7/15/2019

Manias e pretensões (Crítica), de Sylvio Floreal



Manias e pretensões

Uma das coisas que mais lisonjeiam a vaidade humana sempre foi aparentar o máximo daquilo que na realidade não se é. Partindo deste dispositivo chegaremos logicamente ao ninho das debilidades que constituem o forte das fraquezas que a humanidade acaricia amorosamente. Chegaremos a esse canteiro irregular onde brotam as ambições ferazes e as manias repolhudas. Por isso, pode-se afirmar, sem esse pavor que infundem as afirmações, que não há ninguém que faça a sua viagem através da vida sem carregar a sacola de sua mania. Há manias insignificantes, inverossímeis, assim como há manias berrantes, que acenam, bracejam mais do que um semáforo de ilha deserta. Se é verdade que todos nós temos a nossa mania, vejamos o grau de futilidade que tem a grande mania de alguns em confronto com a pequena mania de todos.

Há, na seara fértil das manias, uma que pode ser catalogada como presunção: é a mania dos que querem ter talento. Um sujeito que dá ideia perfeita de que vive feliz, porque realiza vinte por cento das suas aspirações no campo desolado das desilusões, um dia encasqueta na bossa amarela das ideias a mania verde, o propósito incolor, a resolução furta-cor de querer ter talento. É uma ideia, uma aspiração, um desejo que, ao cabo de algum tempo, acaba por se transformar, de mentira transitória que era, em verdade fixa, incontrovertida. E o sujeito que a tal ideia dá benévola guarida, depois de convencido de que tem de fato talento, passa a trabalhar a fim de impingir aos outros a sua mania. E afaga essa mania com o mesmo ardor e desvelo com que um pai afaga um filho aleijado. Difícil, a princípio, era convencer-se a si mesmo, porque convencer aos outros é sempre um trabalho menor do que autossugestionar-se. E o figurão, navegando nas águas da benevolência humana, guia do alto, a nau da sua desmedida pretensão, que tem esculpida na proa a imagem ridícula da sua mania. E, como que embriagado por uma ilusão que ninguém quer ter o mau gosto de truncar, o fulano, forrado do cetim barato do cinismo, emproa o seu pseudo talento coroado, primeiro, com a sua inconsciência, depois, com os sorrisos benévolos e concessivos dos outros.

E assim consegue manter florido o prestígio, até o momento em que as circunstâncias não o obriguem a sair da atmosfera dúbia de falso talento. Mas, ó tristeza das tristezas! Quando o momento fatal de revelar a chapa do talento se aproxima, o fantoche em questão tomba do seu frágil pedestal, mostrando todo o enchimento composto da estopa da mediocridade que fora valorizada pela mania da fama.

Ao lado destes maníacos inofensivos, jocosos, há outros que formam na mesma galeria, porém, com uma pequena diferença: são os possuidores de uma dose mui escassa de talento, que mal chega para o usufruto cotidiano: e lançam mão daquilo que se chama, na desordenada república das letras — cabotinismo. O cabotino é um indivíduo que tem um talentozinho que pode ser guardado no fundo de um dedal, porém ele o valoriza no mercado da glória, vendendo-o caro, graças ao poder do cabotinismo. Ninguém se parece tanto com um cabotino quanto um pavão. Porque o pavão, além de ser a ave mais estúpida do mundo, quando abre o bico por onde solta uns gritos agudos, e desconcertantes, e de ser atacado de mortal tristeza quando olha para os pés, tem ainda outras originalíssimas particularidades — é um bichinho magro, descarnado, um esqueleto pavoroso de ave tuberculosa.

E aqui vem a comparação exata, matematicamente precisa.

O pavão, tendo o orgulho da plumagem, a loucura paradisíaca das cores, é uma ave brilhante, pomposa, dir-se-ia feita de miríades de pedras preciosas mutiladas; mas, na realidade, só tem penas, cores, e mais nada. Assim é o cabotino. Insolência, pompas mentirosas na aparência, mas na realidade o seu talento é magro, raquítico, tuberculoso como o corpo do pavão. O pavão e o cabotino são dois astutos vigaristas.

O outro, o que alardeia talento por conta e risco da mania, é um vigarista de fancaria, que nem ao menos tem habilidade de plagiar o talento que possuem as penas do pavão.


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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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