
forros de tela vermelha.
— Boas
tardes vos dê Deus, senhores — disse mestre Gil, fazendo uma barretada. —
Desculpai se esperastes alguns credos. Venho do paço, onde rapei a barba e
tosquiei o cabelo a Antão de Faria, e...
— O
camareiro de el-rei? — atalhou um dos procuradores... — e o seu privado — disse
o barbeiro, em tom de segredo; mas com tal voz, que poderia bem ser ouvida a
cinquenta passos. — Sim senhores: privado de el-rei. Ele é cá do povo: é cá dos
nossos. Com D. João iremos melhor do que com D. Afonso: este tinha grandes por
validos; o povo servia só para ser calcado e sofrer, sem que lhe fosse dado
queixar-se. Até depois de morto os empeceu Sua Alteza, que Deus haja; seis
meses estiveram a enferrujar-se as minhas navalhas e tesouras. Ainda bem, que
el-rei mandou se pudessem trosquiar as cabeças e rapar as barbas para a
celebração das cortes.
Dizendo
isto, preparava as navalhas para começar a exercer o seu mister. Mas cortou-lhe
o discurso, que levava jeito de não acabar, um vulto de homem rebuçado, que,
entrando pela porta dentro, se foi sentar na cadeira destinada para os
padecentes que tinham de cair nas mãos de mestre Gil. Depois de se desembuçar,
o que de novo chegara disse ao barbeiro com voz de autoridade:
— Mestre
Gil, rapai-me as barbas já, e cortai-me os cabelos; que tenho negócios, e pouca
vontade e costume de esperar pelas coisas.
O mestre
olhou para ele, e viu, no seu aspecto e ademanes, que era homem daqueles que
estavam habituados a não escutar réplicas de peões: era um cavaleiro. Encolheu
os ombros fazendo uma visagem aos dois procuradores; e neste encolher de ombros
e nesta visagem fez um discurso que eles bem entenderam, e ao qual pela mesma
forma responderam.
Era o
intruso freguês um homem de trinta e dois a trinta e três anos, de estatura
alta, bem fornido de membros musculosos, que denotavam força descomunal. Trazia
enfiado um pelote, e por debaixo dele via-se um gibão, por cuja abertura lá se
lhe enxergava um arnês, como quem andava precatado contra qualquer súbito cometimento.
Pendia-lhe do lado uma comprida espada, e do cinto um punhal.
Mestre Gil,
ansioso por se ver livre de tão inesperado e cabeçudo hóspede, fazia quanto
podia por aviá-lo; mas um mau jeito de navalha — disséramos antes da mão que a
movia — arrancou de repente um grito ao cavaleiro: — pela minha espada! se
outro gilvaz me dais, juro-vos que um tal vos farei, que vos ensine a terdes
menos pesada a mão.
O mestre
barbeiro quis responder, desculpando-se com o tamanho das barbas: mas o
cavaleiro, sem consentir na resposta, lhe acenou com a mão, que tratasse de
acabar a obra, e isto bastou para o mestre continuar no seu mister, sem tornar
a abrir a boca.
Os dois
procuradores olharam um para o outro: e nesse olhar fizeram um discurso, muito
mais longo e eloquente, do que o primeiro que o barbeiro lhes fizera,
encolhendo os ombros e torcendo o nariz.
Mestre Gil
acabou, enfim, a sua tarefa. Árdua fora ela: a ameaça do cavaleiro tivera o
poder maravilhoso de lhe livrar a cara de segundo gilvaz, que o mestre teria, porventura,
tenção de lhe pregar para tirar alguma desforra da ousadia com que ele lhe
entrara em casa. O medo guarda a vinha; e tal guardador salvou a cara do
cavaleiro, talvez melhor, do que lha guardaria bem temperada viseira de Milão
em cavalgada contra mouros.
— Ainda bem
que se foi — exclamou o barbeiro, apenas o viu pelas costas, e fora do limiar
da porta. Não acabava mestre Gil de entrar em si, e sem reparar em que casta de
moeda lhe pagara o cavaleiro, a meteu na algibeira.
— Agora vós,
senhores...
E começou de
barbear um dos que esperavam pela sua vez de rasoura.
— Quem é
este Gonçalo Mendes da Maia Lidador, que tão descortês entrou e saiu? —
perguntou um dos procuradores.
— Quem? —
disse o mestre. — É um cavaleiro da casa do conde de Faram, irmão do duque de
Bragança. Como este são todos os do seu serviço e casa. Afeitos à privança que
o seu amo e os irmãos tinham com o defunto rei, hão-se conosco por esta guisa,
a nós os do povo, como se fôramos mouros e judeus.
— Mas aí
vive quem lhes há de quebrar a soberba — disse o que fizera a pergunta — com a
fórmula do juramento de preito e menagem. Esses senhores saberão se D. João II
é D. Afonso V.
— Assim ouvi
— atalhou mestre Gil, — mas também ouvi que os grandes, prelados e senhores,
não estão para aí voltados.
— E que
remédio têm eles? Não sabeis do rifão: com o teu amo não jogues as peras?...
— Sim! Que
come as maduras, e dá-te as verdes — disse o que estava nas mãos do mestre, e
que já lhe custava a sofrer as arranhaduras que lhe fazia a navalha, quase
convertida em serra, pelas muitas bocas que lhe fizera a barba hirsuta do
cavaleiro.
— Mestre Gil
não será o barbeiro da Corte — interrompeu mestre Gil — se dentro de pouco não
há nela grandes novas. Diz-se por aí e no paço o ouvi — prosseguiu ele em voz
muito baixa, contra o seu costume que era falar em segredo de modo que todos o
ouviam, — diz-se que um dos capítulos das cidades e vilas do reino consiste em
pedir a el-rei corregedores que vão às terras dos donatários da Coroa inquirir
das violências que os senhores cometem contra os vassalos, e corrigi-las.
— E que mais
ouvistes? Será despachado esse capítulo? — perguntou um dos procuradores.
— À fé que
sim! — respondeu o barbeiro, tomando certo ar de gravidade, que contrastava
ridiculamente com a sua figura. — Antão de Faria o jurou: ele humilhará os
grandes. O privado não é homem que dê ponto sem nó: os desprezos e feros dos
fidalgos não caem em saco roto. Temos muito que ver.
E mestre Gil
falava verdade. Uma luta de morte estava a rebentar entre o rei e os nobres —
entre o absolutismo e o feudalismo.
D. João II
pretendia, como o seu contemporâneo Luís XI de França, dar o último golpe no
poder carcomido e abalado dos grandes vassalos da Coroa. O povo, cansado de
sofrer opressões de pequenos tiranos, rodeava o trono real de toda a sua força,
que ele já começava a conhecer. O resultado do combate não podia ser duvidoso.
Era esse resultado que tinha previsto o cardeal D. Jorge da Costa, retirando-se
para Roma.
Aos nobres
restava a mais bela de todas as heranças que tinham recebido dos seus
antepassados — as ideias generosas da cavalaria. Era esta herança que os devia
perder. Batalhava-se no campo da política, não na estacada dos duelos; e as
armas desta batalha consistiam, não no escudo e na lança, mas na astúcia e na
dissimulação. D. João II e os seus conselheiros deviam, neste estado de coisas,
contar com a melhoria, e com recolher o preço ensanguentado do combate.
CAPÍTULO 2: A APOSENTADORIA
Começava o
dia 20 de junho do ano do Senhor de 1483 — e já antes de amanhecer se viam
discorrer pelas ruas da cidade de Évora muitas pessoas, que se encaminhavam
para o palácio do conde de Olivença, onde então pousava el-rei D. João II, e
dali tomavam para a praça pública. Eram peões e cavaleiros os que tão cedo madrugavam.
Soava um burburinho de vozes confusas, semelhante ao ruído que se ouve às vezes
no meio da calma do oceano, e que pressagia o rebentar de horrorosa procela. O
ar estava grosso e úmido; e o clarão afogueado da aurora rompia a custo por
entre a névoa espessa, que toldava os ares.
— Abri,
mestre Gil; abri! — dizia em altos brados um homem, que com o cabo de um
machado batia rijo à porta do barbeiro da Corte.
Mestre Gil
dormia descansado o tão aprazível sono matutino, ao lado da sua muito
respeitável consorte, Brásia Fernandes, roncando e assobiando, os dois de
concerto, certas harmonias, que, se Meyerbeer as tivesse escutado, não deixaria
de as introduzir nalguma cena do seu Roberto do Diabo —, tão bravias,
destemperadas, horríveis, e por consequência românticas, lhe pareceriam. Foi
Brásia Fernandes a primeira que despertou com o ruído que faziam à porta, e ao
segundo reclamo, abanando o corpo globoso do seu marido, lhe gritou aos
ouvidos:
— Acordai,
Gil, que rompe o dia, e vozes ouvi à porta, que vos chamam. Algum pajem que
quer os cabelos cortados, para...
— Má peste
os mate! Que vão ao diabo, que os corte — disse mestre Gil, voltando-se para o
outro lado.
Mas ainda
bem não acabara de pronunciar estas palavras, novas pancadas, e vozes
repetidas, chamavam mestre Gil. Aumentavam a infernalidade do ruído os gritos
de Brásia Fernandes, com que ela procurava despertar o marido. Mestre Gil,
afeito a eles, fazia orelhas de mercador; mas por fim, temendo as vias de fato,
não teve outro remédio senão saltar do catre em que jazia. Às apalpadelas, e
meio a dormir, enfiou as calças e o gibão, e, não achando os borzeguins, correu
descalço à porta, que parecia vir dentro com os coices e contoadas que nela
pregavam.
— São isto
modos de acordar um cristão? — gritou ele de dentro. — A estas horas em que
apenas começa a divisar-se o arrebol da manhã? Que quereis vós outros tão cedo?
Esperai que nasça o Sol: então vos cortarei.
— Nada; não
é isso. Abri a vossa porta, que vimos com pressa.
— Seja
camanha quiserdes. Se fosse para sangrar alguém, vá; mas para aturar vossas
madrugadas não é mestre Gil. Ide a Pero, que mais abaixo pousa, que esse,
decerto, não deixará de vos fazer o cabelo.
Dizendo
isto, examinou se a porta estava bem fechada; correu de todo o ferrolho, e
voltou para a alcova. Infelizmente a senhora Brásia se havia então erguido em
anágua para vir meter na disputa a sua voz de virago: a meio caminho, os dois
consortes toparam em cheio, como dois cavaleiros na liça, e mestre Gil foi ao
chão.
Por fortuna
sua a queda não foi de perigo: tinha recebido o encontro junto da cama da
escrava moura, que dormia ao pé da alcova, e que aproveitava, sem lhe importar
o ruído, as poucas horas de descanso e liberdade, que os seus senhores lhe
deixavam. Caindo sobre a enxerga da escrava, mestre Gil acabou de acordar; e
levantando-se a custo, fez o sinal-da-cruz, e, depois de rezar ao anjo da
guarda, exclamou:
— Bom prol
me traga o dia; mas os começos são de danado agouro.
Passaram
alguns momentos em que tudo esteve em silêncio. Brásia Fernandes começava a
fazer o cálculo das perdas que lhe proviriam do mau modo do seu sonolento
marido, quando outra voz, bem diversa da que primeiro se escutara, gritou do
lado de fora:
— Da parte
de el-rei abri vossa porta, que se o não fizerdes prestes, irá dentro a golpe
de machado, e vós da cadeia aprendereis a obedecer aos mandados da justiça.
