7/15/2019

O inferno – duas horas na cadeia pública (Crítica), de Sylvio Floreal


O inferno – duas horas na cadeia pública

Ir ao inferno, num dia qualquer da semana, sem uma prévia apresentação, é tarefa bem difícil. Mas depois de algum esforço, consegui penetrar no Inferno – Avenida Tiradentes, nº5, Cadeia Pública.

Os touristes que devassaram o reino de Sua Excelência o Diabo dizem que este cavalheiro possui a mais bela morada do mundo. Pela milésima vez, tive outra desoladora decepção. Aquela miniatura do Inferno não tem, é certo, a suntuosidade do outro, onde passeia a sua arrogância o Augusto Príncipe das Trevas, mas, como aquele, um lugar de sofrimento, gritos e choro.

um casarão colonial austero, decrépito. Todo ele clama, pede, implora a misericórdia salutar da picareta!
Construído em 185176, e pelos inestimáveis serviços que tem prestado, trabalhando dia e noite, mais do que as suas forças o permitem, já lhe assiste o direito de ser uma ótima e galharda ruína. Velho pardieiro! És um anacronismo, uma carcaça mefítica, abjeta, ao lado do progresso desta capital que tu viste nascer!

Acompanhado do diretor e outros auxiliares, começo a percorrer os interiores da cadeia. Na porta de entrada, junto às grades, ao lado dos guardas que estão hirtos e vigilantes como domadores de feras, vi o homem que infunde o maior pavor aos visitantes daquela casa — o carcereiro.

Numa pequena saleta, sobre uma mesa pardacenta, jazia um molho enorme de chaves gastas que, pela continuidade do manuseio, espalhavam um brilho úmido e sinistro. O carcereiro agita-as nas mãos que sabem afagá-las com ternura, e elas produzem um som soturno e cavo, como o de uma pedra que rolasse pelo declive tétrico de um abismo!

Há anos que este homem abre e fecha calabouços. Imperturbável, exerce o seu mister silenciosamente, com alta elegância, sem nunca indagar qual é o crime daqueles indivíduos. É tão extraordinário, que até conseguiu perder o sorriso! Essa perda, aliás, não a fez somente ele: fizeram-na todos os que estão lá dentro, tanto os funcionários como os presos.

Não se vê uma máscara alegre!

Passo por entre os presos e tenho a sensação de que a minha liberdade os insulta tenazmente. Esqueço-me dos seus delitos; quisera corrigi-los com um pouco de piedade. Caminho apreensivamente e lembro-me de que a piedade, quando muito, poderá comover a criatura humana; mas nunca a corrigirá!

Paira em todas as caras uma angustiosa expectativa. O que mais o tortura não é o castigo, é a lentidão dos dias, que faz com que não se aproxime o momento da liberdade. O tempo é o maior verdugo daquelas criaturas!

No ar morno há um zum-zum de vozes, um torvelinho de frases. Todos, ao mesmo tempo, me chamam para expor o seu caso, e todos, a una voce, dizem que estão presos sem saber o por quê. Os que cometeram crimes alegam mil e uma atenuantes em abono de sua inocência. Os detidos por briga, roubo, vagabundagens e outras patifarias, clamam contra a polícia que não faz outra coisa senão persegui-los.

Toda a vigilância lá dentro é pouca. Frequentemente, há engalfinhamentos entre os que estão reclusos por vagabundagem e gatunice. O diretor se vê zonzo para manter uma relativa ordem entre eles.

— O senhor imagina — diz-me o diretor —; todos se dizem inocentes, mas por qualquer cousa discutem, provocam distúrbios. Entre eles, da discussão não nasce a luz, nasce a pancadaria!

Acidentalmente, me retenho na grade de um vasto salão, onde esperam ajustar contas com o Júri vários indivíduos. Num abrir e fechar de olhos, afluíram à grade todos os que estavam lá dentro, sentados, contando lorotas, lendo jornais, escrevendo, fazendo cigarros e bugigangas de miolo de pão.

Um turbilhão de olhares me focaliza, verrumando-me com uma certa insistência piedosa. Fisionomias de todos os feitios havia naquele magote. Falavam lamentosamente, com os lábios secos e os músculos faciais parados numa contração de revolta surda! Sobressaía de entre todos um mulato alto, espadaúdo, de beiços carnudos, sensualmente vermelhos como a polpa de uma romã. A sua figura chama-me a atenção. Indago quem é.

— Esse é aquele que anavalhou o rosto da Nenê Romano.

Ele não ouviu. Mas, percebendo a minha insistência, pois que o fitava atentamente, torceu as pontas do bigode e, um tanto contrafeito, abaixou-se e desapareceu.

