6/13/2019

Três meses em Calicute (Conto), de Alexandre Herculano




Três meses em Calicute
(A primeira crônica dos Estados portugueses da Índia: Ano 1498)
 
CAPÍTULO 1: O QUARTO DA MODORRA 
Vasco da Gama tinha atravessado o golfão, que divide a África Oriental da costa da índia, e havendo-se demorado três meses em Calicute, voltava para Portugal, deixando descoberto o Oriente.
Era na noite imediata àquela em que a frota levantara ferro da enseada de Calicute: apenas soprava um bafo de terrenho, que de dia cessava inteiramente, ou saltava do lado do mar. A nau capitânia, o São Gabriel, aproveitando o vento, seguia viagem ao longo da costa, e o São Rafael e o Bênio iam na sua esteira.
Ao sair de Calicute, obra de setenta barcos tinham vindo em som de guerra cometer a armada: alguns tiros de bombarda e uma trovoada, que deu sobre eles, os fez recolher para terra: mas algum novo insulto podia ser tentado pelos mouros de Calicute, conspirados contra os portugueses: Vasco da Gama ordenara portanto a maior vigilância a bordo de todos os navios.
Chegava o quarto de modorra: a brisa da terra soprava levemente, e apenas se ouvia o murmúrio das ondas fervendo debaixo das proas, o sono começava a querer cerrar as pálpebras dos homens de quarto da nau S Gabriel. Vigiavam então, entre outros, o intérprete Fernão Martins, Álvaro de Braga, João de Sá, Álvaro Velho e um marinheiro chamado Gonçalo Pires, criado do capitão-mor.
— Ora sus! — disse Álvaro de Braga. — Olhai por vós se dormis! Pode erguer-se o capitão-mor de súbito: e não quero eu estar-vos na pele, se vos achar descuidados.
— Bofé que al podemos nós fazer — disse Gonçalo Pires — cortados como andamos do cansaço e trabalho? Se os mouros ou os cristãos da terra vierem nas suas barcas, não estão as bombardas quebradas, e far-lhes-emos um bom convite: medo não tive eu a essa gente, quando lhes estávamos nas mãos; menos lhes terei agora, que temos aí para os servir boas panelas de pólvora.
Audaces fortuna juvat. A fortuna socorre os ousados — disse Fernão Martins, que, como intérprete e sabedor de línguas, citava muitas vezes latim e árabe, tendo contudo o costume de traduzir logo os seus textos em português corrente, prenda ainda hoje raríssima em pessoas atreitas a citações.
— A nau aguça de ló — gritou Pero de Alenquer, que tinha estado até então encostado à amurada com os olhos cravados no céu. — Arriba para o mar! Pode por barlavento jazer alguma restinga; que estes mares não têm os parcéis arrumados.
Estas palavras do piloto-mor afugentaram por um pouco o sono dos olhos dos marinheiros; e enquanto os homens do leme faziam arribar a nau, ouvia-se-lhes o rumor dos passos que davam passeando ao longo do convés.
No chapitéu de ré estava sentado uma espécie de cavalete, sobre o qual havia um instrumento, misterioso ainda para a chusma da nau, com o qual, diziam Vasco da Gama e Pero de Alenquer, arrumavam as alturas e ousavam navegar ao largo: era um astrolábio. Muitos haviam aí, que viam neste instrumento, obra de dois judeus e de um boêmio, uma invenção diabólica; mas os marinheiros entendidos e velhos riam-se desta superstição da chusma.
Como na bitácula estava acesa uma candeia, e no convés não havia outra luz, os homens do quarto que não estavam de vigia no castelo de proa foram subindo ao da popa e se sentaram entre o astrolábio e a bússola, para que o reflexo da luz os conservasse despertos.
— Parece-me — começou Álvaro de Braga — que voltaremos a Portugal, se a Deus aprouver, sem mais ouvirmos ladrar estes cães de Calicute. — E dizendo isto se sentava, e ao pé dele os outros que debalde pretendiam resistir à modorra de antemanhã.
João de Sá, que até aí estivera calado, sorriu-se e disse:
— Com razão chamais vós cães a essa canzoada de Calicute, que tantas perrarias nos fizeram. Bastava o terem-vos feito adorar diabos, metendo-vos em cabeça que eram santos. Ao menos nessa não cri eu, apesar da devoção do capitão-mor.
Pronunciando estas palavras, João de Sá dava mostras de ufania por ter sido mais esperto do que os seus companheiros, mais manhoso do que o mesmo Vasco da Gama. As suas palavras, nestes tempos de crença viva, eram um epigrama demasiado pungente para os que tinham ido a terra: e a maior parte dos que se achavam junto dele eram deste número.
— Por minhas barbas — disse Álvaro de Braga — que vós sois matreiro: mas porventura não melhor cristão do que essa gente! Com que, dom sandeu, já vos parece adoração do diabo o adorar a Virgem Maria e os santos, o tomar água benta e o receber a cinza dos mortos?
— Em verdade — replicou João de Sá; — porque ouvistes falar em Maria, crestes logo que era a Virgem; porque vistes meia dúzia de demônios pintados pelas paredes com muitos braços e grandes dentes, tiveste-los em conta de santos; a uma pouca de água sem sal chamastes água benta, e um pouco de barro, que vos deram para por na testa, tomaste-o por cinza de defuntos! Eu serei sandeu, mas certo que aí há quem o seja mais do que eu o sou.
Fernão Martins abanava a cabeça em ar de quem aprovava o dito.
— Serão cristãos — disse por fim, — mas também eu não o creio. Credat judeus apella; non ego. Creia-o o judeu; não eu.
Voltando-se então para João de Sá e para Fernão Martins, Álvaro Velho fez sinal com a mão de que pretendia falar: ele fora um dos que em terra nunca se afastaram de Vasco da Gama; passava além disso por discreto e observador; e a privança e entrada que tinha com o capitão-mor lhe dava certa consideração entre os restantes marinheiros. Todos esperavam pelo que diria, com o silêncio da curiosidade, e porventura da cortesia.
— Se vós tivésseis atentado pelo que vistes, como eu atentei; se tivésseis conversado os naturais, como eu conversei, teríeis melhor julgado dos seus costumes e da sua fé. Ainda que afastados da pureza da nossa religião, não deixam por isso de ser cristãos. Afora os sinais da boa crença que todos vimos nos seus templos, os quafes ou sacerdotes me falaram da Trindade, e em si traziam os emblemas dela. Muitos me asseveraram que, além de Calicute por nossa popa, ficam muitos e poderosos reinos que seguem a fé cristã. Isto tudo notei no livro, em que já tenho escrito o processo desta viagem.