Calçava
mestre Gil os borzeguins quando tais palavras soaram; e Brásia, que mais
prestes se atacara, ouvindo a fórmula, e a voz do aguazil da Corte, que tantas vezes
fora rapar as barbas a casa do mestre Gil, abriu logo a porta, e fazendo mil
mesuras, procurou desculpar seu marido, a quem o sono, e o não saber o que
queriam, fizera descortês.
— Compadre,
se eu soubesse que éreis vós, certo que vos não fizera esperar — atalhou mestre
Gil que chegava, — mas tanto sono tinha, que vos não conheci a voz.
Atrás do
aguazil entrava de roldão um grande tropel de populares, que pelas ferramentas
que traziam nas mãos pareciam carpinteiros: era este o préstito do aguazil.
O barbeiro
começou a procurar os instrumentos de que se servia para alindar as caras, que
nas mãos do mestre iam buscar novo alinho: mas o aguazil lhe disse, rindo-se:
— Compadre,
não pensei em tesouras, nem em navalhas: trabalho para vós temos para outra coisa.
— Então para
quê? — perguntou assustado o bom do dono da casa.
— Para nos
dardes hoje aposentadoria, a nós, e a um hóspede que daqui deve fazer víspere
para melhor vida.
— Vós
zombais!!... Esta casa está ao vosso dispor: mas não queira Deus, que nela faça
alguém seu passamento.
— Certo, que
não será nela; mas dela, à fé que sim!
O Sol ia
rompendo, e uma carruagem parou à porta da casa onde esta cena se passava, que
era na Praça de Évora, e pertencia a Gonçalo Vaz dos Baraços, cujo inquilino
era mestre Gil.
— São novos
hóspedes — disse o aguazil ao barbeiro, escancarando a boca com um riso
hediondo — e tais como nunca vós os tivestes. Bem vos amanheceu.
— Não dizia
ele isso ainda há pouco — atalhou a faladora tia Brásia, que só ouvira a última
parte do diálogo, e que, vendo atulhar-se a loja de gente, andava pondo em
resguardo todas as coisas que por estarem mais à mão podiam levar descaminho.
Muitas alas
de besteiros vinham postar-se à porta, e por entre elas caminhava uma possante
mula, toda acobertada de dó, tal, que as gualdrapas lhe rojavam pelo chão: dela
descavalgou um cavaleiro, que pelo seus meneios parecia pessoa nobre, mas que
vinha rebuçado num comprido ferragoulo: logo se apeou outro que vinha com ele
de ancas; e ambos entraram em casa de mestre Gil.
Fez-se em
todos os presentes um silêncio sepulcral.
— Dai-nos,
mestre, a chave do sobrado, que por cima da vossa loja está, ou antes abri essa
casa.
— Senhor Rui
Teles (tal era o nome do que nas ancas da mula cavalgava), nessa casa estão os
trastes e armazém de baraços de Gonçalo Vaz; que bem sabeis ser o único
mercador que, em Évora, tem dessa mercadoria. Ele não está agora na cidade...
— E que me
importa? — atalhou Rui Teles. — Abri, que da parte da sua Alteza vos mando, e
não queirais que usemos da força.
Mestre Gil
calou-se: saiu para o lado da escadaria; abriu a porta, e o cavaleiro
desconhecido subiu, acompanhado por vários outros e por Frei Paulo, um dos bons
homens de Vilar * que naquele tempo viera à Corte. O barbeiro desceu depois
para a loja; e lançou os olhos para o terreiro, onde já estava muito povo
apinhado.
Carros de
traves e tabuados começavam de encher a praça: vários homens abriam covas
diante da porta do mestre, onde cravaram esteios, com os quais formaram dois
renques de estacaria: sobre estas estacarias pregaram barrotes atravessados, e
por cima lançaram tábuas, formando, assim, uma espécie de passadiço, que do
balcão da casa de Gonçalo Vaz ia dar a um tablado, que, no meio do terreiro,
primeiramente tinham levantado.
Toda esta
máquina que parecia obra de muitos dias fora edificada dentro de algumas horas.
Mestre Gil
estava de boca aberta, e não podia acreditar o que via, e o que mais é, nem
entendê-lo. O povo agitava-se em ondas no meio do terreiro: balcões, telhados,
chaminés, tudo negrejava com gente: mas parecia toda aquela multidão um
congresso de sombras, porque nem um grito, nem uma risada, nem um lamento se
ouvia. Os besteiros e espingardeiros, ainda então em diminuto número, estavam
postados em alas, cobertos de armas escuras, aos lados da praça, e pelo meio
dela, passavam de vez em quando alguns cavaleiros com as suas cotas de cores,
debaixo das quais se viam reluzir, pelas aberturas das cotas, os polidos
arneses; o passo dos ginetes era pausado: havia em tudo isto um aspecto
terrível, e misterioso.
O barbeiro
estava curioso de saber o que significavam todos estes aprestos: havia três
dias que não fora ao paço... Uma ideia lhe passou pelo espírito, mas repeliu-a
como abominável e impossível: e todavia se a tivesse admitido, acertara com a
verdade!
Farto de
parafusar, saiu da loja: chegou-se a duas ou três pessoas a perguntar para que
eram aqueles aparatos: nenhuma lho soube dizer; vendo assim baldadas suas
diligências, mestre Gil voltou outra vez para casa, gritando da porta à mulher.
— Brásia:
não está pronto esse almoço?
CAPÍTULO 3: CASO INCRÍVEL
— Bem
teimava eu que o dia tinha começado aziago — dizia mestre Gil com a boca meia
cheia de açorda, de que o ajudava a despejar uma escudela a senhora Brásia. —
Não posso atinar com o motivo porque se levantou esta máquina diante da nossa
porta, com um passadiço para casa de Gonçalo Vaz!... Se fosse... — dizendo isto
olhava para sua mulher, a ver se ela acabava a frase; mas a tia Brásia estava
com a alma enlevada no almoço, e nada lhe disse em resposta; então mestre Gil
prosseguiu: — Nada: não pode ser!... Tanto não ousara el-rei: preso num
castelo, ainda: é o que se diz pelo paço... mas justiçado?.....
Isso fora
impossível!
— E que te
importa? — disse por fim a tia Brásia, depois de acabar de comer. — Que te
importa o para que servirá essa armadilha? Que seja para ver jogar canas e
correr touros, ou para dar garrote ou degolar alguém, que tens tu com isso?
Come a tua açorda, e depois dá graças a Deus.
Neste
momento mestre Gil lançou os olhos para a praça e involuntariamente deu um
grito de horror.
— Santo
Deus!
Brásia olhou
para lá. Vários homens começavam a forrar de tela preta o cadafalso misterioso,
e o corredor que para ele dizia. Era evidente que um justiçado devia subir a
ele.
E com efeito
por um dos ângulos da praça começavam a desembocar os desembargadores da
suplicação com as suas opas roçagantes, os corregedores da Corte, os alcaides
dela, e todas as restantes justiças, com os oficiais da casa de el-rei.
Mestre Gil
estava imóvel e espantado como se algum corisco tivesse caído aos seus pés.
Tinir de
esporas soava pelos degraus da escada: um cavaleiro descia, e entrava apressado
na loja do barbeiro.
— Mestre
Gil, podereis vós haver-me alguns figos lampos?
— Senhor,
si! Hei de os ir colher à figueira do cerrado, que ontem lhe vi alguns maduros.
— Pois
colhei-os, e levai-os lá acima, sem que muito vos detenha: levai também um
pichei com vinho.
Dito isto o
cavaleiro saiu: montou num ginete, e partiu à rédea solta através da praça.
O barbeiro
obedeceu: lutava na sua alma o terror e a curiosidade. Quase que estimou que
houvesse um motivo invencível para superar aquele e satisfazer esta. Ligeiro
correu ao cerrado, colheu os figos, e subiu a casa de Gonçalo Vaz, levando-os
numa das mãos, e na outra um pichei de vinho.
Olhou: e um
estremeção involuntário lhe agitou os membros: um cavaleiro que não podia ser
senão o que entrara envolto no ferragoulo, estava sentado numa cadeira. Era
ele!... Era quem mestre Gil imaginara. Via-o; mas não o cria!
— Vinde cá,
Gil; dai-me isso que trazeis — disse Rui Teles, que estava em pé ao lado do
cavaleiro.
O barbeiro
obedeceu.
— Quisera
poder pagar-vos — disse o cavaleiro, — porém não posso. Hoje sou mais pobre do
que o mais pobre dos meus vassalos: os meus haveres consistem apenas nalgumas
horas de vida. Deus vos recompensará.
Isto foi
dito com voz firme e serena. Depois o cavaleiro, escolhendo os figos mais
formosos e maduros, os comeu, e bebeu uma vez de vinho.
Frei Paulo,
que estava do outro lado, disse com voz solene:
— Não vos
chameis pobre, senhor. A bem-aventurança vos espera, e a bem-aventurança de um
mártir não é pobreza. Deixais mulher, filhos, riquezas e vassalos; porém, mais
do que tudo isto vale o reino de Deus.
O cavaleiro
volveu os olhos para a janela, e cravou-os no cadafalso.
— Nosso
primo gosta das coisas à guisa de el-rei Luís de França. Ainda há pouco tempo
que, encostado comigo a uma janela do paço, me descreveu a forma do cadafalso,
em que ele mandara degolar um dos seus duques, e não lhe esqueceu a traça para
o auto presente!
Rui Teles,
vede como vem loução Francisco da Silveira, com as insígnias de meirinho-mor.
Rui Teles
olhou, e viu Francisco da Silveira entrar na praça, sopeando o seu fogoso
cavalo: a vergonha lhe fez subir a cor ao rosto: ele aceitara o cargo de
conduzir o mísero cavaleiro ao lugar do suplício; e o marquês de Marialva tinha
recusado preencher as funções do seu, para não assistir aos últimos instantes
de um desventurado amigo; fizera mais: ele e muitos fidalgos ofereceram a
el-rei o darem-lhe suas fortalezas em arreféns pelo sentenciado; mas nada
abrandara o ânimo de el-rei, nem do seu valido Antão de Faria. Decretada estava
a morte do cavaleiro; e o julgamento e sentença que o levavam ao patíbulo, não
eram mais do que fórmulas vãs que deviam dar aparências de justiça ao que só
era obra de vingança e porventura da política.
O cavaleiro
que falara embaixo com mestre Gil entrou. O seu rosto era pálido: parou em
frente do sentenciado.
— Que
notícias trazeis, senhor? — perguntou Frei Paulo.
— Não há
nenhuma esperança. Nada pode dobrar a vontade férrea de el-rei.
— Deus lhe
perdoe — disse em voz baixa o sentenciado. — e os meus filhos?
— Estão
seguros. Fernão Rodrigues Pereira os levou para Castela. A rainha D. Isabel
lhes servirá de amparo.
— Seja o
Senhor louvado! Morrerei tranquilo.
Estas foram
as últimas palavras do mísero cavaleiro.
Frei Paulo
lhe falou ao ouvido: ele se pôs em pé, e o monge tomou o lugar que ele deixara:
era a confissão extrema.