Noutra sala, igualmente cheia, mas de um pessoal um pouco mais limpo, que constitui a “elite” da cadeia, um cidadão todo garboso, bem escanhoado, sentado sobre um colchão enrolado, falava com voz forte e timbrante. Os outros, fumando, dominados mais pela preguiça do que pela loquela do companheiro, prestavam uma atenção negligente, com olhos semicerrados.

À primeira vista, não conheci esse indivíduo, pois que lhe faltava o principal adorno, o seu dístico — o cravo vermelho!

— Quem é aquele homem?

— Aquele é o Sr. Vicente Gervásio...

Juntamente com outros colegas da prisão, ele vem até à grade. Ninguém fala a não ser ele.

— Sou uma vítima dos caluniadores —, diz o Vicente Gervásio. — Tudo aquilo que se escreveu por aí contra mim é mentira! Nunca roubei, nem extorqui dinheiro de ninguém. Eu fazia o que faz uma grande quantidade de “picaretas” que vivem por aí a fundar revistas clandestinas que ninguém conhece.

E assim, nesta toada, vociferou uma tremenda catilinária contra seus ex-colegas de “picaretagem”.

Durante todo o tempo que levei a examinar outros tipos, Gervásio, fazendo uso da sua verbosidade escorregadia, divagou sinceramente,  a seu bel-prazer, no firme propósito de me capacitar de que é um rapaz de talento. E acreditei, não há dúvida! Vistos que foram os calabouços dos homens, passei ao das mulheres.

Diversas encarceradas respondem por crime de infanticídio, furto e assassinato. E outras, quase todas pretas e mulatas, por bebedeiras e arruaças. O barulho que essas mulheres fazem mantém todo o enorme edifício em constante atoarda.

Pelo enxadrezado de ferro da porta, espio para dentro dessa prisão. O quadro é desolador e repugnante. No soalho, e sobre os colchões encardidos, roídos pelo tempo e pela sujeira, há mulheres sentadas, em atitudes indecentes. Trocam-se insultos virulentos por entre guinchos, berros, blasfêmias e palavrões de fazer corar a caliça amarelenta das paredes.

Ante esta cena de ultrarrealismos, um mal-estar pungentíssimo apossou-se violentamente de todos os meus sentidos. Tive pena daquelas desgraçadas, não por estarem presas, mas, pela degradação da moral a que chegaram, devido exclusivamente ao vício da embriaguez.

Depois, ainda dominado por esse capítulo de sofrimento anônimo, único nos anais da miséria, fui ver aquilo que a cadeia tem de mais trágico e desumano — o local do suplício extremo — a solitária!

É um cubículo escuro, estreitíssimo, úmido, onde o paciente não pode nem abrir os braços. Todo pintado de negro, fúnebre como um necrotério. Pelas paredes há nomes riscados na crosta do piche; são caracteres irregulares e ilegíveis, que, logo se adivinha, foram gravados dolorosamente com a unha. Os presos, os de grande culpa, quando não querem confessar o seu crime, passam ali uma invernada a pão e água.

Turbilhonavam confusamente em meu cérebro impressões macabras de dramas soturnos e desvairados grand-guinol, quando cheguei até o fundo dos prédios, onde os presos cultivavam uma horta luxuriante de variegados legumes.

Enquanto olhava perscrutativamente um canteiro de alface, o diretor toca-me o ombro, e diz-me em surdina:

— Agora o Sr. vai conhecer o preso mais obediente da cadeia.

E aponta-me um homem que se aproxima lentamente. Chega, saúda-nos e para.

— Ei-lo, o Sr. Miguel Trad!

Permaneci um segundo extático, recapitulando cenas na memória.

Depois, trocamos monossilabicamente algumas palavras.

E assim estivemos mais de cinco minutos a falar, bem entendido “em português”, sobre tudo quanto se relaciona com a arte de plantar um pé de couve... O Sr. Trad fala jeitosamente, como um perfeito gentleman. Tudo nele denuncia o homem que, tendo passado através de profundas transformações, vive em paz no presente, confiante no futuro, esquecido completamente do passado...

Sabe fazer uso da sua cultura e inteligência com extrema dissimulação. Sabe, enfim, escudar a arca dos seus segredos...

Num relance, percebi que a minha presença constituía para ele uma interrogação. Entre misterioso e amável, Miguel Trad despede-se de mim, e vai tratar de uma toucerinha de cravos vermelhos.

E é talvez com alguns desses cravos que ele pretende presentear o Sr. Vicente Gervásio, no dia em que este sair da prisão...


Jornal "Ronda da Meia-Noite", ano: 1925.


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Fonte:

Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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