As notícias que Álvaro Velho dizia ter escrito derivaram para outra parte a atenção dos que o escutavam: a questão da crença dos índios esqueceu; e houve um momento de silêncio: mas este silêncio não era o de homens sonolentos. A relação da viagem que Álvaro asseverava ter traçado erguia nestas almas de bronze todas as recordações de ufania pelos trabalhos passados, porém não sem um leve estremecimento pelos do futuro; porque os mares já cruzados se haviam de cruzar de novo, de novo se haviam de montar cabos, esquivar parcéis, lutar com tempestades e correntes, tratar bárbaros da África, e desfazer seus ardis inimigos. Entretanto a bordo das naus a doença diminuía as forças, a morte diminuía os braços. Estes pensamentos que lhes quebrantavam o ânimo, não lhes matavam, contudo, no coração o sentimento de que, levando a cabo esta empresa, que devia mudar a face da Europa, o seu nome seria eterno e glorioso. Aqueles rudes marinheiros eram felizes, porque tinham a consciência da imortalidade.
— E que pretendeis vós, Álvaro Velho, fazer do livro que escrevestes desta viagem? — perguntou Fernão Martins.
— Dá-lo-ei a Sua Alteza, se chegar a Portugal: o capitão-mor me prometeu fazer com que el-rei o mande trasladar por aquela arte maravilhosa de que se serviram para copiar esses livros da Vita-Christi, que aí trazemos, os mestres imprimidores Nicolau de Saxônia e Valentim de Morávia: oxalá eu o veja: e ficarei pago de todos os meus trabalhos!
Era uma alma generosa, e o gênio de um historiador, que a Providência tinha sumido na cara queimada e severa do pobre marinheiro.
— Para afugentar o sono — prosseguiu o intérprete — bom seria que vós nos lêsseis alguma coisa do vosso roteiro: por exemplo, o que reza da nossa estada em Calicute. Nós outros poderemos talvez — acrescentou sorrindo-se — notar alguma coisa em que vos enganásseis. Recideret one quod ultra perfectum traheretur. Poderemos fazer a poda a tudo o que for de mais.
— Maldita língua! — rosnou Álvaro de Braga. — Capaz és tu de nos matar com latins de frades; mas nas grandes pressas, nem te chegas para alar um cabo! Aposto que o cão há de querer trasladar nessa aravia de romãos o roteiro de Álvaro Velho, para ir ao reino fazer com ele grandes biocos ao parvo de Duarte de Resende, o latino?
Enquanto, em voz baixa, Álvaro de Braga escarnecia do latim e do intérprete, Álvaro Velho tinha entrado no castelo de proa, e, depois de breve demora, saiu de lá com um rolo de papel na mão. Sem dizer palavra, sentou-se ao pé da bitácula; os outros apertaram o círculo; e ele, depois de folhear com as mãos calosas aquelas páginas cobertas de garatujas, que hoje fariam suar um paleógrafo experimentado, começou do seguinte modo a sua leitura.

CAPÍTULO 2: A LEITURA
Com vento em popa navegávamos nós havia vinte e três dias, desde que nos partimos daquele excelente mouro, que (sem receio posso dizê-lo) nos abriu as portas do Oriente. Era um sábado à tarde: a bordo do São Gabriel tudo estava quieto e silencioso, e no chapitéu de popa conversavam em voz baixa, encostados a uma meia espera de bronze, Vasco da Gama e Pero de Alenquer: a marinhagem repousava das suas fainas: e o mestre passeava no convés pelo lado de bombordo. Com os olhos longos vigiávamos alguns à proa; que já nos tardava enxergar terra, e pôr termo à nossa espantosa viagem.
Canacá, o piloto cristão da índia, que nos dera o rei de Melinde, encostado ao leme da nau parecia inquieto: ora erguia os olhos ao céu; ora os fitava em nós; enfim disse a Fernão Martins na sua algaravia, que nos perguntasse se víamos alguma coisa no horizonte...
— Alto lá, senhor Álvaro Velho! — atalhou Fernão Martins. — Não foi na sua linguagem que ele mo perguntou, com alegria; mas em pura aravia; e importa sabeis que a aravia se distingue da língua da Índia como o português da fala dos Ingleses...
O bom do trugimão ia aqui fazer uma dissertação acerca das diversas línguas, tal que se ele a continuasse, e alguém a pudesse escrever, teríamos uma obra, que deixaria no escuro o Mundo Primitivo, de Court de Gebelin: mas um longo ciô! saído ao mesmo tempo da boca de todos os ouvintes, lhe deu um ponto na boca; bem como uma risada geral da plateia faz emudecer no tablado o ator que dispara aos espectadores uma asneira inesperada, ou sua, ou do abrilhantador da cena, a quem o vulgo na sua língua grosseira, mas castiça, chama autor da comédia.
Álvaro Velho continuou a sua leitura:
A esta pergunta de Canacá todos nós alongamos os olhos pelo horizonte, e no termo dele, pela nossa proa, nos pareceu divisar uma nevoazinha que gradualmente crescia, engrossava, e enegrecia: era essa névoa incerta a nossa esperança, mas esta se desvanecia quando nos lembrávamos que havia três dias que, de hora a hora, de instante a instante, ilusões semelhantes vinham afigurar-nos próximas essas praias, aonde iam bater todos os nossos desejos, constância e trabalhos; essas praias da índia, cujo nome era para nós como um primeiro amor, como um sonho formoso de madrugada, como um eflúvio do paraíso; rico de futuras grandezas, para nós e para o velho Portugal: ainda no dia antecedente tínhamos visto uma sombra semelhante no horizonte; mas ela não deixara de o ser; e ao por do Sol se havia resolvido em nada. Descorçoados, pois, e com os olhos pregados no extremo dos mares azuis, não respondíamos nada à pergunta do piloto índio.
"Terra!” — bradou o gajeiro imóvel no cesto da gávea.
A nuvenzinha crescera lá no extremo horizonte. Prolongava-se para os lados como uma barreira que cercava por aquele lado: a nau surdia sempre avante; e por fim quaisquer olhos inexperientes poderiam conhecer a proximidade de um continente extensíssimo. Um aguaceiro pesado no-lo veio encobrir quando dele estávamos distantes obra de oito léguas. O Sol, vermelho e já sem brilho, parecia dançar sobre as águas, lá no fundo do ocidente, e a escuridão, que do oriente nos vinha, se tornava cada vez mais densa, com as nuvens acasteladas, que derramavam torrentes de chuva sobre a nossa pequena armada.