Mestre Gil
estava imóvel no topo da casa, junto à porta, com os olhos espantados, e com a
boca semiaberta. Rui Teles lhe acenou que descesse.
E o barbeiro
desceu.
CAPÍTULO 4
Quando eu
saía à porta da cidade aparelharam-me cadeira na praça.
Viam-me os
jovens, e escondiam-se; e os velhos levantavam-se, e estavam.
Os príncipes
paravam de falar, e ponham o dedo sobre a boca.
A bênção
vinha sobre mim, e vestido era de justiça.
E eu era
padre dos pobres, e britava os dentes do mau, e dos dentes dele tirava a prea.
Aqueles que
me ouviam esguardavam a minha sentença.
Mas agora
escarnecem de mim os que som mais jovens que eu, aqueles cujos padres eu
desdenhava poer com os meus cães.
E hão me
avorrido, e fogem longe de mi, e nom hão vergonha de cuspir na minha face.
E som
tornado em nada; e agora seca-se a minha alma em mi mesmo, e os dias da aflição
me possuem.
E som
semelhável ao lobo, à faísca e à cinza.
Bradarei a
ti, senhor Deus, e nom me ouves; e estou, e nom me olhas.
***
Estas
magoadas endechas do velho Jó soavam na Praça de Évora, entoadas sobre o longo
corredor que da casa de Gonçalo Vaz dizia para o cadafalso, erguido como um
espectro no meio daquela multidão, que para ele olhava muda. Por esse estreito
passadiço, a que um gongorista ou romântico arrevesado chamara ponte da morte
em pélago de vidas, caminhava o cavaleiro condenado ao suplício, e junto dele o
venerável Frei Paulo e mais dois sacerdotes, que com fúnebre melodia repetiam
as passagens do Livro de Jó que acima deixamos transcritas, e vários outros
cantos extraídos do tesouro inesgotável de consolações, chamado a Bíblia. Após
o padecente ia um vulto de homem todo coberto de dó: um saio comprido lhe
pendia até os pés, um grande capelo lhe escondia a cabeça, e uma corda de
esparto o cingia: era o algoz.
Chegaram
enfim ao teatro onde se havia de representar aquele drama terrível: então soou
a voz do pregoeiro que dizia: “Justiça que manda fazer el-rei D. João na pessoa
de D. Fernando, duque de Bragança, por crime de alta traição.” Três vezes
soaram estas palavras, a que o duque respondeu em voz baixa: “Digam o que
quiserem.”
O
sentenciado parou no meio do cadafalso, onde havia uma espécie de tabuleiro: o
executor lhe disse que se deitasse ali: ele obedeceu, depois de tirar do
pescoço um relicário, que deu a Frei Paulo, dizendo-lhe:
— Dai isto à
senhora duquesa. Não vos esqueçais do que vos encomendei. Que vá pela minha
alma um romeiro a Santa Maria de Guadalupe, e outro ao santo sepulcro de
Jerusalém. Deus tenha piedade de mim!
— Amém! —
responderam os três sacerdotes.
— Jesus! —
foi o grito que soou depois de um momento de silêncio mortal. Este grito partiu
de todos os ângulos da praça ao mesmo tempo: a cabeça do duque de Bragança D.
Fernando II tinha sido separada do seu corpo: vira-se reluzir no ar o ferro do
algoz, como o fulgurar de um relâmpago.
O executor,
sem descobrir o rosto, voltou para a casa de Gonçalo Vaz. Quem ele era, ninguém
o soube: houve pessoas entre o povo que afirmavam lhes parecera pelo vulto o
próprio D. João II; mas não as acreditaram; eram destas imaginações, que gostam
demasiado do maravilhoso. Alguém se atreveu a fazer perguntas acerca disto a
mestre Gil, o qual, sorrindo-se, mudava sempre de conversa... provavelmente
porque achava ridícula e extravagante tão horrorosa ideia. Mas o que muitas
vezes lembrava a mestre Gil, assim como a toda a gente, era a história da
pedrada que el-rei atirara na borda do Tejo, e o dito do cardeal da Costa,
antes de partir para Roma.
A primeira
cabeça em que batera a pedra despedida da mão de el-rei fora a do duque de
Bragança. Julgado camarariamente, por juízes não seus pares; acusado de tratar
traição, a favor de Castela e contra seu rei, por testemunhas vis, e pelos seus
inimigos mortais, condenaram-no sem o ouvirem; e o cavaleiro que fora o amigo
de Afonso V, o senhor feudal que podia tirar das suas terras duas mil lanças e
dez mil peões armados, não teve uma lança que se abaixasse por ele, nem uma
besta que se encurvasse na sua defesa. Como um assassino ou um salteador,
convertido em fábula das gentes, entregou a vida nas mãos do algoz, no meio de
uma praça pública. Os seus filhos, pobres e proscritos, foram procurar asilo
num país estrangeiro, e a sua mulher, a irmã da rainha de Portugal, pôde chamar
qualquer homem da plebe a mulher do justiçado!
Naquele
mesmo dia os cônegos da Sé de Évora conduziam, sem pompa, à Igreja de São
Domingos, entoando as orações dos finados, o cadáver truncado do duque de
Bragança, e lançavam alguns punhados de terra sobre os restos do homem, que
fora nobre, poderoso e rico.
CAPÍTULO 5: SETÚBAL
No Verão do
ano de 1484 foi el-rei D. João residir em Setúbal, terra em que muito gostava
de habitar. Os populares da vila fizeram grandes festas, indo-o receber com
tourinhas e guinolas. Nenhum rei houve, por certo, mais estimado do povo;
porque nenhum, nem antes nem depois, guerreou tanto os grandes, nem tanto
favoreceu os pequenos. Ousado, e cioso do mando supremo, D. João II era
semelhante ao furacão do deserto, que revolve e quebra os pinheiros e carvalhos
da encosta, e agita apenas a erva rasteira, que cresce no fundo do vale.
Passaram-se, pois, aquele dia e noite em folias e tangeres, com grande
aprazimento de el-rei.
Mestre Gil,
barbeiro da Corte, tinha andado sempre com ela, desde que se acabara o luto por
D. Afonso V. Era o mestre muito aceito a Antão de Faria, camareiro e valido de
el-rei, e por isso todos o tratavam com cortesia: muito diferente, todavia, de
Oliveiros le Dain, barbeiro e privado de Luís XI de França, nunca havia trepado
ao valimento de D. João II, nem a sua ambição punha a risca tão alto:
contentava-se com ser bem olhado pelo camareiro, e porventura isto o livrou de
dançar na forca à maneira do rapador francês: tão certo é que os validos são
como os repuxos: tamanho é o tombo, como a altura a que da terra subiram.
Mestre Gil
dera, pois, com os ossos em Setúbal. A tia Brásia Fernandes ficara em Évora; e
ele, livre dela, gozava da vida; da vida, que, segundo dizem os casados, se
renova inteira (quando há destas separações) para aqueles maridos cujas
caríssimas consortes são meigas pelo teor da tia Brásia; isto é, afagam com
bofetadas, sorriem com carrancas, pedem com berros, consolam com descomposturas
e acariciam com bofetões e dentadas.
Achava-se
mestre Gil à solta, e aproveitou a ocasião; desocupado e contente, tinha-se
fartado de dormir, e já havia alguns dias que estava em Setúbal quando saiu a
ver as coisas notáveis da vila, e encaminhou os passos para a praia do Esteiro,
que recebe o tributo das águas do Sado. A brisa do mar quebrava o ardor dos
raios do Sol, tão ardente nos nossos climas meridionais.
Fernão
Martins Mascarenhas, capitão da guarda e dos ginetes de el-rei, passeava também
por lá, à sombra de uns bastos arvoredos, que então por aquelas praias se
estendiam. Viu-o mestre Gil, e ia direito a ele para travar conversa, quando
chegou um besteiro da guarda, e falou ao ouvido de Fernão Martins. Este partiu
imediatamente para o lado dos paços onde pousava D. João II.
“Não se pode
ser morador da casa de el-rei — rosnou o barbeiro; — não há um momento de
folga: lá vai Fernão Martins, chamado à pressa; agora que ele talvez bem
desejara conversar comigo um pedaço! Mas, enfim, amanhã é a procissão de
corpus: tudo anda em barafunda; depois de amanhã poderemos ao menos conversar
com os amigos.”
Dito isto,
mestre Gil deu volta para o interior da vila: chegou ao rossio, chamado de
Jesus, correu a Rua da Anunciada (hoje Rua do Troino) e a Travessa das
Amoreiras: estavam já as janelas cobertas de ricas tapeçarias de sedas, e as
paredes forradas de rasos de maravilhosas invenções e lavores: nuns estavam
pintados vários cavaleiros com as suas divisas e cores, e com letras por baixo
que diziam: Como o cavaleiro Auselom caiu em caso de traição contra o seu pai e
imperador Davi e o guerreou. Mais adiante via-se Absalão preso pelos cabelos ao
tronco de uma árvore, e por detrás dele um cavaleiro que o atravessava com uma
lança, tendo por baixo a lenda: Como o cavaleiro Auselom foi morto
miseravelmente.
Noutros
estavam bordados os desposórios da Virgem com São José, e por cima lia-se em
letras alemãs maiúsculas: De como o bispo de Jerusalém deu a bênção de conjugal
união à Virgem Maria. Pegados com estes corriam outros rasos, que forravam
muitas moradas de casas, e em que se representavam diversos passos da Caroníqua
de Amadis de Gaula e da do imperador Vespasiano e das suas altas cavalarias.
Mestre Gil andava embebido nestas pinturas, que eram os jornais populares
daqueles séculos, em que os fatos históricos, sagrados e profanos, se
misturavam e confundiam debaixo de uma única forma, a cavalaria.
As ruas
pulverulentas, e ainda naquela época não calçadas, tinham sido limpas das
imundícies de um ano, ali amontoadas, e estavam juncadas de espadanas, de canas
verdes, de ramos de pinho e de alecrim e rosmaninho. Por algumas frestas e
janelas, cujas adufas meio levantadas formavam como cobertas ao longo dos
muros, viam-se as mulheres entretidas em dar ceradas nos púcaros e talhas de
Estremoz, que punham em boa ordem na cantareira, já de novo caiada, e com os
seus mandis ou cortinas listradas: outras acabavam de bordar suas gorjeiras
muito alvas, lavradas de linha preta e vermelha, ou seus panos brancos, para com
donaire envolverem as tranças no dia seguinte. Nas lojas dos alfagemes, ou
espadeiros, poliam-se e lustravam-se espadas; nas dos armeiros se douravam
elmos, e se azulavam arneses: não se viam nos balcões dos alfaiates senão
calças de cores, talhadas ao viés, cintos de seda, gibões de panos custosos,
comprados na feira de Lamego, pelotes à guisa de Espanha; enfim toda a casta de
trajos louçãos e escusados. Ninguém suponha que os peralvilhos são de recente
instituto; porque não há aí ordem monástica (onde as há), nem fidalgo de casta
goda e sangue azul, que possa disputar com os alindados acerca de antiguidade
de instituição, ou de raça.
