
Manias
e pretensões

Há, na seara fértil das manias, uma
que pode ser catalogada como presunção: é a mania dos que querem ter talento.
Um sujeito que dá ideia perfeita de que vive feliz, porque realiza vinte por
cento das suas aspirações no campo desolado das desilusões, um dia encasqueta
na bossa amarela das ideias a mania verde, o propósito incolor, a resolução
furta-cor de querer ter talento. É uma ideia, uma aspiração, um desejo que, ao
cabo de algum tempo, acaba por se transformar, de mentira transitória que era,
em verdade fixa, incontrovertida. E o sujeito que a tal ideia dá benévola
guarida, depois de convencido de que tem de fato talento, passa a trabalhar a
fim de impingir aos outros a sua mania. E afaga essa mania com o mesmo ardor e
desvelo com que um pai afaga um filho aleijado. Difícil, a princípio, era
convencer-se a si mesmo, porque convencer aos outros é sempre um trabalho menor
do que autossugestionar-se. E o figurão, navegando nas águas da benevolência
humana, guia do alto, a nau da sua desmedida pretensão, que tem esculpida na
proa a imagem ridícula da sua mania. E, como que embriagado por uma ilusão que
ninguém quer ter o mau gosto de truncar, o fulano, forrado do cetim barato do
cinismo, emproa o seu pseudo talento coroado, primeiro, com a sua
inconsciência, depois, com os sorrisos benévolos e concessivos dos outros.
E assim consegue manter florido o
prestígio, até o momento em que as circunstâncias não o obriguem a sair da
atmosfera dúbia de falso talento. Mas, ó tristeza das tristezas! Quando o
momento fatal de revelar a chapa do talento se aproxima, o fantoche em questão
tomba do seu frágil pedestal, mostrando todo o enchimento composto da estopa da
mediocridade que fora valorizada pela mania da fama.
Ao lado destes maníacos inofensivos,
jocosos, há outros que formam na mesma galeria, porém, com uma pequena
diferença: são os possuidores de uma dose mui escassa de talento, que mal chega
para o usufruto cotidiano: e lançam mão daquilo que se chama, na desordenada
república das letras — cabotinismo. O cabotino é um indivíduo que tem um
talentozinho que pode ser guardado no fundo de um dedal, porém ele o valoriza
no mercado da glória, vendendo-o caro, graças ao poder do cabotinismo. Ninguém
se parece tanto com um cabotino quanto um pavão. Porque o pavão, além de ser a
ave mais estúpida do mundo, quando abre o bico por onde solta uns gritos
agudos, e desconcertantes, e de ser atacado de mortal tristeza quando olha para
os pés, tem ainda outras originalíssimas particularidades — é um bichinho
magro, descarnado, um esqueleto pavoroso de ave tuberculosa.
E aqui vem a comparação exata,
matematicamente precisa.
O pavão, tendo o orgulho da plumagem,
a loucura paradisíaca das cores, é uma ave brilhante, pomposa, dir-se-ia feita
de miríades de pedras preciosas mutiladas; mas, na realidade, só tem penas,
cores, e mais nada. Assim é o cabotino. Insolência, pompas mentirosas na
aparência, mas na realidade o seu talento é magro, raquítico, tuberculoso como
o corpo do pavão. O pavão e o cabotino são dois astutos vigaristas.
O outro, o que alardeia talento por
conta e risco da mania, é um vigarista de fancaria, que nem ao menos tem
habilidade de plagiar o talento que possuem as penas do pavão.
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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