Era necessário virar de bordo: fora perigoso entestar com a terra, onde no meio das trevas, os navios se podiam fazer pedaços: a um sinal do mestre da nossa nau os marinheiros correram aos seus misteres: a nau endireitou para o su-sueste; e dentro de pouco tudo entrou no silêncio.
Que noite aquela! quão longa nos pareceu! Semelhantes ao árabe, de que falam as trovas mouriscas, que, abrasado de sede no meio dos seus pátrios areais, crê ver em distância um lago abundante, que apenas é um reflexo mentido do Sol, assim nós, no sonhar de noite profunda, afigurávamos na nossa imaginação estar já pousados na terra que víramos ao longe, e transportávamos para esses países desconhecidos o nosso Portugal: eram os seus montes, os seus vales, as suas plantas e frutos, as suas cidades e aldeias, que lá plantávamos: era o trajo, o gesto, a linguagem dos Portugueses, que lá víamos e ouvíamos: e despertávamos depois; e achávamo-nos pelos recantos da amurada, com a cabeça encostada a uma bombarda fria e negra, ou a um cabo de amarra, quase como ela duro e frio, sentindo o balouçar da nau, e o soido das águas roçando rápidas pelo costado dela, e o fragor dos marulhos saltando pelos escovéns da proa. Tornávamos a adormecer, e logo a despertar; e assim coávamos esta noite que parecia não ter fim. Ao toque de alvorada ninguém estava deitado: subimos ao convés, e um espetáculo, qual nunca peregrino viu, nem sequer febricitante sonhou nos seus desvarios, estava diante de nós!
Corríamos com vento fresco ao longo da costa: montanhas altíssimas, que a vão acompanhando, sobranceiras a ela, de norte a sul, e que depois soubemos se chamavam as serras de Gate, campeavam ao longe cobertas de nuvens, refletindo a claridade da manhã com uma cor azulada: por entre arvoredos alvejavam as povoações marítimas, e reflexos metálicos que vinham ferir nossos olhos nos certificavam de que aí havia coruchéus e tetos cozidos em ouro. O Oriente nos aparecia, enfim, semelhante à imagem que já em Portugal se nos representava desse país de maravilhas.
Canacá nos apontou para terra e bradou: “Calicute! Calicute! ” Estávamos a curta distância da praia, e víamos quebrar nela os grossos rolos das vagas. Três povoações jaziam lançadas naquela costa: Calicute, Capocate e Pandarane: o piloto tomara a segunda pela primeira, e só soubemos que se enganara, quando já tínhamos lançado ferro. Víamos ao norte Calicute, Pandarane nos ficava ao sul; diante de nós estava a povoação de Capocate.
Quatro barcas desaferraram de terra e vieram abordar às naus. Os homens que as guarneciam nos encheram de espanto; que em toda a nossa derrota nenhuns semelhantes encontráramos: alguma parecença tinham com Canacá; mas este, segundo o que nos dissera, nascera muito ao norte da índia, e o seu gesto se diferençava muito da gente que ora víamos: a cor destes era baça: nus da cinta para cima o sol lhes havia crestado o corpo, e lho tornara ainda mais baço: longos bigodes pendiam pelas faces abaixo de alguns: estes traziam a cabeça rapada, ou tosquiada, descendo-lhes do alto dela uma longa e delgada trança: um ou dois vimos de cabelos e barbas crescidas, mas a causa desta diferença não a pudemos entender.
Estávamos como pasmados. Alguns destes homens subiram ao convés do São Gabriel, e Canacá lhes falou: eram pescadores, gente pobre, ou mesquinha, como na sua linguagem lhes chamam...
— E de que vós nas vossas disputas tão a miúdo vos servis para chamardes uns aos outros vis refeces — atalhou Fernão Martins, que não tinha ânimo para perder vez de fazer observações filológicas. — Grande depravação espero eu traga aos nossos bons costumes este descobrimento da índia; porém não é esse o maior mal: o grande, o grandíssimo, o que me faz tremer é que o trato com estas nações bárbaras venha a corromper a formosa linguagem portuguesa.
Os presentes, que nada entendiam de primores de língua, sorriam-se das reflexões de Fernão Martins; e até se ouviram em voz baixa estas palavras, que pareciam pronunciadas por entre dentes, cerrados pela cólera:
— Mesquinho língua, quando irás tu para o inferno!
O intérprete ia responder ao mal ensinado que assim o tratava; mas um segundo “chiu!” geral fê-lo calar, e Álvaro Velho continuou:
“Por estes homens é que soubemos qual daquelas povoações era Calicute: compramos-lhes algum pescado, e por fim foram-se embora: nós então, aproveitando a brisa fresca da tarde, fomos lançar ferro na enseada da cidade.
“A manhã do domingo surgiu bela e pura: os ares estavam limpos: o Sol derramava torrentes de luz sobre Calicute: víamos as ruas, os terreiros, os templos, os palácios. As habitações comuns eram de madeira pintada, os tetos eram de folhas de palmeira; mas no meio disto havia edifícios de pedra, dos quais uns pareciam paços reais; outros suntuosas igrejas: para um e outro lado da povoação, e no topo, para o lado da serra, viam-se campos cultivados, bosques de palmeiras, e de árvores robustas, cuja espécie era desconhecida na Europa. Embebidos estávamos na contemplação deste novo mundo, que, semelhante a um imenso e riquíssimo pano de rás, se desenrolava diante dos nossos olhos, quando algumas barcas parecidas com as da véspera, e a que nesta terra chamam almadias (aqui Álvaro Velho lançou rapidamente os olhos para Fernão Martins, e sorriu-se) partiram de terra a demandar as naus. Tanto que chegaram, os que as guiavam subiram acima, e de tudo o que viam só nossos trajos e armas os enchiam de assombro: bem tratados por nós, eles se mostraram comedidos e corteses, e quando partiram o capitão-mor mandou com eles um dos degradados que levávamos, para servirem nestas arriscadas mensagens: eis o que lhe sucedeu, conforme da sua boca ouvi.