Mestre Gil
andava como pasmado; não que este espetáculo fosse para ele novo, mas porque
supunha, como toda a gente, que a sua terra era a mais nobre povoação, do
mundo, e que, fora de Évora, não era humanamente possível haver riquezas,
louçainhas e bom gosto. Enganava-se: Setúbal era muito mais rica: o comércio
florescia ali em sumo grau: os seus habitantes, marinheiros ativos, cobriam os
mares com os seus navios, que demandavam os portos de mais trato no
Mediterrâneo, e no mar Oceano: ali foi que D. João II, muito inclinado às
coisas do mar, artilhou as primeiras caravelas, que em Portugal se viram
armadas de bombardas. Enfim Setúbal era naquela época uma das mais abastadas
vilas que no reino havia: e era isso que mestre Gil, que nada entendia de
comércios, não podia compreender.
Ao cair da
noite o mestre se recolheu a sua pousada, que era no paço, e deitou-se. Os seus
sonhos foram dourados, mas extravagantes, como as variadas cenas que vira
durante o dia. Auselom, o bispo de Jerusalém, Vespasiano, o rei Garinter,
Amadis, Lisuarte, Fernão Martins, cavaleiros, besteiros, espingardeiros, donas,
donzelas passavam diante dos olhos da sua alma, em diversas posturas,
fazendo-lhe biocos, visagens e ademanes, ora de escárnio, ora de amizade: via
festas, torneios, justas, momos, combates, e tudo isto o fazia rir, falar,
bracejar, gemer, e gritar no meio dos seus muito roncados e assobiados sonos,
até que despertou, e esfregando os olhos viu que era alto dia. Ergueu-se à
pressa; e ainda bem não tinha enfiado o pelote, sentiu levantar a aldrava: era
um pajem que entrava, e que vinha chamá-lo da parte de Antão de Faria.
O barbeiro
pegou nas ferramentas do ofício, e foi após o pajem, até o quarto do camareiro,
que já o esperava sentado numa ampla poltrona de couro, com a sua chaparia
dourada: o pajem saiu, e mestre Gil ficou a sós com o valido de el-rei.
Começou a
barbeá-lo, rebentando por falar; mas Antão de Faria estava taciturno, e parecia
envolto em profundas meditações: para o tirar a terreiro, o barbeiro tossia,
escarrava, largava a navalha para se assoar; mas o descortês valido fazia
orelhas de mercador ao estrepitoso catarro de mestre Gil, que em verdade não
podia atinar com a causa da mudez de Antão de Faria, que para mestre Gil, e
talvez só para ele, era o homem mais conversável de todo o mundo.
Por fim não
pôde conter-se: tossiu, e disse em voz pausada:
— Maldita
tosse!
O valido
volveu os olhos para ele, e, como que acordando de um letargo, exclamou:
— Ah, sois
vós, mestre Gil!
Custou muito
ao barbeiro o não pregar uma gargalhada. “Ora esta! — disse lá consigo. — O
privado parece que perdeu o tino: nem sequer sentiu a navalha na cara! Pois ela
não está das mais macias; que há dias que não é afiada!”
E as provas
sangrentas, de que a reflexão do barbeiro era exata, estavam gravadas nas faces
e queixos de Antão de Faria.
— Senhor, si
— prosseguiu o barbeiro em voz alta, — que ao vosso mandado aqui vim exercitar
meu ofício.
— Tendes
razão... mas que novas, mestre Gil?
— Nenhumas:
salvo os grandes aparatos que por essa vila vão para a procissão. À fé que
nunca na minha vida vi primar tanto no dia de hoje em galas e louçainhas: de
mais de trinta corpus christis me
lembro, e de todos posso dar relação: o primeiro era eu muito novo, em tempo do
infante D. Pedro...
— Mas
dizei-me, mestre Gil: não ouvistes nenhum rumor por aí, acerca de alguma coisa,
que deva suceder hoje!
— Nada:
absolutamente nada.
— Não corre
entre o povo que hoje querem os fidalgos dar morte a Sua Alteza que Deus
guarde?
O barbeiro
largou a navalha no chão, e recuou obra de uma vara, cheio de indizível horror.
Antão de
Faria cravou nele os olhos.
— Não
ouvistes dizer isto?
— Juro por
esta (aqui beijou os dedos índices de ambas as mãos, encruzando-os sobre a
boca): juro pela minha alma, que nada disso ouvi.
— Dor de
reira os consuma! — gritou Antão de Faria, batendo o pé na casa, cheio de
cólera. — Só sabem ir espalhar pelo povo aquilo que ele não deve saber, e o que
convém se lhe revele, guardam-no muito bem guardado. Pois saiba, mestre Gil,
que muito desvairado modo de conjuração trataram os nobres contra a pessoa de
el-rei, e que já por vezes têm tentado pôr-lhe ferro ou matá-lo com peçonha, e
que vendo até agora baldadas suas abomináveis traças resolveram acabar com ele
no meio da procissão. Mas os traidores enganam-se! El-rei irá; que os não teme.
Um espingardeiro escondido numa casa deve atirar a Sua Alteza, quando os fidalgos
se abaixarem para apanharem seus bastões, que terão deixado cair no chão: é
este o sinal ajustado: mas quando eles se abaixarem el-rei se abaixará também,
e além disso o traidor espingardeiro já a esse tempo não estará neste mundo. Os
fidalgos crerão que ficam seguros; mas daqui a três meses a cabeça dos
conjurados terá já descido ao inferno, e os outros o seguirão em breve.
Antão de
Faria pronunciou estas palavras com um furor comprimido, e o barbeiro, imóvel
diante dele, o escutava com os olhos espantados, e a boca meia aberta. O valido
prosseguiu.
— Acabai de
me rapar as barbas, e ide-vos. Podeis dizer a todos que hoje querem assassinar
el-rei; mas silêncio! acerca de quem vos disse, e de estarem atalhados os intentos
dos traidores: se vos apraz a luz do Sol tende tento com a língua.
Mestre Gil
continuou com a sua tarefa: tinha-lhe passado a vontade de falar. Acabada a
obra, despediu-se em voz submissa de Antão de Faria, e desceu para o seu
aposento.
Daí a duas
horas corria em Setúbal um sussurro vago, entre o povo, de que se queria tentar
contra a vida de el-rei, no solene auto da procissão de cor pus. Ninguém sabia
como este rumor se espalhara: porém mestre Gil tinha saído do paço, obra de
três horas antes de começar a festa!
CAPÍTULO 6: A PROCISSÃO DE CORPUS
Eram mais de
oito horas quando mestre Gil saiu do acanhado alvergue, que lhe tinham dado no
átrio do paço, onde também tinham seu quartel os besteiros, espingardeiros, e
ginetes da guarda real, de que a pocilga do barbeiro apenas estava separada por
um tapume de tábuas, grosseiramente afeiçoadas, e mal unidas. Tanto no quartel,
como no átrio, ia grande revolta e matinada; porque os soldados se acabavam de
armar à pressa, para entrarem em ordenança; visto que el-rei tinha mandado
dizer que estivessem prestes; porque ele não tardaria em descer para acompanhar
a procissão. Eram, dizemos, mais de oito horas, quando mestre Gil saiu para a
rua; e, como também dissemos no capítulo antecedente, daí a duas horas já entre
o povo miúdo de Setúbal corria uma voz de terror acerca da vida de el-rei; mas
esta notícia era vaga e incerta.
Sem saberem
bem porquê, os populares acusavam os fidalgos de traições horríveis: que
traições estas eram ninguém o sabia; mas todos esperavam com ansiedade que se
desvanecessem ou verificassem os boatos que encontrados corriam.
O relógio de
sol colocado num dos ângulos da praça da vila apontava quase onze horas, quando
a procissão começou a sair da igreja matriz, aonde el-rei tinha acabado de
chegar, acompanhado de todos os nobres que se achavam na Corte; eram estes,
além dos oficiais da sua casa, o bispo de Évora, D. Fernando de Meneses irmão
deste, o duque de Viseu cunhado de el-rei, Pedro de Albuquerque, o conde de
Penamacor, D. Guterres Coutinho, D. Álvaro de Ataíde e o seu filho D. Pedro,
Fernão da Silveira, e muitos outros fidalgos e cavaleiros, que el-rei sempre
consigo trazia nos contínuos giros em que andava pelas províncias,
principalmente da Estremadura e Alentejo.
A chegada de
el-rei fez logo entrar em boa ordem toda aquela multidão de gente que devia ir
incorporada na procissão, e que, reunida em vários grupos, formava à porta, e
ainda pelas naves da igreja, um como caos indizível de pendões, bandeiras,
dançarinos, apóstolos, reis, foliões, imperadores, músicos, cavaleiros,
profetas, diabos, santos, bugios, mulheres lascivas e rabis veneráveis; cada
qual vestido com os trajos, e fazendo os ademanes próprios do papel que
representava. As tabernas da vizinhança tinham-se já àquelas horas esgotado;
mas o divino licor transluzia nas faces rubicundas dos alegres foliões e
jograis, que dançando, e fazendo momices e visagens, se ensaiavam com todo o
esmero para bem cumprirem seus deveres no muito devoto e angelical auto da
procissão de corpus.
Os ginetes
da guarda começaram a afastar o tropel de espectadores com aquela cortesia
própria de soldados de um príncipe pai do seu povo: choviam as pranchadas sobre
os amplos costados dos fiéis vassalos de el-rei: aqui um cavaleiro dando sofreadas
ao seu cavalo o fazia recuar sobre um enxame de mulheres enfileiradas ao longo
das paredes, e uma ou outra lá ficava pisada debaixo das patas do pobre animal,
que suava com o peso da sua cobertura de ferro: lá um besteiro sentava a
manopla sobre os focinhos de algum basbaque, que metendo a cabeça por entre a
ala, o empurrava e fazia sair da ordenança em que o pusera seu coudel: aqui um
velho atropelado gemia lançado por terra: lá chorava uma criança perdida. Para
outra parte um bando de cães travados em briga, vinham aos tombos, ladrando,
ganindo e rosnando, cair entre as diminutas fileiras dos espingardeiros, que os
serviam de coronhadas, arrebentando aquele em cujo lombo caía, pesado, como
desconto de rebatedor de ordenados em 1838, o coice do arcabuz. Corria então o
dono do animal assassinado, e travava-se com o espingardeiro, que brevemente
terminava a disputa, fazendo com a sua terrível arma um movimento de rotação,
até que ela parava nos peitos do honrado cidadão, que, lançando pela boca
golfadas de sangue, ia sentar-se tranquilamente em terra. Enfim via-se a olho,
que o povo estava desapressado das tiranias dos fidalgos, e que, visto haver já
corregedores pelas terras dos donatários da Coroa, a nação era livre,
respeitada e feliz.
Asserenou
pouco a pouco a revolta, e a procissão começou. Mas onde estava mestre Gil?
Mestre Gil estava empoleirado no degrau de uma porta na Rua da Anunciada, ou do
Troino, como hoje lhe chamam, e já lhe chamava o muito sincero e imparcial historiador
Garcia de Resende. Esta porta pertencia a uma casa de quina, cujas janelas, com
grande espanto do barbeiro, estavam fechadas, assim como a porta. Calculou ele,
e calculou bem, que estando tudo fechado, ninguém o incomodaria se se
empoleirasse no limiar da entrada. Ali, pois, a pé firme esperou que chegasse a
procissão. Ela com efeito, depois de larga demora, desembocou ao cabo da rua.
