7/05/2019

Guardado está o bocado... (Conto), de Brito Camacho



Guardado está o bocado...
Do Registo Civil foram para a Igreja e da Igreja foram para bordo. A lembrança tivera-a ele — uma viagem de núpcias, por mar.
— E se nós enjoássemos?...
Para ele, que nunca embarcara, o enjoo era uma revelação de fraqueza, o sinal de uma vontade pouco enérgica.
— Verás que não enjoamos.
Conservaram-se na tolda para as despedidas do estilo, e só quando já a multidão do cais era indistinta, mal se lobrigando os lenços brancos num adejar de gaivotas presas, é que desceram à cabine, onde a criada fazia a arrumação das malas e chapeleiras.
— Quando estiver tudo pronto, chame.
O vento soprava bastante rijo, e a vaga ia engrossando à medida que o navio se aproximava da barra.
— E se nos descêssemos?...
Pela primeira vez se encontravam juntos, sem testemunhas, unidos conforme manda a Lei e a Santa Madre Igreja, ela radiante de mocidade e de frescura, ele soberbo de vigor e de audácia, orgulhoso como um lutador romano.
Um balanço mais forte atirou os dois para cima do sofá, e só por milagre ele não manchou o seu vestido de noiva na hediondez de um vomito.
— Eu bem te dizia...
Não mais pôde levantar a cabeça, para ali estendido, sem vontade, quase sem consciência, não tentando sequer o trabalho de se despir, no instintivo receio de que o mais leve movimento lhe agravasse o mal.
— Vai lá para cima, filha, que isto passa.
Era, na verdade, uma coisa incomoda, à força de repugnante, estar ali ao pé daquele homem enjoado, ridículo no abandono da sua pessoa encasacada, torcido como um trapo molhado, só erguendo a cabeça para vomitar, e vomitando sem continência.
Para ela o mar, vasto, sem limites, era um espetáculo novo e interessante, e porque lhe não faziam medo as suas raivas, nem a incomodavam as guinadas incessantes do barco, leve como se fosse de cortiça, esquecia-se encostada à borda, num alheamento que era ao mesmo tempo assombro e fascinação.
— Faço-lhe os meus cumprimentos, madame; não enjoar com este mar!...
Ele também não enjoava, habitualmente; mas já uma vez, nos mares do norte, desconfiara que ia vomitar as tripas.
Eram os únicos passageiros que iam à mesa, e também os únicos que passeavam na tolda, especando-se mutuamente, que o balanço era de fazer catre o equilibrista mais hábil.
— Conserva-te lá por cima, filha, que isto há de passar.
A verdade é que não passava, e a tempestade recrudescia com uma fúria estranha, as vagas erguendo-se altas como colinas, e o navio precipitando-se nos abismos que elas cavavam, e só por milagre não indo ao fundo.
Uma noite, como a chuva e o vento os não deixassem parar na tolda, já tarde, sem rumor de gente, desceram para as cabines, e sucedeu que um balanço mais forte, ao passarem junto ao camarote que ele ocupava, os fez entrar de roldão.
— Então como te sentes?...
— A cabeça um pouco mais pesada; mas não te incomodes, isto passa, filha...
No hotel ao cabo da viagem, ela radiante de frescura e de mocidade, ele soberbo de vigor e de audácia, foi como se pela primeira vez se encontrassem juntos, sem testemunhas, unidos conforme manda a lei e a Santa Madre Igreja.
— Não, filha, assim não. Hás de fazer a tua toilette de noiva, que eu quero aspirar nos teus cabelos o perfume da laranjeira, fresca e rescendente como no dia do nosso casamento, meu anjo, minha virgem puríssima!

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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