“Apenas chegado a terra conduziram-no a casa de dois homens que lhe pareceram mercadores. Logo pelo seu aspecto conheceu que eles eram estrangeiros naquele país: um dos mercadores olhou para ele, e exclamou em mau espanhol: Os diabos te levem! Quem te trouxe aqui? Contou-lhes então o português o processo da nossa viagem, e que vínhamos em busca de cristãos e das especiarias do Oriente. “E porque não manda cá — interromperam os mercadores — el-rei de Castela, el-rei de França, ou a senhoria de Veneza?” “Porque el-rei meu senhor não o consentira” — foi a resposta portuguesa do degradado. Então os mercadores lhe disseram que eram mouros de Tunes, que tinham vindo à índia por causa dos seus comércios, e que tinham feito sento em Calicute. Nesta distância imensa das suas respetivas pátrias os mouros de Berberia e o cristão de Portugal se consideravam quase como conterrâneos. Depois de lhe darem de comer, o degradado voltou aos navios, e com ele um dos mouros, que se chamava Bontaibo...
— Quantas vezes quereis que vos diga que o seu verdadeiro nome é Monçaide? — interrompeu Fernão Martins. — Sois capazes de estragar, em menos de um credo, um vocabulário inteiro.
— Bontaibo, ou Monçaide, como quiserdes — respondeu Álvaro Velho, — que isso pouco faz ao discurso da minha história: ele aí vem conosco, e tanto acode por esse nome que vós, o capitão-mor, Pêro de Alenquer e o gajeiro de proa lhe dais, pois sois discretos, como por est’outro, que geralmente lhe damos nós outros, rudes marinheiros.
Esta ironia de Álvaro Velho, em quem todos reconheciam ciência e instrução não vulgar, apesar da sua humilde condição, fez calar o loquacíssimo intérprete; e ele prosseguiu:
“Apenas o mouro saltou no convés, todos nós o rodeámos: “Boa ventura, boa ventura! ” — nos disse ele em português travado de castelhano. “Muitos rubis, muitas esmeraldas! Graças deveis dar a Deus por vos trazer a terra onde há tanta riqueza.” Ouvíamo-lo falar, e não podíamos crer nos nossos ouvidos. Parecia-nos um sonho, que a tantos centenares de léguas de Portugal existisse quem falasse nossa língua; quem nos pudesse entender. Irmão nosso era dali avante um tal homem, embora na sua cara não houvesse o sinal do cristianismo, e os seus lábios só soubessem pronunciar as blasfêmias do Alcorão.
“Por Bontaibo soubemos que el-rei de Calicute estava afastado da capital. Mandou o capitão-mor dois mensageiros (dos quais um foi Fernão Martins) que lhe fossem anunciar a vinda daquela armada, e como ele Vasco da Gama era embaixador de el-rei de Portugal, cujas cartas lhe apresentaria. Recebida pelo rei de Calicute esta mensagem, mandou dizer a Vasco da Gama que ele voltaria logo à cidade para o receber, e fazendo mercê de muitas dádivas aos dois mensageiros, enviou com eles um piloto, que conduzisse a armada para a enseada de Pandarane, onde achariam melhor fundo do que na de Calicute, sumamente aparcelada e perigosa.
“Pretendia o piloto que entrássemos no porto; mas o capitão prudentemente mandou que surgíssemos fora. Tínhamos apenas lançado ferro, quando chegou aviso de el-rei para que desembarcasse o embaixador de Portugal, a quem ele em Calicute esperava. Mas o dia já se inclinava ao seu termo, e por isso Vasco da Gama sentou em desembarcar no dia seguinte, até porque podia aproveitar o intervalo da noite para fazer conselho com os capitães da armada sobre o modo porque se devia haver em tão delicada conjuntura.

CAPÍTULO 3: A EMBAIXADA 
“Amanheceu, finalmente, depois de uma noite inteira passada em preparativos, o dia de segunda-feira, vinte e oito de Maio. Resolvido tinham os do conselho que Vasco da Gama fosse acompanhado somente por doze homens, ficando seu irmão Paulo da Gama, durante a sua ausência, com o mando supremo de toda a armada. Os batéis desde o romper do dia flutuavam junto das naus, toldados e embandeirados: nem esqueceu artilhá-los; porque estivéssemos precatados contra qualquer súbito cometimento: charamelas e trombetas nos acompanhavam, e todos nós, armados e ataviados de sedas, descemos aos batéis. No meio de festivos tangeres, os remeiros partiram de voga arrancada, e apenas entestamos com a terra, em Pandarane, o bale ou catual, que entre os índios de Calicute corresponde ao corregedor da Corte, nos veio receber acompanhado de duzentos naires, homens fidalgos, de que se compõe a milícia daquele país. Parte deles vinham armados, com espadas nuas nas mãos; dando de si mostras guerreiras. Uma espécie de andas, a que chamam palanquins, foram ali trazidas por seis homens, que nelas conduziram Vasco da Gama, desde a praia. Grande multidão de povo aí estava reunida, e no meio dela, rodeados de naires, que afastavam o povo, seguimos o caminho de Calicute.
Alto ia já o dia, mas o céu estava carregado de nuvens. Começava então na índia a estação invernosa: a cidade ficava distante, era preciso abreviar a jornada: porque alguma grossa chuva podia tornar impossível, ou dificultoso o nosso trânsito.
O caminho para Calicute passava pela povoação de Capocate: quando aí chegamos estava aparelhado em casa de um nobre o jantar para Vasco da Gama; mas ele recusou aceitá-lo. Depois de breve descanso em que nós os da comitiva tomamos alguma refeição, continuamos a viagem.
Junto a Capocate corria um caudaloso rio: dois barcos liados um ao outro nos esperavam, e apenas embarcamos partiram velozmente cortando a corrente.
Um sem-número de barcas, atulhadas de gente, nos rodeavam, e pelas margens a multidão curiosa corria para ver esta nova espécie de homens do Ocidente, que pela primeira vez calcavam a terra da índia.
Tendo navegado obra de uma légua, tornamos a desembarcar: já naquele sítio se conhecia que próxima estava uma cidade populosa: muitas naus de comércio jaziam varadas em terra por uma e por outra margem; e por entre palmares e quintas se viam soberbos edifícios, que se erguiam por meio de veigas cultivadas, e de bosques fechados de árvores, para nós desconhecidas.
Vasco da Gama entrou em outras andas que o esperavam: nós íamos junto dele: homens, mulheres, crianças nos cercavam, com sinais de espanto: e o grosso tropel de povo que nos rodeava crescia de instante a instante. Pouco tínhamos andado, quando de súbito demos com uma formosa igreja: o catual, que metido em outras andas ia sempre ao lado do capitão-mor, apeou-se e convidou este a entrar com ele dentro do templo; Vasco da Gama aceitou o convite, e nós, que íamos como pasmados, o seguimos maquinalmente.