Aproximou-se; e mestre Gil viu, com mágoa interior, que em pompa, invenções, e
grandeza, o corpus de Setúbal ficava muito acima do de Évora.
Na frente
daquele numeroso concurso vinha uma judenga, ou dança de judeus, acompanhada
por um, que fazia de rabi, com a toura, ou livro da lei, na mão. Como nos
governos representativos são os primeiros cargos, que aparecem vagos, para os
membros da oposição, e para os que mais alto bradam contra o ministério, assim
na procissão de corpus tinham a dianteira os que blasfemavam de Cristo.
Talvez
ninguém imaginasse que no cerimonial de uma procissão do século XV estava o ovo
de um princípio político do XIX? Pois, agora, o ficarão entendendo.
À judenga
seguiam-se em corporação os ferreiros, com a sua bandeira; e neste lugar sê via
um homem vestido de cores, fitas, ouropéis, e guizos, fazendo visagens e
momices, com arco e frechas na mão: era o segitório ou sugistório (do latim
sagitarius, frecheiro). Fazia este um grande terreiro, ora fingindo, com
ademanes e gestos, de medroso, ora parando e voltando-se com a postura e modos
ameaçadores do capitão Horriblicribrifax da velha comédia alemã. Corria
adiante, quando ele corria, e recuava quando ele dava volta, uma serpe gigante,
sarapintada horrivelmente, por baixo de cuja barriga se viam os pés dos homens
que a levavam, e que um silvado, em que a serpente ia metida, não podia
encobrir inteiramente. Esta parte da procissão tocava aos carpinteiros, que
também levavam uma dança de ciganas.
Atrás deles
iam os hortelões com um auto ou entremez em que se figurava uma caçada: via-se
um rei e um imperador, um urso e monteiros; um carro e homens armados de chuços
e lanças, tudo ao antíguo, conforme rezava o regimento da procissão.
Arrais, espadeleiros,
petintais, galeotes, e mais gente de marinhagem de naus, caravelas, e fustalha
miúda, salvo barqueiros, iam após a caçada, levando uma nau sobre rodas, muito
para ver, com o seu cordoame, enxárcias, bailéus e gáveas, muito bem obradas, e
adiante caminhava. São Pedro com as suas barbas alvas, e as suas chaves na mão.
Seguia-se um
bando de foliões e jograis vestidos de desvairadas maneiras, fazendo momices e
indecências, com que a devoção popular crescia, como é de crer: logo atrás
destes vinham os pedreiros e alvenéus muito sisudos, com castelos nas mãos, de
delicado lavor, e a competente bandeira. As regateiras, peixeiras e fruteiras
os acompanhavam rodeando duas raparigas desenvoltas, dançando uma em pé sobre
os ombros da outra, que também ia dançando, coisa admirável, e a que o povo embasbacado
dava grandíssima atenção: a estas dançarinas se dava o nome de péla, ou porque
mostravam leveza e agilidade como uma péla, ou por lhe darmos uma significação
mais natural e justa, derivando aquela denominação da palavra latina pellex. As mulheres que rodeavam as duas
dançarinas corriam como bacantes de um para outro lado, saltando, e tocando
adufes e pandeiros. Isto lhes era ordenado pelo regimento do auto.
Chegava o
turno dos barqueiros, que vinham rodeando uma horrenda e agigantada figura, que
representava São Cristóvão, o qual levava pendente ao colo um Menino Jesus.
Uma das
coisas mais maravilhosas que no auto havia era uma figura que representava São
João o Precursor, com o seu surrão e cajado, muito bem posto, o qual davam os
sapateiros. Adiante vinham doze pastores, e doze macacos com rabos muito
compridos, tanto ao natural, que enganavam os olhos.
Seguia-se a
dança dos anciãos: era um bando de velhos e velhas, com rosários de bugalhos
nas mãos, e que faziam trejeitos, dançando com mais desenvoltura do que
prometia, ao primeiro aspecto, a muita idade que representavam.
Após estes
vinha o dráguo: era um dragão espantoso, com duas asas de desmesurada grandeza,
e ventas e boca pintadas de vermelhão, imitando sangue: a dama do dráguo
dançava diante dele com um folião, fazendo trejeitos e requebros à fera, que
conservava toda a sua seriedade, como coisa morta que era.
Aqui, por um
grande espaço, se estendia a procissão com corpos de danças, umas formadas de
mouros escravos, outras em que os bailadores lutavam armados de espadas, outras
finalmente em que as figuras representavam sátiros e ninfas em competências
amorosas, sumamente edificativas e morais, como é fácil de imaginar; tudo para
maior honra de Deus e exalçamento da fé. Era depois disto que se via o
bem-aventurado São Jorge, santo imaginário, que os Ingleses trouxeram para o
nosso calendário em tempo de el-rei D. Fernando, e que, invocado daí avante nas
batalhas, tirou muitas vezes a Santiago a honra de servir o seu nome para grito
de arremeter.
Vinha o
padroeiro do reino, coberto de uma armadura completa, azul e dourada, sobre um
possante ginete acobertado, com os seus escudeiros, pajens, e cavalos à destra,
tão loução e bem posto, que se de pau não fora, e além disso santo, mais de uma
donzela se enamorara dele. Era esta uma das representações da procissão de
corpus, que mais dava no goto ao respeitável público, ou público ilustrado (que
de ambos os modos se costuma designar em cartazes e anúncios) do que muitos se
ufanavam os cerieiros, conteiros e douradores, a cujo cargo estavam os adornos
e acompanhamento do bem-aventurado santo.
Devemos,
antes de passar adiante, notar neste ponto, a que podemos chamar centro, alma,
ápice ou força da procissão, que por brevidade omitimos as bandeiras, danças, folias,
reis e imperadores, que cada ofício, ou dois, três, e quatro unidos, levavam,
semeados aqui e acolá; porque fora tão miúda descrição um não acabar. Basta
dizer, que só de reis havia aí bastantes para abastecer todos os tronos da
Europa, e de arrazoada porção da Ásia.
De São Jorge
saltava a procissão (que ainda naquele tempo se não tinham inventado as três
unidades) ao sacrifício de Isaac. Um alentado Abraão, de roupas talares, barba
revolta, e cutelo na mão, caminhava com passo grave, levando adiante o filho,
que, para confessarmos a verdade inteira, abaixando-se de vez em quando, para
atirar sua pedrada aos rapazes conhecidos, e com a cara enlambuzada de açúcar e
confeitos, estragava o seu papel, como ainda hoje fazem por esse mundo (já se
sabe que não falamos de Portugal) muitos atores que sem piedade esfolam a
linguagem, o tom, e a gesticulação de qualquer drama, nas barbas do seu autor,
que em cada representação tem três ou quatro horas de aposentadoria nas penas
do inferno, enquanto o respeitável público (aquele de que acima falamos) se
extasia, e palmeia os histriões, em vez de lhes cuspir nas faces.
Após Abraão
vinha Judite, com a sua aia, trazendo um alfanje, e um saco ensanguentado,
dentro do qual era de crer estivesse a cabeça do ímpio e desalmado Holofernes.
Logo em seguida via-se o rei Davi, dançando com os seus pajens, e atrás de tudo
isto foliões, e outra péla, acompanhada de regateiras, e de homens com as
cabeças cobertas de uns barretes pontiagudos de volante, com as caras tapadas ao
modo dos modernos olhandilhas das procissões de Quaresma (que os bons costumes
ainda os não perdemos de todo): estes biocos, tocava aos tendeiros e merceeiros
o dá-los para aquela solenidade.
Que classe
seria a que viesse na procissão logo em cola dos tendeiros? É visível a todas
as luzes, que deviam ser os taberneiros. Eram, pois os taberneiros que aí
vinham. Um Baco gordo e vermelho, sentado numa pipa, e acompanhado de cantores,
e foliões, aí atraía a atenção dos devotos, e fazia um dos mais belos
ornamentos da procissão, onde faltava a deusa Vênus, que tão distinto lugar
tinha nos corpus de outras terras do reino, mas que em Setúbal faltava. Não passou
isso por alto a mestre Gil, que por um sentimento patriótico, se regozijou de
tal quebra do cerimonial, que, nessa parte, se executava à risca em Évora, por
postura da Câmara.
A folia dos
taberneiros servia como de transição entre as personagens da lei velha e da lei
nova. Os doze apóstolos e Jesus Cristo, rodeado de anjos, caminhavam com passo
firme, e aspecto severo no meio daquela turba multa, que, longe de ver nisto,
como nós, uma indecência abominável, acreditava que de semelhantes profanidades
só resultava honra e glória a Deus.
Ao
apostolado seguia-se Santa Maria da Asninha, isto é, uma representação da fuga
para o Egito. A Senhora ia a cavalo, e São José a pé, com grande acompanhamento
de anjos, e adiante o Menino Jesus num andor.
Começava
então um Fios Sanctorum extensíssimo: aqui ia Santa Catarina com a sua roda de
navalhas; lá São Sebastião; o santo ia nu e com os seus frecheiros adiante;
agora São Joaquim e Santa Ana; logo Santa Clara, acompanhada de várias freiras,
e muitos mouros de roda, que tinham liberdade para lhes dizerem quantas
palavras indecentes lhes lembrassem: enfim este ato do drama acabava por São
Miguel, ameaçando dois grandes diabos, que pareciam quererem lutar com o
arcanjo.
No que
poderíamos chamar entreato, isto é, no espaço que havia entre o espetáculo que
temos descrito e o clero secular, comunidades, e mais pessoas, que iam na cauda
da procissão, caminhavam as padeiras, conduzindo uma descomunal fogaça, a qual
no fim da cerimônia se devia distribuir aos presos.
Era depois de
passarem os clérigos, comunidades, e pessoas mais autoridade, que vinha a guayolla. Davam este nome a uma espécie
da maquineta em que ia a Hóstia, e que sentava sobre um andor ou charola, que
alguns clérigos levavam aos ombros, e atrás da qual, a pouca distância, ia
el-rei e os fidalgos da sua Corte, levando todos bastões nas mãos.
Mestre Gil,
imóvel no seu poial, tinha visto com toda a atenção as diferentes danças,
folias, e personagens daquele famoso auto; mas, por uma parte, o diálogo que
tivera pela manhã com Antão de Faria, e, por outra, o ciúme que lhe causava a
superioridade do que via ao que estava costumado a ver em Évora, lhe cortavam
com pensamentos tristes as imagens risonhas, de que os seus olhos ávidos lhe
tinham alegrado o espírito. Todavia, podia mais com ele o seu gênio falador do
que quaisquer outras considerações, e por isso, enquanto durava a procissão, ia
explicando a uns poucos de basbaques e mulheres que estavam ao pé dele os
vários sentidos místicos de todas aquelas representações, o que fazia com uma
profundidade de ciência, que deixava espantados os seus ignorantes vizinhos.
Talvez também disso se espantem os nossos leitores; mas não têm de que: naquela
época sucedia à teologia o que hoje sucede à política: era ciência universal. Cada
século tem lá o seu gênero de civilização: são mistérios esses da humanidade,
que não nos cumpre aqui indagar.
A guayolla tinha apenas acabado de passar,
quando mestre Gil sentiu estoirar uma porta, segundo parecia, no fundo das
casas a que estava encostado: imediatamente ouviu um tinir de espadas que se
desembainhavam — após isto um gemido longo e fraco, como de pessoa que morre, e
um som, como de espingarda que cai das mãos a alguém: depois disto tudo ficou
outra vez, dentro da casa, no mais profundo silêncio.
