7/15/2019

Salomão (Conto), de Sylvio Floreal



Salomão

Sorria o luar. O perfume das rosas subia ao céu, em volatas tênues, sutis, como um ex-voto à magia da noite.

Perpassava por entre escassilhos das moitas, onde noivavam, em silêncio, libélulas fulgurantes, o sopro tépido da brisa, leve e macia como se afagasse colos de virgens...

As árvores sussultavam suavemente, como trêmulos arrepios de volúpia, quando o zéfiro, mensageiro de ânsias longínquas, por sobre elas adejavam lentamente.

Nada destoava a placidez lírica do jardim.

Um delíquio morno invadia furtivamente a alma das coisas, como um suspiro mavioso de violino, que expirasse na penumbra de uma nave.

A noite era elisíaca, o ar caricioso, a terra aromal...

Vinha de muito longe o eco flébil de uma voz dolente, como de alguém que rememorasse uma profunda, uma grande saudade à luz das estrelas.

Pairava no ambiente o queixume sôfrego de uma murmurância quebrada, como se perfume ativo das flores, em ascensão aos céus, fosse cantando a balada dos desejos...

O lago, que, como uma psique oriental, refletia toda a feminina vaidade da lua, era tão límpido, que em sua superfície podia pousar um pensamento casto. O silêncio atuava sobre todos os sentidos da natureza... Sentia-se o fremir das seivas, o cochicheio das flores, o ciciar dos polens...

Todo um mundo de novos ritmos, de novas formas, germinava naquele tálamo de silêncio... Amor! Amor! Quanto pode a tua força, sobre o sensível e o insensível, o belo e o feio, os corpos e as almas! Tudo inebrias, arrebatas, alucinas fazendo triunfar, sobre a estagnação da noite, esposa do mistério — gêmea da Morte, a apoteose vivaz das madrugadas — noivas da Vida...

Nisto, um vulto luminoso surge levemente perto de mim, aéreo, inconsútil, como um elfo. A sua clâmide de chamalote, broslada de soprilhos e colgaduras de lhamas fulgurantes, irradiava na penumbra extática do jardim um estranho relumbramento!

Os seus gestos olímpicos e as sua voz hidromelina impregnavam o ar de ondas rítmicas e ressonâncias de uma sinfonia maravilhosa.

A majestade do vulto era tão extraordinária que nem sequer interroguei quem era. A aura da sua grandeza vinha até a minha alma como uma mensagem ancestral de beleza.

Era Salomão, o Poeta máximo da volúpia cerebral do Cântico dos Cânticos.

— Oh divino patriarca do lirismo, conta-me, como um ourives conta as pérolas raras dos colares que tem tocado com os dedos, as pérolas femininas do teu colar sentimental, de homem que mais amou na terra!

— Em verdade te digo: amei tanto que até me tornei Sábio. O amor é um rio diáfano e encantado que nos leva ao mar profundo da sabedoria. As minhas amantes foram tantas, que eu compus, ao cabo de tantos anos, as minhas máximas com uma partícula da alma de cada uma delas... A mulher! A mulher é a eterna inspiradora, o ponto de partida das grandes viagens do espírito.

Quando na terra se ama como eu amei, a vida se desdobra, se intensifica tanto, que ao morrermos deixamos gravado na memória do mundo o marco eterno da nossa passagem.

Ama sempre, perenemente, até sentires o coração bramir dentro do peito, desesperadamente: trégua... trégua... trégua...

Houve entre nós dois uma síncope cerebral; emudecemos extasiados... Em torno de nós, como que espíritos invisíveis indiscretamente escutavam o nosso colóquio. O luar, diluído na atmosfera, bistrava de tons alvos-alabastrinos a cabeça apolínea do patriarca.

— Qual o segredo dos teus triunfos, ó divino amante?

— A sutileza de espírito, a candura do coração e o entusiasmo dos nervos!...

Sulamita, amei-a com espírito e coração; Belkiss, com entusiasmo dos nervos!... A primeira, branca como um beijo de luz num floco de neve, inspirou-me um poema; a segunda, loira como um pingo de mel numa gota de leite, doou-me um filho — David.

Uma entrou em minha alma: eternizei-a perante Deus; a outra se transfundiu em meu ser: eternizei-a perante os homens!

Isso só existe quando o espírito perde a sua ascendência sobre o corpo. Para que uma paixão pulse ardentemente dentro de nós, não basta termos-la no coração, é necessário termos-la também no cérebro. O coração, fiel ao senso da terra, ressoa os gritos da espécie, é um obscuro receptáculo, ao passo que o espírito, mensageiro do céu, translúcido, imortal, ressoa os ecos de todas as belezas das esferas, é um luminoso irradiador!... Fiz, assim, da minha alma, uma selva rútila e perfumada, onde as almas de todas as mulheres que amei iam cantar o grande hino do amor. Glorifiquei em mim, com exaltação, Apolo e Eros. Sob a ebriez lustral de novos amores, eu caminhava sempre para novos horizontes espirituais. Os meus lábios, em delírio, hauriam o néctar perturbador aurorais das minhas amantes, mas o meu espírito, na ânsia incontida da beleza, criava as parábolas que espalhei na terra.

O grande pecado do homem não é o amar muito, é ele fazer do amor uma escravidão, quando ele é uma liberdade!

Na floresta humana, as mulheres são árvores sagradas — os pomos, repositórios da luz e do perfume dos astros, aplacam a volúpia de mistério e irrevelado, misto de suavidade e dor, carícia e tortura, fecunda sempre o nosso espírito e deslumbra sempre a nossa alma!...

A essas últimas palavras, as árvores do jardim, como que ufanas de ter comparticipado da imagem feita pelo divino patriarca do lirismo, atapetaram de folhas os nossos pés, como humilde preito de homenagem. E uma voz, onde havia toda a plangência dos carmes, repercutiu mestamente no silêncio: “Salomão... Salomão...! Volta para o teu reino de luz, de harmonias e belezas!”.

Cerro, como quem aspira ao aroma de uma flor, os olhos. O vulto, sulcando a treva de um clarão flavo, desapareceu lentamente. E as suas palavras ficaram vibrando na minha memória: amei tanto, que até me tornei Sábio.

E sorria o luar...

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