Uma coluna de metal, da altura de um grande mastro, se erguia sobre um pedestal à entrada do templo, e no topo tinha a figura de um galo; ao pé desta, outra coluna da altura de um homem, e excessivamente grossa, estava também erguida, mas sem emblema nenhum: sobre a porta principal, sete sinos de bronze pendiam de uma espécie de campanário; as paredes eram todas de cantaria primorosamente lavrada, e o teto era forrado de bem obrados ladrilhos.
Os clérigos encarregados do culto divino não se pareciam em coisa alguma com os da Europa. Nus da cinta para cima, apenas uma espécie de saio os cobria até os joelhos; e do ombro esquerdo lhes desciam uns cordões que passavam por debaixo do braço direito. Apenas entramos fomos aspergidos com água benta, e nos ofereceram uma espécie de barro branco para pormos na testa e nos braços. No meio da igreja se levantava um coruchéu muito alto: era uma capela consagrada à Virgem, e subiam a ela os sacerdotes por uma escada estreita. Postos de joelhos oramos com o fervor de homens que em tão remotos climas encontravam pela primeira vez símbolos do cristianismo.
Enquanto o capitão-mor observava as magnificências do edifício, os quafes ou sacerdotes procuravam explicar por acenos as significações de diversos emblemas que pelo templo havia; mas na falta de quem servisse de intérprete, não pude perceber senão o nome de “Maria Nah”, que pronunciavam apontando para a imagem que estava no coruchéu.
— Não faltava intérprete, senhor Álvaro Velho! — atalhou Fernão Martins. — Mas sobre mim não vieram do céu as línguas de fogo: e eu não podia entender o ladrar daqueles cães, que nunca na minha vida ouvira.
A esta reflexão do intérprete, ninguém disse nada; porque com razão punia ele pela sua honra literária; e a leitura continuou.
Desta igreja saímos entre o inumerável concurso que não se afastava de nós, senão à força de pancadas, que os naires davam sem piedade, para nos abrirem caminho. Chegamos, finalmente, às portas de Calicute, onde entramos em outro templo, semelhante ao primeiro, e do qual brevemente tornamos a sair para nos dirigirmos aos paços de el-rei.
Aqui o tropel dos curiosos tinha subido a tal ponto, que, seguindo com muito custo por uma rua adiante, fomos obrigados a entrar numa casa, por não podermos já romper avante. Foi a esta casa que veio um fidalgo principal com mais soldados, e seguido de trombetas e tambores para acompanharem até os paços o capitão-mor: os homens de armas, que subiam a mais de dois mil, fizeram então arredar o povo, e nos abriram caminho, posto que com muito trabalho, até a morada de el-rei, onde chegamos a horas em que o Sol ia já muito próximo do seu ocaso.
Passamos um largo terreiro, e cruzamos quatro aposentos, antes de chegar àquele em que el-rei estava: à porta do terreiro tinham vindo os cortesãos esperar Vasco da Gama, e à última porta o sumo sacerdote; mas o tropel dos populares, que tinha rompido até ali, nos apertava por todos os lados, e à força de cutiladas dos homens de armas muita daquela gente foi ferida, e alguns mortos.
Chegamos, enfim, à presença do rei de Calicute, ou samorim, como os seus lhes chamam: estava recostado numa espécie de estrado coberto de panos riquíssimos: da direita tinha um grande vaso de ouro, donde um oficial da sua casa lhe dava umas folhas de certa erva a que os mouros chamam atambor, e os naturais bétel, segundo depois soubemos, as quais o rei mascava continuadamente, cuspindo-as depois em outro vaso de ouro, que lhe ficava à esquerda. O capitão-mor logo que entrou fez reverência ao samorim, que lhe acenou com a mão que se chegasse para ele, e a nós mandou-nos sentar nuns degraus que havia ao redor da casa. Aí nos mandou dar figos e uma casta de melões, a que chamam jacas, que nós, encalmados do caminho, comemos sem cerimônia, rindo muito o samorim dos nossos gestos e meneios. Então ordenou este a Vasco da Gama, por via de um intérprete mouro, que transmitia as suas palavras a Fernão Martins, que desse a embaixada aos fidalgos da Corte: a esta ordem respondeu o capitão-mor que um embaixador do rei de Portugal só tratava com os príncipes em particular, e não com os seus vassalos. Sabida esta resposta por el-rei, acedeu aos desejos de Vasco da Gama; e mandando-o entrar em outro aposento com Fernão Martins e o intérprete mouro, se levantou do estrado, em que estava, e foi encerrar-se com ele.
— Agora, senhor Fernão Martins — disse Álvaro Velho, pondo sobre os joelhos o manuscrito que tinha nas mãos, — melhor podereis vós narrar o que se passou aí, do que eu só de leve apontei o que vós depois me contastes.
Fernão Martins imediatamente começou a falar em tom grave, e por esta maneira:
— Tanto que el-rei chegou, acompanhado pelo velho sacerdote, que nos saíra a receber à porta da sala, e por outros dois nobres, que pareciam grandes privados seus, Vasco da Gama lhe narrou sucintamente quantas tentativas os reis de Portugal tinham feito para descobrir a índia: que ora um que reinava, por nome D. Manuel, o mandara com aquelas três naus prosseguir o começado projeto, com pena de morte, se voltasse sem concluir a empresa: que mais lhe ordenara que, em chegando a encontrar o grande rei do Oriente, lhe assegurasse que o rei de Portugal queria ser seu irmão e amigo, e que, para prova disto, ele Vasco da Gama entregaria a Sua Alteza duas cartas que, de el-rei seu senhor, para ele trazia. O samorim respondeu a tudo isto que ele aceitava a amizade de el-rei de Portugal, e que na frota portuguesa mandaria também embaixadores a D. Manuel. Depois de praticar em várias coisas de pouca monta, perguntou enfim, a Vasco da Gama, se queria ir pousar com alguns dos mercadores mouros que havia em Calicute, ou em casa de algum dos naturais, e respondendo o capitão que desejava ficar só com os seus, o despediu, assegurando-lhe que seria satisfeito.
Fernão Martins acabou de falar; e Álvaro Velho, pegando no manuscrito, continuou outra vez a sua leitura.
“Enquanto o capitão esteve a sós com el-rei, os seus ministros, e os intérpretes, guiaram-nos para uma espécie de varanda; era já noite cerrada; e logo que ele veio ter conosco, partimos imediatamente com os oficiais que deviam conduzir-nos à nossa pousada.