Mestre Gil
sentiu então ao longo do espinhaço uma espécie de calafrio, que as crônicas
daquele tempo atribuem a um grande medo, mas que, sem que se vá de encontro à
medicina, se pode atribuir a constipação. Deu um pulo da soleira abaixo; e
quando ia a perguntar aos presentes, se tinham ouvido o mesmo que ele ouvira,
bateu com os olhos em el-rei, que com ar muito sereno e meneios muito devotos
caminhava, levando à direita o duque de Viseu, e à esquerda o conde de
Penamacor. Todos se apinhavam para ver de mais perto el-rei, e o barbeiro não
achou a quem fazer a sua pergunta. Ainda agitado interiormente, desejava
verificar se o tinham ou não enganado os seus ouvidos; mas não achando para
isso maneira, resolveu-se a esperar com paciência que se acabasse a pasmaceira
popular.
Ainda bem
não acertara em tomar tal resolução, quando viu todos os fidalgos do séquito de
el-rei deixarem cair no chão os bastões, que levavam nas mãos, como se a vara
da maga Eutropa lhes tivesse entorpecido os braços. D. João II, lançando em
roda um destes olhares do rei que significam morte, deixou também cair o seu.
Os fidalgos empalideceram; mas já não havia recuar: a um tempo abaixaram-se
para apanhar os bastões: el-rei também se abaixou: ergueram-se; ergueu-se ele.
E com modo tão risonho e tranquilo seguiu avante, que ninguém do povo reparou
naquele sucesso, e até os fidalgos, tomando a si do primeiro espanto, julgaram
que a um acaso devia ele a sua salvação e que o assas sino que lhe devia atirar
não ousara fazê-lo, temendo matar algum deles em vez de matar el-rei.
Porém a
mestre Gil não passou pela malha aquele sucesso: agora entendia completamente o
que lhe dissera Antão de Faria; agora achava a explicação do ruído que ouvira:
o assassino havia sido colhido de salto, e tinha pago com a vida a sua ousadia:
admirava a tranquilidade de ânimo, e a profunda dissimulação de el-rei, que,
apesar das providências dadas, podia ter sido vítima dos seus cálculos
políticos. Incerto sobre se devia ou não comunicar a alguém as suas reflexões,
resolveu-se a guardá-las consigo, lembrando-se das recomendações do camareiro,
e não sabendo se essas reflexões pertenciam ao que o valido não queria que se
dissesse, ou àquilo que ele queria se divulgasse.
Embebido num
mar de incertezas, voltou ao paço e meteu-se no seu aposento: daí a pouco
chegou el-rei, que parecia sumamente alegre. À noite houve sarau; e os fidalgos
foram convidados. Mestre Gil esteve espreitando a uma porta interior, e ficou
espantado de ver as carícias que el-rei fazia ao duque de Viseu, a D. Guterres,
ao bispo de Évora, a D. Fernando de Meneses, e a todos os mais nobres que
tinham deixado cair seus bastões na procissão de corpus.
Acabado o
sarau, cada qual se recolheu à sua pousada. No outro dia, pela manhã cedo,
el-rei partiu para Alcácer.
CAPÍTULO 7: A VOLTA INESPERADA
Do lado da
Landeira entrava por Setúbal uma formosa cavalgada: o calor da sesta era
grande, e os cavaleiros vinham cobertos de suor, e com as armas tão
empoeiradas, que mal se lhes enxergavam as cores. As ruas estavam ermas; porque
era a hora, em que costumamos, nós os Portugueses, repousar depois de comer:
costume santo, que os nossos avós guardavam à risca, e de que já hoje alguém se
envergonha, porque meia dúzia de franchinotes literários, franceses e ingleses,
tiraram daí argumento para nos tacharem de preguiçosos; como se um dia de Verão
da nossa terra fosse o mesmo que é nesses países clássicos dos caramelos, dos
nevoeiros, e dos sapos, por onde eles moram, e donde o sol do meio-dia pudera,
sem grande diferença, vir fazer entre nós as vezes de luar da meia-noite. Foi
pena que a natureza antes de nos ensinar, com o quebrantamento que sentimos
apenas jantamos, a dormir a sesta, não consultasse esses doutores de
além-Pirenéus e além-mar! Haviam de lhe dar bons conselhos.
Como não
seremos nós, os habitantes da Península, uns brutinhos, se até a natureza o é
neste canto da Europa!
Mas o caso
é, que brutos, ou não brutos, os honrados burgueses de Setúbal dormiam a sesta
pela volta das duas horas da tarde de uma sexta-feira, que se contavam vinte e
dois de agosto do ano da redenção de 1484, na ocasião em que a formosa
cavalgada, atravessando parte da vila, veio apear-se à porta do paço. Quando
ela chegou, mestre Gil, a quem Antão de Faria, partindo para Alcácer,
dispensara de acompanhar a Corte, e que neste momento também dormia (era
escusado dizê-lo), acordou sobressaltado com o tropear dos cavalos, e com o
tinir de espadas e esporas, no momento em que toda aquela lustrosa companhia se
apeava. Como qualquer desses viajantes estrangeiros, que vêm dar uma volta pelo
nosso Portugal, e que, metidos dentro de uma caleça, correm as povoações do
reino, e, porque estenderam os seus longos pescoços do norte pelo postigo da
sege, recolhendo-os logo com medo do sol, se julgam com ciência de mais, para
irem escrever parvoíces sobre os nossos usos, costumes, instituições e
carácter, tal mestre Gil, sem se erguer, estendeu a cabeça para uma das fendas
do ripado que dividia o seu aposento do átrio do paço, mirou o tropel, e pôde
enxergar ainda el-rei, que ia subindo as escadas, e atrás dele Antão de Faria,
Diogo de Azambuja, D. Pedro de Eça, Lopo Mendes do Rio, e vários outros
cavaleiros da casa real. Causou-lhe alguma admiração esta inesperada volta, e
ficou extremamente desejoso de saber o motivo dela. Por fim, ainda que com
custo, e depois de se espreguiçar duas ou três vezes, ergueu-se, e saiu a
farejar novidades.
Não achou,
porém, quem satisfizesse a sua natural curiosidade; e tratava de sair, quando,
ao cruzar o limiar da porta principal do paço, topou de frente com Diogo
Tinoco, que naquele momento entrava.
Diogo Tinoco
era um cavaleiro honrado, a quem o bispo de Évora D. Garcia seduzira uma irmã,
rapariga formosa com a qual o muito reverendo prelado vivia escandalosamente.
Desde então o pobre cavaleiro, injuriado na sua honra, tinha jurado vingança.
Não podendo arrostar com o bispo, poderoso pela sua dignidade e família, fingiu
esquecer-se da injúria, e travou falsa amizade com D. Garcia, esperando ocasião
oportuna para desafrontar-se. Esta brevemente apareceu. Resolvidos os fidalgos
a vingarem a morte do duque de Bragança, e a restaurarem as prerrogativas da
nobreza, quase aniquiladas por D. João II, sentaram que o mais seguro meio,
para saírem com o seu intento, era assassinarem aquele príncipe. Um dos
principais conspiradores, abaixo do duque de Viseu, foi o bispo de Évora, que,
fiado na aparente amizade de Diogo Tinoco, lhe revelou tudo. Então o ofendido
cavaleiro viu aparelhada ocasião de satisfazer o seu ódio. Por intervenção de
Antão de Faria, encontrou-se com el-rei no Convento de São Francisco de
Setúbal, disfarçado em hábitos de frade. Ali, debaixo daquelas solitárias
arcadas, ouviu D. João II a sua sentença de morte, e tremeu: não por cobarde;
mas porque lhe parecia ouvir de contínuo a voz do duque de Bragança que o
citava para o tribunal de Deus. Viu que entre ele e a nobreza estava lançada
uma nódoa de sangue, que bradava vingança: era preciso morrer ou matar. Tomou a
sua resolução; e agradecendo a Tinoco o serviço que lhe fizera, com promessas
de grandes mercês, recomendou-lhe guardasse acerca deste caso absoluto
silêncio, e não voltasse a falar-lhe até o dia em que fosse chamado à sua
presença.
Esse dia era
este em que mestre Gil o encontrou à entrada do paço. El-rei o mandara chamar.
— Boas
tardes, senhor Tinoco — disse o barbeiro, fazendo uma grande barretada. — Vós
pelo paço! Há mil anos que vos não via.
— Mestre —
disse Diogo Tinoco, — vou falar a el-rei, que me mandou chamar.
— E não me
sabereis dizer por que Sua Alteza voltou de Alcácer tão de salto, quando
ninguém o esperava?
— Não o sei;
mas o que vos posso dizer é que o chamar-me ele a estas horas é anúncio de
grandes novidades. — E dizendo isto, Diogo Tinoco subiu apressadamente pela
escada acima.
“Anúncio de
grandes novidades?! — rosnou o barbeiro por entre os dentes. — Ora vede o
presumido! Melhor fora que olhasse pela sua irmã, amancebada com um clérigo,
traidor ao seu príncipe, como por aí se diz à boca cheia! Mas chamá-lo el-rei!
Só se for para o incumbir de alguma carta que queira mandar a D. Ana de
Mendonça! Para terceiro ainda...”
Um ruído de
peças de armadura, jogando umas com outras, fez voltar a cara ao barbeiro, e
cortou-lhe no meio o seu solilóquio. Era Fernão Martins que descia ligeiro as
escadas. Assim que chegou ao átrio, chamou um soldado velho da companhia dos
ginetes:
— Vem cá,
Mem Afonso: toma esta carta de el-rei; monta a cavalo, e parte para Palmeia,
onde acharás o duque de Viseu, que esta manhã se foi daqui: não te demores em
entregar-lha; porque el-rei quer falar-lhe, e vê-lo amanhã nestes paços.
O soldado
pegou na carta, montou no seu ginete, e partiu à rédea solta pela estrada de
Palmeia.
— Senhor
Fernão Martins! Senhor Fernão Martins! — gritou um pajem do alto das escadas. —
Sua Alteza vos chama ao seu aposento.
E o capitão
dos ginetes subiu outra vez apressadamente.
— Forte
chamar! — disse o barbeiro, que já levava a mão ao barrete para cumprimentar
Fernão Martins, e tinha a boca meia aberta para travar conversa com ele. —
Parece que el-rei tem medo de estar só! Se o negócio continua a correr deste
modo, até por fim eu sou chamado. Pois hão de achar-me o lugar!
Dizendo
isto, saiu, e a passo cheio se encaminhou para a praça principal, que, naqueles
bons tempos, servia para o mesmo que hoje servem os cafés, bilhares, clubes,
templos do supremo arquiteto, e galerias de cortes — para nela espairecerem
ociosos. Mas, apenas chegou à praça, mestre Gil sentiu mão de ferro que lhe
apertava o coração, e retrogradando, teve de vir encerrar-se no seu aposento.
Não viu por lá viva alma: a praça estava deserta!...
Parecia que
fado avesso — mais avesso ainda do que o de um jornalista — perseguia mestre
Gil. Quase nunca este homem, tão lhano e conversável, achava quem de bom grado
gozasse do seu humano trato. Pelos diferentes capítulos desta história terá
visto o leitor filósofo a verdade desta nossa profundíssima observação.
