7/15/2019

Corações onde ressoa a música das planícies e dos desertos (Crítica), de Sylvio Floreal



Corações onde ressoa a música das planícies e dos desertos

A natureza de Mato Grosso assombra pela fereza e comove pela poesia. A sua grandiosidade, deslumbra-nos os sentidos; a sua poesia prende-nos a alma na teia versicolor da cisma.

Sondando a natureza desse Estado, com enternecidos propósitos de surpreender, além do aspecto físico, os múltiplos segredos que se aconchegam em seu vasto seio, conclui-se que ela, não é somente um celeiro opulento de riquezas naturais, mas também, um maravilhoso repositório de coisas belas, e de motivos esplêndidos para se urdir poemas de alta emoção.

Natureza perdulária, pródiga de saúde, pletórica de energia em que a seiva borbulha, freme, alastra-se, circula e escorre voluptuosamente, acossada por essa ânsia amorosa de quem implora às mercês do esforço para progredir e completar-se e às dádivas divinas da imaginação que lhe imprima um ritmo de calor e forma que a imortalize, integralizando-se na alma humana.

Natureza venturosa que escachoa em rajadas de paixão entre o céu e a terra, e perpassa meiguiceiramente pela alma sonhadora das mulheres como um cântico de esperança a embalar as doçuras infinitas do amor.

Natureza fértil e vivaz, das florestas agressivas, que em êxtase, ouvem, embevecidas, as confabulações dos mistérios, os diálogos dos gênios verdes, filhos da gleba virgem e a orquestração zoinante da Flora e o festim auroral da Fauna buliçosa e assanhada.

Natureza silente, das campinas e das planícies esmeraldinas, intérminas e longas, onde a paciência dos bois pontilha os horizontes e os garrotes insolentes, impulsionados pela brotoeja dos pruridos inscientes ensaiam ingênuas bravatas, descrevendo parabólicas curvas madrigalescas, aos olhos langorosos e feiticeiros das novilhas ariscas.

Natureza fresca e irizada, das águas claras e sonoras que assistem ao idílio das aves, e dos volumosos rios que beijam a terra fecunda debruçada em suas caudais e vão serpenteando e retratando o vulto informe e brutal das montanhas e o perfil ora ramalhudo, ora sutil e nervoso, das árvores.

Natureza espetaculosa, reboante de alegrias, de clamores, de cicios, de gritos e gemidos, vindos do reino vegetal que se prolonga ansiosamente até o animal, numa mescla afetiva em que todos os sentidos dos elementos envolvidos na confederação de uma quermesse de harmonias, açulam e adestram as forças que se expandem e concentram.

Natureza reverberante, cálida, dos perfumes e das cores, das rarefações esmaecidas, que matizam a relva e as alfombras, e filigranam com laivos fulvos o verde enérgico das frondes, por onde erram perfumes ativos, perpassam e flutuam olências dormentes, numa ronda embriagadora, trescalante, de essências que se desprendem do almíscar da Fauna e dos aromas exalados do mistério da Flora.

Natureza dos bucolismos crepusculares, das tardes maviosas, das manhãs joviais e das noites de ar caricioso, propiciatório dos sonhos.

Oh! Natureza estuante de Mato Grosso! A beleza tocante dos teus motivos emocionais, atuando sofregamente na imaginação e na alma da raça, há de fatalmente caldear um tipo de homem bom e generoso perante o céu e a terra, e com a sedimentação de tanta poesia será integrado no seio do cosmos, com um coração onde há de ressoar a orquestração dos desertos, espiritualizado e enfibrado; para afrontar os imprevistos do destino.

Natureza deslumbrante!

Do seu âmago emerge Eva Mato-grossense, como um tipo argamassado com todas as aspirações da natureza dadivosa e hostil, deslumbradora e feroz, suave e trágica! Filhas da volúpia! Mulheres frementes, rubras florações de vida desabrochadas no ambiente largo e bruto!

E nessa bruteza, Eva de candura, transfunde um perfume de selva humanizada. Seu corpo, a orlar o cenário, é um poema de linhas e um prolongamento da vitalidade que flutua no seio dos elementos bravios.

ACZ e inicia “Eva Mato-grossense”, publicado em AV, se pensarmos nas primeiras publicações citadas em que os textos são tomados separadamente.

Gentileza associada ao mistério da amplidão e à poesia que desce do céu. Em ti cantam as curvas de Vênus e vibra a alma inquieta de Yara!

Herdeira dos segredos que ciciam no recesso sombrio das matas e do fulgor que embriaga a paisagem! Oh filha do Gigante Verde.

Mulheres que o amor transfigura em blandícias, enchendo o coração do homem de coragem, para extorquir da natureza feroz, as dádivas maravilhosas, que, batizadas pelo sacrifício vitorioso, vão depois, como oferenda de sorrisos e esperanças, aureolar vossa alma de paixão. Oh! Gentis ardores da gleba virginal!

A agrestidade estratificada e diluída em canduras, freme em vosso seio, pulsa em vosso coração, transborda em estendal de amavios pela vossa alma. Sois, no imo que vos circunda, a força metamorfoseada em flor; o grito bárbaro dos elementos aveludados em beijos; o estuar reboante das águas amaciadas em carícias; o zonzonar das árvores mudando em cicios de desejo...

Criaturas de enlevo! Almas onde ecoa o mistério das espessuras! Corações onde canta o hino das planícies e das florestas. Toda a natureza, concentrada, embala-se como que debruçada na comoção de vossas ânsias.

Prolongamentos de Yaras! Mostrais uma capacidade de ternura que é uma volúpia que traduz o ilimitado que vos envolve e os horizontes esquivos que beijam a fímbria reticulada dos bosques e das paisagens desonduladas.

Por isso, a bondade, filha da natureza, passando pelas águas murmurantes, pelo ramalhar das florestas e pelo gorjeio das aves canoras, chega até a vossa alma divinizada, balsamizando-vos os sentidos para a glória da Vida.

Eva Mato-grossense! Harmonia de forças que sorriem perante os céus!

Bem haja esse teu amor desvelado!

Bem haja a tua paixão, que, sobre o solo indomável, encerra as aspirações transbordantes da raça e a esperança de alargar o destino da Pátria.

Cuiabá, 6 de janeiro de 1927.


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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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