7/15/2019

Abismo (Conto), de Sylvio Floreal



Abismo

Bendigamos o amor que foi tão curto,
O sonho vago que expirou tão cedo,
Soçobrado no porto antes do surto!

Feliz o idílio que não teve história!
Salvando-nos do tédio, o nosso medo
Foi uma porta de ouro para a glória!

Olavo Bilac – “Tarde”


— Hoje, sinto a volúpia imensa de rememorar somente as grandes desilusões que tive na vida; que volúpia rascante, não achas?... Ao longe, na fímbria do horizonte, as montanhas se esfumavam suavemente, nas tonalidades imprecisas da púrpura do crepúsculo...

E Armando, com toda a magnificência vesperal dentro da alma, continuou:

— Eu pensei que a sua alma fosse um espelho, onde a minha, devastada, pudesse refletir-se e refazer nela todos os estragos do passado... Mas, encontrei uma alma mais devastada do que a minha.

— Quem é essa criatura tão enigmática?

— Marta era o seu nome, verdadeiro ou não; nunca lhe descobri outro, mesmo porque esse me era tão agradável que não quis ir mais além...

Encontramos-nos numa tarde de outono em Florença, num parque todo afestoado de flores cheias de tédio.

E ali, sob a tepidez do crepúsculo, fui acometido de um arroubo estuante por essa mulher: fascinou-me a sua cabeça, onde dois outonos se fundiam maravilhosamente...

Silenciosamente, como duas sombras que se beijam numa penumbra, as nossas almas se entrelaçam.

— Quanto tempo durou essa união, pouco importa sabê-lo! Sei somente que não achei nesse amor a chama comburente que me queimasse, a enormidade que me absorvesse! E por isso, separamos-nos num silêncio igual ao que nos uniu...

— Pensei de encontrar uma alma intacta, um coração vibrante; puro engano! Ela havia amado tanto, que as experiências a haviam crestado!

Às vezes, nos momentos de febre, ela estreitava violentamente a minha cabeça entre seus braços, e dizia-me, em surdina, ao ouvido, com a sua voz que era um misto de ternura e revolta: — Chama-me a tua esperança, a tua ânsia, o teu sonho, a tua imagem longínqua!... E eu, com a alma diminuída, os nervos lassos, o sangue entibiado, somente queria chamá-la, aos gritos, minha desilusão! Meu veneno!...

E assim passávamos horas e horas, fingindo um afeto postiço: ela procurando surpreender em meus olhos a futura confirmação do seu amor; eu procurando nos seus um vestígio que me falasse dos seus amores passados...

Numa tarde como esta, em que perpassava pelo espaço uma languidez de abandono, sem nenhuma surpresa para nós, caiu o cenário sobre a nossa comédia sentimental, ficando eu do lado da plateia, tendo a impressão de ouvir uma surriada que me apupava e ela do outro lado das gambiarras, talvez serena. A despedida foi dolorosa, mas não triste...

Ah! A dolorosa sensação de ver um sonho ruir, quando já o tínhamos integralizado na introspectividade dos nossos nervos!...

— Não te lamentes, Armando, sê forte! Na terra há tantas mulheres para o teu desejo, quantas estrelas há no céu para o teu sonho!

— Banir a lembrança de uma paixão ardente é mais forte do que substituí-la por outra! Como a superfície dos lagos que somente refletem imagens quando estão desondulados e serenos, assim são os nossos nervos; somente recebem novas sensações quando expira o frêmito das últimas vibrações... A vida não se repete com os mesmos encantos: uma esperança que nasce, uma ilusão que morre, uma ânsia estrangulada, um desejo que se estiola recalcado no labirinto dos nervos! Eis tudo!

— E ao cabo de tudo, ficamos à margem da vida, com um ressábio de angústia dentro da alma, a rememorar todos os fracassos da nossa existência afetiva.

— Tens, acaso, saudades dessa mulher?

— Não! O que tenho é uma grata lembrança, por ter ela provocado em mim duas profundas emoções!

— A primeira, quando veio, ebriante, rugidora, dionisíaca, — escravizou-me —, ilusão esplêndida! A segunda, quando partiu, silenciosa, fria, indiferente, — libertou-me, — desilusão sublime!...

As primeiras estrelas começavam a tremeluzir no céu cor de hortênsia, como rútilas pupilas de animais felinos, que lá do alto, ansiosos, esperassem a noite para melhor brilhar.

E Armando, como se tivesse a sua alegria prisioneira entre baças muralhas de tédio, fumava, tão absorto, que eu tinha a impressão de que ele não dialogava comigo, monologava consigo mesmo.

— Marta! Amargurada e alegre criatura: — em vez de remoçar a alma com a essência de cada novo amor, a cada novo amor mais ela se estarrecia, mais ela se mutilava interiormente! O seu outono exterior ocultava um inverno...

Quando todas as mulheres têm nessa idade o sabor hidromelino do fruto sazonado, ela tinha o sabor amargo do fruto seco, que, amaldiçoado pela natureza, amadurece antes do tempo!

A sua alma era um abismo cheio de esperanças mortas, ilusões truncadas, desejos pulverizados...

Todas as perfídias, todos os cinismos elegantes e brutais dos seus amantes passados, formavam dentro de sua alma uma lousa, onde estava escrito:

Oh passante, aqui jaz uma alma morta, atormentando um corpo que quer viver!

— Já entraste, às escuras, numa catedral cujos vitrais das rosáceas, partidos pela cólera sacrílega do vento, cobrissem o solo, como um tapete pintalgado, e iludido por essas cores fascinantes, sangrasses as mãos e os joelhos no embevecimento da prece?

— Pois bem, comigo se deu a mesma coisa; entrei naquela alma de um grande passado de aventuras, que era um abismo atupido de vitrais partidos e cegamente feri a minha alma!...

Ah! As mulheres! As mulheres todas têm um abismo inconsciente, uma miragem nos seus desertos interiores que sempre nos engana...

Revista "A Cigarra", 1 de agosto de 1919.

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