“Quando saímos do paço o céu parecia desfazer-se em torrentes de chuva: as ruas estavam convertidas em rios; mas, apesar da escuridão e da chuva, o povo nos seguia em tumulto, apinhado, como se fosse à hora do meio-dia, debaixo de um céu puríssimo. Repassados de água, caminhamos muito tempo sempre ao lado de Vasco da Gama, levado em colos de homens. Cansado do longo caminho, ele se queixou ao feitor de el-rei, que o acompanhava, de que fosse tão longe agasalhá-lo, por noite tão tormentosa. Era o feitor um mouro; e vendo que Vasco da Gama estava grandemente colérico, o conduziu a sua casa, aonde lhe disse mandaria vir um cavalo em que mais comodamente pudesse ir ao aposento, que el-rei para nós destinara.
“Chegou com efeito o cavalo, mas sem os necessários arreios para nele se poder montar: tomou isto o capitão por afronta, e cheio de despeito, continuou a caminhar a pé até chegar à pousada. Aí estavam já alguns dos nossos, que tinham trazido dos navios os presentes destinados para o samorim, e tudo o de que carecíamos para enquanto residíssemos naquela cidade.
“Os presentes que levávamos deviam ser examinados pelo feitor e pelo catual, antes de el-rei os receber; vieram pois no dia seguinte os dois para os verem. Este presente, pobre na verdade, foi matéria de escárnio para aqueles oficiais, costumados às grossas peitas dos mouros: os seus desprezos aumentaram o desgosto de Vasco da Gama, que, soltando algumas palavras ásperas, declarou que, uma vez que el-rei não quisesse aqueles dons, pobres como eram, se iria despedir dele, e voltaria outra vez para os seus navios.
“Com este recado se foi o catual, prometendo voltar breve; mas debalde esperamos por ele todo o dia, chegou e passou a noite, sem mais nos tornar a aparecer.
  
CAPÍTULO 4: AS TRAIÇÕES 
Esperávamos debalde pelos oficiais de el-rei, no dia antecedente; mas na manhã da quarta-feira voltaram dizendo a Vasco da Gama que o samorim nos receberia naquela manhã. Partimos; e ao chegar ao paço, as desconfianças, que começáramos a ter na véspera, mais avultaram então: muitos naires armados estavam reunidos no terreiro da entrada, e espalhados pelos aposentos: guiaram-nos por uma porta cerrada, que só passadas quatro horas se abriu: ali esperamos impacientes, até que el-rei mandou que entrasse o embaixador de Portugal; mas acompanhado só por dois dos seus. O escrivão Diogo Dias e Fernão Martins, o língua, foram os que ele escolheu.
— Senhor Fernão Martins — disse Álvaro Velho interrompendo a leitura, — melhor podereis narrar o que se passou entre vós e o samorim, do que a minha escritura.
E o intérprete, tomando a mão, prosseguiu nestes termos:
— Entrados à presença de el-rei, logo descobrimos no seu aspecto carregado, que ou ele suspeitava mal de nós, ou que alguma traição se urdia. Sem, todavia, se perturbar, Vasco da Gama se aproximou ao estrado, onde o samorim jazia reclinado. Perto dele estavam quatro mouros; que muitos destes cães havia entre os oficiais do paço. Por intervenção de um deles, que me repetia em árabe as palavras de el-rei, se travou entre este e o capitão-mor o seguinte diálogo:
— Disseste-me que vinhas de um país muito rico; e apresentaste-te diante mim com as mãos vazias, como nenhum mouro ousara fazê-lo, nem ainda o mais pobre dos meus vassalos? Disseste-me que me trazias cartas do teu senhor, e não mas destes ainda. Treme de enganar-me, frangue do Ocidente!
— Por mares imensos vim a descobrir teus reinos; para os meus naturais a própria existência destas terras era duvidosa: aparelhado estava para lutar com tormentas e com homens (aqui Vasco da Gama apertou o punho da espada), porém não para ostentar riquezas na tua luzida Corte.
— Buscavas acaso pedras; ou buscavas homens? Se, como me disseste, eram homens que procuravas, por que não trouxeste contigo coisa que os contentasse? Já me afirmaram que na tua nau havia imagem de ouro.
— É a da mãe de Deus: ela me sustentou sobre as águas do oceano: ela me guiou e trouxe até às costas das índias. Bem que não de ouro, mas só dourada, não ta dera eu por nenhum caso. Tivera-me por perdido no dia em que a perdesse.
— Entrega-me, então, as cartas do teu rei: vejamos o que nelas me diz.
— Ei-las aqui, ó rei; mas que leia a que vem em aravia algum dos teus naturais, que entenda esta linguagem: são nossos inimigos os mouros, e poderão torcer o que nela está escrito. A que vem em português sei eu que te dará prazer.
Lá me custou — prosseguiu Fernão Martins — o repetir aos intérpretes mouros o gracioso cumprimento do capitão-mor; mas que remédio? Ouvindo as minhas palavras todos quatro fizeram uma visagem, como se lhes tivessem despejado na boca um gomil de vinagre: todavia transmitiram ao samorim as palavras de Vasco da Gama.
Então se mandou chamar um jovem índio, que pegando na carta, não percebia dela uma só letra: era pois forçoso que os mouros a lessem: felizmente nos ocorreu que se mandasse chamar o nosso amigo Monçaide, que, com os outros, lesse aquela carta a el-rei.
Ele chegou brevemente, e com três dos mouros a trasladou em índio; do conteúdo deu o samorim mostras de ficar contente: depois perguntou ao capitão que mercadorias eram as que Portugal podia mandar à índia.
— Às primeiras necessidades da vida provê absolutamente o meu país: tem trigo com que o homem se sustenta; panos, com que se cobre; ferro, com que se defende — esta foi a resposta de Vasco da Gama.
— E dessas coisas trazes algumas para mercadejar com os meus naturais?
— Sim, trago; e ir-me-ei a bordo dos meus navios, deixando na casa em que pousamos cinco homens, a quem mandarei essas coisas, para eles as resgatarem por ouro e prata, ou por outras mercadorias.
— Não deixes ninguém — atalhou o samorim, — parte com todos os teus: e depois de amarrares bem as naus farás desembarcar isso que da tua terra trouxeste.