Se
excetuarmos o dia de corpus, em que ele pôde instruir, deleitando, os seus
admirados ouvintes, empoleirado no degrau de uma porta, nunca encontrava senão
gente apressada, casmurra, e embebida nos seus cuidados, que, ou nenhum cabedal
fazia dos discursos do mestre, ou lhos atalhava voltando-lhe, sem cortesia, as
costas. Se nós fôssemos políticos, quão amargas reflexões não faríamos neste
ponto, vendo extinguir-se, no meio das trevas espessíssimas do décimo quinto
século uma inteligência como a de mestre Gil, que no nosso tão ilustrado e
aproveitado tempo pudera com grande honra sua e proveito da pátria, ter
preenchido os diversos e importantíssimos cargos de vereador municipal, de juiz
eleito, ordinário, ou de paz, de conselheiro de distrito, de jurado, e de
pregador de botequins, com aquele saber, prudência e mais dotes do seu delicado
engenho!
CAPÍTULO 8: DESFECHO
Já na igreja
matriz, e no Convento de São Francisco, tinha corrido o sino da oração, e
desbarretados e de joelhos em terra, os habitantes de Setúbal rezavam
devotamente as ave-marias do estilo: as chaves soavam nos cadeados com que
todas as noites se fechavam as cadeias, lançadas na entrada da Rua dos Judeus:
eram trindades; e da claridade do Sol apenas restava uma vermelhidão no
ocidente. As ruas estavam escuras, e o ruído do trato diário ia-se desvanecendo
no silêncio do repouso noturno, quando à porta do paço chegou um cavaleiro
vestido ao modo da Corte; apeou-se, e entrou. À luz de uma lâmpada que pendia
da abóbada do átrio, e que reverberava seu clarão nos arneses de vários
soldados, que por ali andavam, mestre Gil, que estava em pé à porta do seu aposento,
viu que o recém-chegado era o duque de Viseu. Com efeito ele recebera em
Palmeia o recado de el-rei, e, bem que a sua consciência lhe inspirasse receios
acerca daquele súbito chamamento, todavia viera, por se temer que,
desobedecendo, desse a el-rei os necessários meios de o acusar de rebelde, e de
o fazer condenar legalmente.
Quando o
duque entrou, Fernão Martins se encaminhou para ele e lhe disse:
— Senhor
duque, sejais bem-vindo: Sua Alteza vos aguarda.
— Estando em
Palmeia, aonde fora ver minha mãe — disse o duque, — recebi o recado de el-rei,
e sem demora me pus a caminho: agora aqui me vedes pronto a cumprir seus
mandados.
Ditas estas
poucas palavras, os dois subiram acima, indo adiante o duque, e após ele o
capitão dos ginetes.
Um lanço das
casas de Nuno da Cunha, que serviam de paços reais, quando el-rei pousava em
Setúbal, dava para a praia do mar. Debaixo de um horizonte profundo e escuro,
via-se faiscar a ardentia das águas, e o clarão de algumas salas, iluminadas
pela luz pálida de tochas, batia através das vidraças pintadas, e prolongava-se
em cores cambiantes e incertas pela extensão do areal, e sobre os brancos rolos
de escuma, que vinham deslizar na margem. Ou porque a alma de mestre Gil
tivesse alguns laivos de poesia, ou porque, tendo dormido a maior parte do dia
antecedente, até el-rei chegar, e também boa porção daquele, não sentisse
inclinação a ir deitar-se tão cedo, a amenidade da praia erma o atraía:
carregando, pois, o barrete na cabeça, saiu, e encaminhou-se para lá.
Fizera
apenas alguns giros, quando erguendo casualmente os olhos deu com eles na
janela do aposento, que servia de guarda-roupa a el-rei: as vidraças estavam
abertas, e mestre Gil viu dois vultos, que pareciam, pelo seus meneios,
altercar um com outro: excitada a sua curiosidade continuou a olhar: os dois
vultos se aproximaram da janela, e continuaram a falar, cada vez, segundo
parecia, com mais veemência: um deles, por fim, ergueu o braço, e mestre Gil
viu descer, como relâmpago, o brilho de um ferro: o outro vulto estendeu os
braços como quem buscava apoiar-se: o ferro que estava na mão do primeiro
cintilou mais vezes: naquela luta os dois vultos afastaram-se da janela; e daí
a pouco, apenas a sombra de um deles batia na parede alvíssima do aposento, que
ficava fronteira ao balcão, por onde mestre Gil presenciara aquela cena
terrível e misteriosa!
O barbeiro
deu um grito de horror: mas a sua voz não foi ouvida: o suor caía-lhe em bagas
da cara; e trémulo voltou para o paço. Os espingardeiros da guarda passeavam
tranquilamente, com os seus arcabuzes ao ombro: os soldados de cavalo estavam à
porta com as espadas na mão: parecia que nenhuma novidade ocorrera.
Apenas,
porém, mestre Gil entrou, viu Fernão Martins, descendo de um pulo as escadas,
chegar-se aos soldados que estavam a cavalo, e dizer-lhes:
— Ide sem
detença: fechai as portas da vila: ninguém deixeis sair, sem ordem escrita de
el-rei. Ginetes da guarda, a cavalo!
Dentro de
alguns credos toda a companhia dos ginetes estava em ordenança em frente do
paço: na retaguarda deles se formaram os besteiros e espingardeiros.
Fernão
Martins falou com os anadéis da gente de pé: ninguém ouviu o que lhes disse;
mas eles foram correndo as fileiras e tirando do grosso das companhias alguns
troços de soldados, que partiram para diversos lados: o resto da gente ficou
encostada às armas atrás dos ginetes.
Posto que
cheio de horror pela cena que ainda havia pouco presenciara, tão alto bradou a
curiosidade ao coração de mestre Gil, que ele não lhe pôde resistir: atravessou
o átrio, e saindo do portal, correu ao longo do muro por detrás dos soldados
enfileirados. Felizmente topou numa das alas pessoa conhecida. Jaime de
Figueiredo era um anadel, amigo velho de mestre Gil, falador, maldizente, e
mandrião como ele, mas excelente homem. Apenas o barbeiro o conheceu pela voz e
pelo vulto, foi-se chegando a ele, e bateu-lhe no ombro: voltou-se o anadel com
algum despeito; mas ele desapareceu apenas viu que era o seu honrado, ou
ilustre amigo, o barbeiro da Corte.
— Oh, sois
vós, senhor Gil — disse ele em tom festivo. — Bem longe estava de vos esperar
aqui: fazia-vos a dormir o sono regalado, que nunca Deus deu a um pobre anadel.
Eis a nossa vida! Nem de noite nem de dia! Se soubesse latim, ou, ao menos, ler
e escrever, atirava ao diabo com esta couraça, e ia-me meter frade: que antes
quisera os escárnios dos jograis e truões do paço, do que o servir el-rei.
— Tal não
digais, senhor Jaime — interrompeu o barbeiro, a quem a velocidade de língua do
anadel começava a impacientar, — por honrados se dariam muitos cavaleiros de
grande linhagem se fossem anadéis, como vós, dos espingardeiros da guarda, gênero
de milícia que, ainda me lembra, e não sou velho, era ainda bem rara em tempo
do infante D. Pedro...
— Sim,
mestre — atalhou o anadel, — esse que os enredos dos fidalgos conduziram a
vergonhosa morte, e cujo sangue cai agora sobre as cabeças dos filhos dos seus
assassinos: o duque de Bragança, porventura, subindo ao cadafalso, não fez mais
do que pagar uma dívida da sua casa: o mesmo irá sucedendo aos outros: a
justiça de Deus não dorme; e o pior é que por amor dela, também nós não
dormimos.
Como a
criança, que, correndo atrás da variegada borboleta, fez dois ou três
ziguezagues inúteis, e a veio por fim a colher, para, e sorri contente, nem
mais a larga da mão, sem examinar, lista por lista, cambiante por cambiante, as
cores do formoso inseto, assim mestre Gil, vendo aparelhado a oportunidade de
fazer perguntas, talvez indiscretas, ao loquaz anadel, tomou-lhe logo a mão,
ouvindo aquelas finais palavras, e com toda a manhosa simpleza de um barbeiro,
e barbeiro cortesão, disse:
— Nunca mais
eu torne a ver a minha pobre Brásia (santa mulher) se vos percebo. Não dormis
por causa da justiça de Deus? Que tem Deus com estardes de noite aqui, em
ordenança, como cavalgada prestes a dar em aduares de mouros?
— Cá me
entendo! Cá me entendo! — disse o anadel. — Se não fosse o haver-nos Fernão
Martins encomendado segredo, dir-vos-ia que muitos fidalgos também esta noite
não dormirão repousadamente, salvo um que fez a cama no guarda-roupa de el-rei.
Mestre Gil
viu que o anadel aludia à coisa que ele mais desejava saber: o mistério
horrível que presenciara da praia. Conhecia o gênio de Jaime de Figueiredo, que
para revelar o maior segredo não precisava senão da mínima contradição, ou de
ver que desse segredo se fazia pouco cabedal. Foi por este lado que mestre Gil
o levou.
— Histórias,
histórias, senhor anadel! Bem importa aos fidalgos que vós pouseis ao relento:
nos seus finos lençóis não curam dos vossos incômodos. Estava capaz de dizer
que tudo isto foi por causa das visões de el-rei, que depois da morte do duque
de Bragança sempre anda a sonhar com almas do outro mundo... Mas é tarde; e
como eu nem vejo medos, nem sou da guarda de el-rei, recolher-me-ei, que são
horas.
— Alto lá,
mestre Gil — atalhou o anadel, — el-rei não teve visões, mas teve um ferro para
punir a traição.
Sabei também
que se nós aqui estamos ao relento, nem o soberbo D. Fernando de Meneses, nem o
parvo de D. Guterres, nem os Albuquerques, ou os Ataídes, ou Fernão da
Silveira, dormirão mais do que nós. El-rei os mandou prender, e ai deles! Não
foi mentira o que se disse na procissão de corpus: quiseram matar seu rei:
agora morrerão eles. Sabei, enfim, que lá em cima...
A voz de
Fernão Martins, que falava com um vulto, saindo da porta do paço, cortou o
discurso do anadel, que semelhante a torrente que arromba os diques, e se
espraia pelas campinas, ameaçava o curioso mestre Gil de lhe fazer pagar cara a
sua curiosidade.
— Ireis ao
castelo de Palmeia, senhor bispo — dizia o capitão dos ginetes à personagem que
com ele vinha, e que não era nada menos do que D. Garcia de Meneses. — Lá
aguardareis as ordens de el-rei. Cavalgai naquela mula que ali está ajaezada.
Dez ginetes da ala direita acompanhem o muito nobre senhor D. Garcia até
Palmeia! Soldados, as vossas cabeças cairão se tiverem orelhas para ouvirem
promessas da sua reverência; as vossas mãos serão decepadas, se as folhas das árvores
sentirem, por essa estrada, tinir o seu ouro dentro das vossas manoplas.
— Prender um
ungido do Senhor na câmara da rainha! Por nele mãos violentas diante da sua
Alteza, quando ela tratava comigo de casos de consciência! Rei tirano! Novo
Acabe! Anathema sis.
