7/02/2019

O Gabiru treslê (Conto), de Raul Brandão



O Gabiru treslê

Noite de luar. A Árvore mergulha os braços esguios num oceano de luar translúcido, bilhões de átomos luminosos errando. Primavera... Houve uma coisa que eu sinto, mas que não sei descrever. Esta primavera caída lá para o fundo, que queria ser primavera, e que revolvia na escuridão totalmente cega, e aquela Árvore de saguão que queria ser árvore e que se lembrava numa dor emudecida do espaço e da luz... – E não morria! e teimou.

E subiu, toda dor e desespero. Teimou e subiu. Teimou branca e imensa e com uma vida estranha... Por pouco ouvi-la-íeis falar... Escutai-a na noite calada e cheia de tanto luar que faz aflição. Por entre os raminhos tremuleiam fios de luar esquecidos. No chão a sombra da parede faz mancha e os fios de luar dão-lhe vida. Diríeis que ali anda fôlego vivo. Fora da sombra é tanto o luar que só se vê uma brancura. Por pouco ouvi-la-íeis gritar...

O Gabiru cisma. Os olhos abertos, todo ele dolo-rido, deita-se ainda a cismar. Vivera sempre tão transido e pobre, tão sozinho – que lhe não fugisse o sonho – e nada lhe ficara entre as mãos. Só escárnio! só escárnio!...

Bate o luar em cheio naquela figura exótica e transforma-a, Não é ridículo. Corre-lhe o luar nos olhos, nas mãos estendidas, e cheio de luar sorri extasiado...

Hein, que queres tu? Nasce uma criatura para a desgraça. Em pequena anda rota, quase nuazinha, e o pão da vida dão-lho os ladrões e soldados. Maltratam-na, irmã da terra, rasa como a terra. Nada sabe do sonho – e que culpa tem ela de não sonhar? Violam-na, tornam-na igual das pedras, seca como as pedras, mesquinha, e arrancam-lhe todas as aspirações, cospem-lhe em todos os sonhos. Só sofre. Vêm uns, vêm outros para a fazerem gritar, e ela um dia põe-se a rir e ri-se até da desgraça.

Julgaríeis que na sombra, sob a árvore, o luar constrói e tece, à medida que o Gabiru vai tecendo. É não sei o quê de incerto que mexe – fio de luar ou vento que passa e vai transir a sombra misteriosa. O Gabiru olha extasiado.

Da terra dilacerada surgem formas de prodígio. Quanto mais revolvida a matéria, mais bela é a eclosão do sonho. Da vida da Mouca que começou a sofrer em pequenina, logo a princípio se criou algo de radioso. Ela ria, a Mouca, escarnecida e calcada, sem ter tido quem a ampare senão prostitutas e ladrões. Nasceu para gritar – e ri. Mas nada se perde na vida. Ela que tudo ignora, rolada como as pedras no enxurro, conhecerá o extraordinário sonho. Daquela matéria espezinhada vai nascendo uma maravilhosa forma de luar.

O filósofo sorri extasiado para a Sombra. Ei-la! Uma fisionomia pálida, onde os olhos cegos se perdem, tênue, construída de luar ou construída de sonho. Direis que essa figura esguia, sustentada a luar, de negros cabelos de sombra, desaparece no escuro, torna a surgir nos fios de luar...

– Fui eu que te criei, és minha! – diz ele absorto, erguendo-se. – Caminhas para mim alheada, não me querendo olhar e não me podendo fugir, pálida e tremendo. Vens sob o tecido do luar. Oh que palavras te hei de dizer, ajoelhado, que singulares monólogos feitos de nada e enormes, arrancados à vida láctea, com palavras que nunca aprendi, nem soube dizer, mas que me brotam da alma como nascentes! Quem me dera ser a noite, a árvore, o luar, que me enche de aflição! Juro-o, as árvores falam com o luar, as montanhas namoram-se ao luar. Brilham perdidas tantas estrelas pelo céu, meu amor!... Os sapos, confundidos diante da giganteia natura, cantam nesses pios que, ao longe, na solidão, magoam como ais de alguém a quem aconteceu desgraça...

Olha: eu sinto-me distante de ti, para que não fujas desfeita em luar. Gostava tanto de sentir a tua mão pousada na minha cabeça, tanto! Olha!...

Sob a Árvore – realidade ou ilusão? – uma figura se constrói de luar, na sombra opaca uma tremulina toma forma. Juntam-se os fios de luar, amontoam-se névoas e alguma coisa treme, prestes a fugir – mas viva! viva!...

Diríeis que é só um sorriso, um olhar muito triste... O Gabiru corre e tudo se esvai... Só a Sombra resta e um ruído de gotas de luar tombando sobre a Árvore.

Ele sorri e diz:

– Eis como se cria uma alma!

Todas as noites, muito tarde volta para ao pé da Árvore.

– Uma é terra, outra é luar – murmura. Quanto mais a Mouca sofre, mais esta se cria. Oh, não me fujas! Vens com a noite, melancólica e pálida como as mortas arrancadas ao sepulcro. Criei-te de lágrimas. Os teus cabelos esparsos perdem-se na sombra. Nunca vi na escuridão os teus olhos, mas sinto a irradiação da tua alma!...

O Gabiru, na noite branca e calada, sente-a aproximar-se e olhá-lo muito tempo.

– Minha alma!

Nem um murmúrio. Noite a noite era mais o luar. Absorvia tudo. A sua claridade misteriosa diluía a terra e as coisas. A Árvore imensa e só dor, a Árvore esmaecida, toda se desfazia em pó claro. E noite a noite também a Sombra opaca se tornava mais espessa e funda. A certas horas o silêncio estremecia, num ai baixinho e triste. Era a criação! A alma da Sombra acordava. Ei-la! ei-la!...

– Minha vida!

Via-a perfeitamente. O oval do rosto pálido, os negros cabelos compridos, inteiramente feita de sonho e de lágrimas. Só os olhos se perdiam em duas sombras, cega talvez de tanto ter chorado – por a outra rir.

– Não fujas!

Correu um dia para a Sombra. Lua cheia, lua alta. O mundo, todo embebido em luar, era como um grande sonho de beleza. Logo a imagem se esvaiu e na sombra funda, na sombra opaca, restavam apenas manchas vagas e dispersas, luar desfeito... Apalpou a terra. Havia um ruído ainda –pelo chão corria um fio de água ou um fio de choro...

– Meu amor! meu amor!

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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