Com isto nos despedimos: Monçaide veio conosco até à pousada; e pelo caminho nos revelou que os mouros urdiam larga trama para nos haverem de perder: Vasco da Gama, que bem percebia o risco em que nos achávamos, ficou todo aquele dia taciturno, e com aspecto carregado.
Fernão Martins calou-se neste ponto, e Álvaro Velho, pegando outra vez no manuscrito, seguiu avante na sua leitura:
No outro dia partimos para Pandarane, e apesar de nos perdermos uns dos outros no caminho, chegamos finalmente aos estaus, em que Vasco da Gama nos esperava para embarcarmos: era perto da noite; pedimos uma almadia, mas o catual recusou-a, com o pretexto de que era muito tarde. Então a cólera do capitão-mor rebentou como uma torrente: acusou o catual de traidor; ameaçou-o de que voltaria a Calicute para se queixar a el-rei; e Bontaibo, que traduzia na linguagem dos índios as palavras de Vasco da Gama, exagerava ainda, porventura, as suas expressões de despeito: temeu, ou fingiu temer, ó catual o furor do capitão português, e respondeu, que em vez de uma almadia, daria trinta, se tantas nós pretendêssemos.
Saímos ao longo da praia: havia muito que o Sol tinha desaparecido no ocidente; nenhuma barca por ali jazia; e o capitão, receoso de alguma cilada, mandou Gonçalo Pires, com mais dois homens, adiante, que se encontrassem Paulo da Gama, seu irmão, com os batéis abicados em terra, lhe dissessem que saísse logo para as naus; porque em terra correria risco.
Os homens não tornaram; e fartos de buscar em vão barcos, que nos conduzissem a bordo dos nossos navios, tivemos de voltar à povoação, onde passamos a noite em casa de um mercador mouro.
Na manhã seguinte, a traição, até aí encoberta, se patenteou claramente. Exigiram de Vasco da Gama que mandasse aproximar as naus à terra: recusou ele fazê-lo; e então lhe declarou o catual, que sem isso não tornaria a pôr os pés dentro delas.
Soltar palavras ásperas era quanto podíamos fazer na nossa defesa; mas os sinais de cólera só acarretaram sobre nós escárnios. Os mouros e índios, que conosco estavam, diziam, rindo, que podíamos partir para Calicute, ou para nossos navios, como melhor nos aprouvesse; mas as portas tinham-se cerrado, e nós estávamos cercados de naires armados, que cuidadosamente nos guardavam.
Por fim o catual exigia só que as velas e leme dos navios fossem trazidos para terra: com isto, dizia ele, abrir-se-nos-ia caminho franco, dar-se-nos-ia uma almadia, para nos recolhermos a bordo. Vasco da Gama, porém, recusou constante qualquer condição para a sua partida, que el-rei lhe concedera solta e livre.
No meio destas disputas, Gonçalo Pires voltou, e nos disse que encontrara Nicolau Coelho, capitão do Bérrio, com os batéis aproados em terra, o qual ali o esperava. Com a ajuda de Bontaibo saiu então um dos nossos disfarçado, e foi avisar Nicolau Coelho de que fugisse sem demora: os mouros o perceberam, bem que tarde, e mandaram muitas almadias após os batéis; mas estas não os puderam alcançar.
Então recorreram à mais diabólica das tentações para abalar nossa constância. Sentíamo-nos desfalecer à míngua; e por mais que pedíamos nos trouxessem com que matar a fome, as nossas súplicas eram para eles nova matéria de riso, e de pungentes escárnios.
Eterno nos pareceu este dia de contínua agonia: e não foi essa noite menos atribulada: as guardas se aumentaram ao cair das trevas; e tendo-nos, durante o dia, permitido o passear por um pequeno jardim, logo que anoiteceu nos encerraram num estreito aposento: concederam-nos, todavia, algum alimento, que, apesar da nossa aflição, devoramos, como quem nada tinha comido desde a tarde antecedente.
No dia seguinte os oficiais de el-rei voltaram à nossa prisão: o seu modo era outro; mostraram-se muito tratáveis, e por fim declararam a Vasco da Gama que, se mandasse vir para terra as mercadorias que trazia, o deixariam ir livremente. Esta condição era suave para quem se via em tão apertado trance, e foi aceita. Escreveu o capitão a Paulo da Gama que mandasse para terra várias coisas que lhe apontou: tanto que elas chegaram, abriram-se as portas da nossa prisão, e nos mesmos batéis que as trouxeram partimos para os navios, ficando dois em terra, para feitorizarem aquelas mercadorias.
Ao chegarmos a bordo todos nos abraçavam, como se há muito tempo não nos vissem: tínhamos sido, por assim o dizer, salvos das garras da morte. Vasco da Gama ordenou que os batéis não transportassem para terra nenhumas fazendas mais; e, passados dias, escreveu uma carta ao samorim, queixando-se das afrontas e violências por nós recebidas. El-rei respondeu logo, dando grandes desculpas das ofensas feitas pelos seus, e prometendo que mandaria mercadores, que comprassem ou trocassem esses poucos objetos, que de Portugal trouxéramos para mercadejar.
E com efeito alguns mouros vieram a Pandarane para esse fim: mas não se concluindo o negócio, o capitão ordenou que as fazendas ali depositadas se levassem para Calicute, onde, porventura, se acharia para elas melhor mercado. Disso avisou el-rei, o qual à sua custa as fez transportar para a cidade.
A boa amizade restabelecia-se, aparentemente, entre nós e o samorim; mas tudo quanto este fazia era para nos enganar: os mouros tinham-no persuadido de que éramos ladrões do mar, e, medroso das nossas bombardas, dissimulava conosco, esperando ocasião oportuna para nos colher às mãos.
Todavia a marinhagem ia frequentes vezes a Calicute, porém sempre aos poucos, e com a necessária cautela. Para trazer ao reino alguma coisa do Oriente, os marinheiros mais pobres chegavam a ponto de trocar a própria roupa por cravo, canela, e mais especiarias: por outra parte as almadias cheias de índios rodeavam constantemente as naus, para nos venderem toda a casta de mantimentos, que podíamos desejar. Assim passaram muitos dias.
Estávamos no mês de Agosto: o piloto Canacá dizia que a monção, ou tempo próprio de atravessar o golfão, que divide a África da índia, era chegada: cumpria partir; e Vasco da Gama mandou avisar disto o samorim, pedindo-lhe que fizesse embarcar os embaixadores, que, segundo lhe anunciara, queria enviar ao seu irmão o rei de Portugal, e ao mesmo tempo lhe permitisse, que em nome dele trouxesse ao seu senhor, el-rei D. Manuel, certa porção de especiarias, como amostra dos preciosos gêneros que a índia produzia.