Feita esta
exclamação, o bispo montou na mula, e rodeado por dez ginetes da guarda, partiu
pela estrada de Palmeia. Era a última viagem que fazia neste mundo: passados
alguns dias um pouco de veneno o levou ao sítio para onde todos nós caminhamos,
e donde ninguém ainda voltou — para o cemitério.
Depois que
partiu a cavalgada, vários troços de besteiros, espingardeiros e ginetes
começaram a chegar. Conheceu distintamente o barbeiro que entre eles vinham
presos D. Fernando de Meneses e D. Guterres.
Acompanhados
por Fernão Martins, subiram a cima, e os soldados entraram nas suas respetivas
fileiras.
Mestre Gil
tinha-se retraído até à porta, sem se despedir do anadel, que entrara no seu
posto, logo que ouvira a voz do capitão dos ginetes; e tudo tornava a entrar no
mais profundo silêncio.
De repente o
tropear de um cavalo, que corria à rédea solta, se veio aproximando: era um
cavaleiro da guarda que chegava; mestre Gil, cujo vulto mal se via ao clarão da
alâmpada, perguntou:
— Que novas,
cavaleiro?
O
recém-chegado tomou-o por um pajem:
— Pajem, ide
dizer ao capitão que D. Pedro de Ataíde vai fugindo, segundo parece, caminho de
Santarém, e que Fernão da Silveira não se encontra em casa de João de Pegas:
dizei-o só a ele ou a el-rei em pessoa.
Pronunciadas
estas palavras partiu a todo o galope.
O mestre
ficou enleado. Não sabia como daria o recado de que fora incumbido: Fernão
Martins não estava ali. “Vou dizê-lo a el-rei. E por que não? Que me pode
acontecer? A nova é de grande monta; e isso me parece mais prudente.”
Enchendo-se, enfim, de ânimo, subiu as escadas. Ao entrar naquelas salas mal
iluminadas e desertas, as pernas lhe tremeram um pouco; mas já não havia
recuar: chegou ultimamente à quadra, onde os moços da câmara estavam imóveis,
como estátuas, e em grande silêncio. Viram entrar o barbeiro; e um deles o veio
receber cortesmente: mestre Gil era respeitado no paço, não só por ser homem
bondoso; mas porque Antão de Faria parecia estimá-lo muito. O que o viera
receber perguntou-lhe em voz baixa:
— Que
pretendeis, mestre Gil?
— Qué... qué...
ro fa... lar a el-rei — disse mestre Gil, balbuciando.
— Levarei o
vosso recado: tomai então fôlego; que de cansado parece nem podeis falar. —
Dizendo e fazendo, o moço da câmara entrou. Dentro de curto espaço voltou, e
erguendo o pano da porta, pronunciou pausadamente estas palavras: — Mestre Gil,
concede-vos Sua Alteza a graça de vos escutar.
Alguns dos
pajens, que por ali estavam, e que tinham dado suas risadinhas maliciosas
quando ouviram a pretensão do mestre, ficaram espantados de que em tão críticas
circunstâncias ele fosse com tanta facilidade admitido à presença de el-rei, a
quem, muitas vezes, em horas mais desassombradas e tranquilas, cavaleiros
afamados não alcançavam falar. Eram pajens; e os pajens naquele tempo, por
muito crianças, não tinham experiência do mundo. Não se lembravam de que mestre
Gil era o barbeiro de Antão de Faria, e que pelos paços valia mais (já se sabe,
naqueles tempos) quem cortava as barbas ao privado, do que quem tinha decepado
a cabeça a alguns inimigos da pátria.
Mestre Gil
cruzou a porta, donde lhe falara o moço da câmara: com passos vagarosos e
incertos atravessou duas salas, e chegou, enfim, ao aposento onde estava
el-rei. O barbeiro sentiu curvarem-se-lhe os joelhos: era aquele aposento o que
servia de guarda-roupa, e onde, havia pouco, se passara a cena misteriosa, que
o mestre observara da praia.
El-rei
estava sentado numa cadeira de espaldar: aos lados, de pé e descobertos, D. Pedro
de Eça, Diogo de Azambuja e Lopo Mendes do Rio. Por detrás do espaldar, estava
Antão de Faria, como camareiro de el-rei. Perante este, manietados, viu o
barbeiro a D. Guterres e a D. Fernando de Meneses; mas não enxergou Fernão
Martins, que, em pé, e encostado à sua comprida espada, estava a um canto do
aposento.
— Que me
quereis, mestre Gil? — disse el-rei ao barbeiro, com um metal de voz adocicado,
como o miar de um gato, quando quer pilhar a alguém um bocado de pão.
— Senhor; um
cavaleiro da guarda dos ginetes me deu um recado para dar a Vossa Alteza em
pessoa, ou ao capitão Fernão Martins, e como não achei este, vim...
O mestre
olhou, neste ponto, para as diversas personagens que ali estavam; e porventura
no seu rosto havia tão vivos sinais de temor, que el-rei, sorrindo, lhe disse:
— Não tendes
que temer: falai desassombradamente: os traidores foram colhidos. “Si Deus pro nobis, quis contra nos?” (Se
Deus é por nós, quem prevalecerá contra nós?)
— Disse o
cavaleiro — prosseguiu mestre Gil — que D. Pedro de Ataíde fugira pela estrada
de Santarém...
Os olhos de
el-rei chamejaram como os de um tigre pelas trevas da noite:
— Que o
sigam já, Fernão Martins! Que o sigam: e cem cruzados de ouro ao primeiro que
lhe puser a mão, ou a ponta da lança!
Fernão Martins
saiu; e os sons amiudados dos seus sapatos de ferro retiniam cada vez mais
rápidos e frouxos, através das salas lajeadas, por onde mestre Gil entrara.
Este continuou:
— Fernão da
Silveira também não aparece em casa de João de Pegas.
— Lá deve
estar, que o sei eu — atalhou el-rei, cada vez mais colérico. — Antão de Faria,
quem salva traidores é traidor como eles. A cabeça de João de Pegas seja
fiadora da de Fernão da Silveira.
E Antão de
Faria saiu a dar ordens, e voltou imediatamente.
D. Fernando
de Meneses estava com ar altivo; D. Guterres, pelo contrário, parecia entregue
à mais viva aflição; e mestre Gil, perto deles, com a boca meia aberta, e os
olhos espantados, poderia passar também por um dos criminosos, se não tivesse
os pulsos livres de cadeias.
— Cavaleiros
revéis — disse el-rei aos dois presos, com voz terrível, apontando para um
vulto que jazia no meio da casa, um pouco para o lado da janela, — vosso cabeça
aí jaz. Descobri-o, Antão de Faria. Que por ele entendam a sorte que os
aguarda.
O camareiro
ergueu o pano, e amostrou um cadáver: tinha os olhos abertos e envidraçados:
dos cantos da boca, onde lhe alvejavam os dentes cerrados, lhe desciam para as
faces dois fios de sangue coalhado. No pescoço, e no peito, se lhe viam largas
feridas, e sobre uma, que parecia lhe atravessava o coração, tinha apertada a
mão direita, como quem buscara no último arranco suster a vida que por ali
fugia. Era o morto o duque de Viseu!
— Foi
assassinado! — exclamou D. Fernando de Meneses com indizível desesperação.
— Antes que
eu o fosse, dom traidor — atalhou el-rei, com uma voz de trovão.
— Assassino!
— replicou D. Fernando. — Assassino cobarde! Tiraste a vida ao duque de
Bragança, sem prova, mas com juízes; a este sem uma, nem outra coisa. Daquele
foste o aguazil; deste o algoz. Só te faltam D. Manuel e o próprio filho, para
que o teu querido D. Jorge, o teu bastardo, o filho de D. Ana de Mendonça, suba
ao trono! Sabe, porém, que quem derrama o sangue dos seus é, como Caim,
amaldiçoado de Deus e dos homens.
Dizendo
isto, o cavaleiro deu alguns passos, ajoelhou, e beijou a mão do cadáver.
— Ao
cárcere! — gritou el-rei. — E que amanhã seja justiçado na praça de Setúbal.
— Mata-me
tu, homem vil; que eu morrerei contente onde o duque meu senhor acabou: por ti
o mister de algoz ficará ainda mais desonrado do que é.
El-rei
soltou uma risada trémula e infernal.
— Perdão,
senhor — exclamou D. Guterres, arrojando-se aos pés de D. João, — que não fui
tão culpado!
— Indigno! —
replicou el-rei. — Foste valente de língua antes do perigo: nele, és fraco de
coração. No castelo de Avis aguardarás tua sorte. Ah, senhores fidalgos —
continuou ele, dando segunda risada, — eu vos era pesado neste mundo; veremos
se a terra vos é mais leve! Que se faça quanto antes o processo a D. Álvaro de
Atai de e a Pero de Albuquerque. Estes, levai-os daqui; e que venham essas
andas.
Os três
cavaleiros que estavam ao lado de el-rei saíram com os presos, e passado um
momento, quatro besteiros entraram com umas andas. El-rei lhes acenou que
pusessem dentro delas o cadáver do duque, e disse:
— À igreja
matriz! Onde, sobre um cadafalso, esteja amanhã exposto aos olhos de todos,
para que nele se veja que sei castigar os crimes.
“Oh! —
continuou el-rei, virando-se para o barbeiro, — vós, senhor mestre, que fazeis
ainda aqui?
Estava tão
horrorizado mestre Gil, que julgava ter os membros inteiriçados; mas estas
palavras de el-rei (nunca ele soube bem como) o puseram à porta do seu
alvergue, onde toda a noite lhe parecia ver tais visões, que só pela madrugada
se atreveu a apagar a luz.
Na manhã
seguinte, a horas de missa, o povo que foi à matriz viu no meio da igreja,
sobre um cadafalso, o cadáver do duque de Viseu, senhor de Beja, oitavo
condestável do reino, irmão da rainha, e primo de el-rei, com o rosto descoberto,
e dez feridas mortais. E ninguém se atreveu a fazer-lhe sequer uma aspersão de
água benta! Fora el-rei quem o assassinara!
Também lá
esteve mestre Gil: depois de ouvir missa saiu da igreja, e chegando à Rua da
Anunciada viu que no sítio onde os fidalgos tinham deixado cair os bastões, na
procissão de corpus, estava mudada a verga de uma porta: era perto daquela onde
ele assistira à solenidade. A nova verga tinha no meio uma cabeça esculpida,
com uma lenda em latim, e na quina da mesma casa tinha sido removida de fresco
uma pedra, e substituída por outra, em que avultavam três cabeças: os que
passavam paravam para ver aquela novidade; porque na véspera à tarde ainda ali
nada havia. Um clérigo, que chegara, lia casualmente a lenda em voz alta,
quando o barbeiro se aproximou:
Si Deus pro nobis, quis contra nos?
A mestre Gil
pareceu ser isto o mesmo que ouvira a el-rei na noite antecedente. Afastou-se
dali com passos vagarosos, e rosnando com os seus botões:
“Bem dizia
eu há três anos, em Évora, na minha loja, que a Antão de Faria não caíam as
coisas em saco roto, e que o futuro mostraria muitas coisas.”
O monumento
que mestre Gil viu, ainda hoje quem quiser o pode ver em Setúbal, e ouvir
acerca dele as tradições populares.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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