Foi neste ponto, que a má vontade de el-rei de Calicute apareceu a lume: um presente que, mandando este recado, lhe fizera o capitão-mor, não o quis ele ver, e respondeu a Diogo Dias, escrivão da nau São Gabriel, o qual fora com esta mensagem, que, antes de partirem, os portugueses deviam pagar-lhe seiscentos xerafins, como era estabelecido para todos aqueles que vinham mercadejar aos seus portos.
Diogo Dias fora deixado em terra com Álvaro de Braga, para feitorizarem as mercadorias, que se haviam desembarcado; e aí deviam ficar até a volta de nova armada. Ouvida a determinação de el-rei, voltou à casa onde morava, resolvido a vir a bordo relatar a Vasco da Gama o que sucedera; ao chegar à pousada viu-a rodeada de homens armados: entrou, e juntamente com o seu companheiro foi retido nela pelos naires, enquanto pela cidade se lançavam, como depois contou Bontaibo, temerosos pregões, para que ninguém da cidade tivesse comunicação com a armada.
Felizmente um jovem negro, que com eles estava, pôde escapar à vigilância das guardas: correu à praia: a noite começava a cerrar-se; nenhuma barca o quis tomar, até que, já cansado de andar ao longo da costa, achou no extremo da cidade uns pescadores, que a troco de algum dinheiro o conduziram a bordo, fugindo outra vez para terra encobertos pelo escuro, com receio de serem severamente punidos.
Passou-se o seguinte dia, sem que uma só barca viesse aos navios: em conta de perdidos tínhamos Diogo Dias e Álvaro de Braga. Na manhã imediata — era o dia da Assunção da Virgem — os vigias do São Gabriel viram aproximar-se uma almadia: chegaram a bordo quatro índios que davam mostras de quererem vender-nos pedras preciosas: deixaram-nos subir; e Vasco da Gama, fingindo ignorar a prisão dos feitores, os acolheu, como se estivéssemos em boa paz com o seu rei: e por eles mandou uma carta a Diogo Dias pelo teor da qual mostrávamos não saber o que sucedera em terra.
Isto enganou os de Calicute, que começaram a vir a bordo com frequência, até que no domingo seguinte chegou uma almadia com seis mercadores, que, pela riqueza do trajo, pareciam pessoas principais: tanto que estes subiram, Vasco da Gama os mandou prender, e mais doze homens dos que com eles vinham, enviando pelos outros uma carta ameaçadora ao samorim, na qual dizia que pelos dois portugueses, que deixava na índia, levava em reféns estes mercadores, uma vez que logo não lhe fossem os seus restituídos. Depois levantamos ferro, e como o vento era contrário, andamos quatro dias bordejando na enseada, fundeando, finalmente, à espera do vento, tanto ao mar que não víamos a terra.
— Agora, senhor Álvaro — disse Álvaro Velho para o de Braga, — a vós toca referir o que com Diogo Dias passastes, quando vos deixamos nas mãos daqueles cães.
E Álvaro de Braga disse:
— Logo que em Calicute se espalhou a nova de que vós outros éreis já ao largo, as mulheres e filhos dos que tínheis cativos correram ao paço, fazendo grandes choros; a sua aflição, que abrangia a muita gente, por serem aqueles mercadores dos principais, comoveu o ânimo de el-rei, que nos mandou chamar, mostrando-se muito irado contra o catual, e ordenando que fôssemos ambos postos em liberdade: “Em nada sou culpado de quanto vos aconteceu — disse ele a Diogo Dias. — Ide dizer ao vosso capitão que me solte meus vassalos; e tu podes voltar a terra para negociar a fazenda que aí tendes: para prova de que desejo a boa amizade dos Portugueses escreverei ao meu irmão D. Manuel, e será na sua própria linguagem.” Então Bontaibo, que aí fora chamado por intérprete, deu uma ola, ou folha de palmeira, a Diogo Dias, que nela escreveu com uma pena de ferro a carta que o samorim ditou para el-rei de Portugal, e que ele trouxe ao capitão-mor.
No dia seguinte uma almadia nos conduziu a ambos a bordo do São Gabriel, e muitas outras barcas iam conosco para levarem os que ali se achavam cativos: temerosos todavia da vingança dos portugueses, lançaram-nos no batel da nau, que ainda flutuava à popa.
Tanto que chegastes — disse Álvaro Velho, prosseguindo a leitura, — Vasco da Gama mandou descer à almadia os seis prisioneiros principais, dizendo-lhes que mandaria os outros, quando viessem as mercadorias, que ainda haviam ficado em terra. Partiram, e ao romper da alva, Bontaibo veio ter conosco: tinham querido matá-lo os outros mouros, dizendo que era nosso espia. Recebemo-lo como amigo, e o capitão-mor lhe prometeu que el-rei lhe faria mercê: foi ele quem miudamente nos contou as traições que contra nós estavam urdidas; e de que ainda ontem tivemos mais uma prova.
Seriam dez horas da manhã, quando vimos vogar para nós sete barcas cheias de gente: três se aproximaram, trazendo na borda pendurados alguns panos dos que Diogo Dias deixara em terra: pareciam querer mostrar com isto que vinham restituir-nos a fazenda, que ficara no seu poder; mas o capitão-mor os fez afastar às bombardadas, porque resolvera trazer consigo a Portugal os homens que cativara.
Desfraldamos as velas ao vento: depois de três meses de demora neste país traiçoeiro, a índia ficou descoberta; e nós levaremos a el-rei D. Manuel a certeza de que o seu nome será imortal na história.
Álvaro Velho calou-se: o seu manuscrito ainda tinha várias folhas em branco; ele as encheu depois; mas chegando ao reino, ninguém fez caso dele, nem do que escrevera: só passados muitos anos, um bedel da universidade, chamado Fernão Lopes de Castanheda, desenterrou em Santa Cruz de Coimbra aquele caderno precioso, e dele se serviu para compor a mais curiosa porção do primeiro livro da sua História da índia.
Quando a leitura acabou, o dia vinha rompendo: a candeia da bitácula começava a bruxulear já frouxa; e os homens do quarto, substituídos por outros, foram repousar da sua longa vigília.



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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Um comentário:

  1. Só vim agradecer, belo trabalho. Curto muito no canal Youtube, obras extensas são cansativas de ler, costumo intercalar leitura e as narrações. Muito obrigado.

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