O tio da Escócia
(A meu irmão Cândido Drummond)
(A meu irmão Cândido Drummond)
Eu — sem modéstia e sem pesar o
declaro — bem sei que não possuo o que propriamente se chama um nome literário,
posto que tenha frequentado os prelos com uma assiduidade de que, sem dúvida,
se hão de lembrar, em tempo, os meus biógrafos.
Não é que também não conte as
minhas glórias; conto. Uma tarde na roça, ouvi uns versos meus recitados por um
bando de moças a passeio por uma alameda. Se bem me lembro, já tenho uma ou
duas descomposturas do "Apóstolo" e de outra folha católica. Enfim,
com algum esforço, e revolvendo bem o passado, podia ainda enramar outros
louros. Pois bem: valesse muito mais o meu nome que eu sem pena o trocaria, como
hoje.
A explicação deste ato
encontra-se numa notícia há meses divulgada pela imprensa: — na Madeira, naquela
ilha com que todos simpatizamos pela sua exportação engarrafada, estavam-se habilitando
herdeiros de uma fortuna colossal, deixada por João Drummond, um fidalgo de
sangue real, um emigrado político da Escócia.
Ora, este homem ilustre era, nem
mais, nem menos, tio deste que se tinha por obscuro plebeu. Eu já sabia, por
tradições de família, que me girava nas veias o heroico sangue escocês. A verde
Erim! já, muito antes da herança, eu estremecia de orgulho filial imaginando
que ainda provinha daquela raça de bardos montanheses; e, como bom descendente
de Ossian, tinha um fraco pelos nevoeiros. Hoje não! vejam os senhores bardos
se têm outro descendente! olha quem! uns miseráveis, que talvez fossem até
salteadores! Nós descendemos dos Drummond, senhores de Stogbal na Escócia. Puro
sangue real! Se não fossem certas prevenções, que nos ficaram dos nossos tempos
de plebeu e republicano escrevíamos ao imperador chamando-lhe primo. E isto mesmo
com certa generosidade: o nosso sangue é muito mais azul: da casa de Bragança
dizem umas coisas, que nunca se atreveram a murmurar da nossa, de que Walter
Scott fala tantas vezes.
Mais do que nós, porém, que
ficamos olhando o vulgo muito de cima, aproveitou com a notícia um parente
nosso, cuja história aí vai, para maior glória da família.
É um rapaz gordo e forte, e
chama-se Marcelo. À noite, parece ter trinta anos; à luz do sol, quarenta.
Passou por todas as academias da capital, mas nunca passou disso; ultimamente era
revisor de provas num jornal e, nas horas vagas, colaborador de várias
confeitarias, seção "balas de estalo". Vestia-se invariavelmente de
preto, e era modesto como um prólogo.
Este rapaz sempre teve a previsão
da riqueza. Lia todos os testamentos no "Jornal"; só se apaixonava de
herdeiras; e, sentindo uma preguiça superabundante, dizia à mãe: — Veja bem,
que eu com certeza tenho sangue nobre.
Pelos fins do ano passado, a
paixão de Marcelo era pela filha de um titular da capital. O pai, cujo apego às
apólices não há quem não conheça, nem desconfiava de que lhe cantavam os
melros, todas as tardes num caramanchão do jardim.
Diga-se, para esclarecimento dos fatos, que Marcelo
era um rapagão, e a namorada uma corujinha, que, se não, fossem as apólices
paternas, havia de se resignar aos sobrinhos.
Corriam assim as coisas quando,
uma clara manhã, leu Marcelo na "Gazeta" a notícia da vertiginosa herança
do tio escocês. Logo depois do almoço foi visitar a avó, de quem obteve em conversa
a genealogia da família; mas não se falava do ascendente mais glorioso.
— Diga-me, atalhou Marcelo, não
tivemos parentes na Madeira?
— Tivemos, sim, e ainda temos.
Hoje, os Tristões...
— Sim?! a senhora afiança-me isso?
E nunca ouviu falar, num parente nosso que veio da Escócia?...
— Pois não! isso mesmo! um emigrado...
Marcelo saltou na cadeira e
saltou ao pescoço da velha:
— Estamos ricos!
Leu-lhe a "Gazeta";
conversou-se ainda muito a respeito do grande homem; elogiou-se a honestidade da
lei inglesa, que deixa jazer por tantos anos uma herança; e, quando saiu, levou
Marcelo cartas e papeis velhos de família, por onde se provava, pouco mais ou
menos, o seu direito aos brasões e às libras esterlinas do emigrado.
Essa noite, no colóquio do
caramanchão, perguntou à menina das apólices:
— Que dirias tu, se te propusessem
um noivo de sangue real?
Ela fez-se modesta; isso não era
para ela; e estava bem satisfeita com o seu.
— Pois o meu sangue é desses!
A outra não compreendeu bem o
alcance da notícia, e admirou-se menos do que convinha à magnitude do caso.
Marcelo insistiu e explicou; em suma, aquilo vinha abrir-lhe a porta da sala, a
ele que só conhecia a do jardim: já se animava a falar ao papai.
Espalhou-se a nova, e no outro
dia Marcelo era interpelado a cada esquina:
— Tu também és parente?
— E dos mais próximos!
— Então, milionário?!
— E nobre; acrescentava ele,
levantando os colarinhos à altura da situação.
E aos que ainda não sabiam era o
primeiro a dizer que descobrira ter sangue real. Um malévolo perguntou-lhe se
isso vinha de Pedro I.
— Muito acima, corrigiu Marcelo
sem compreender. Vem da Escócia. Não leste a "Gazeta"?
Entraram a surgir-lhe parentes
por todos os lados, em todas as classes — na magistratura, no comércio, no
magistério, nas letras, na indústria, na política, na diplomacia. Eram
apresentações todos os dias. Por uns e por outros, chegou a ser apresentado ao pai
da menina, o qual lhe ofereceu a casa.
Iam de vento em popa as suas
esperanças. Já se via em Botafogo e no Catete, numa sala de decoração severa, e
antiga, onde passavam fâmulos de libré, a passos que os tapetes amorteciam; ou,
voltando do teatro, no fundo de um "coupé" brasonado, rolando
surdamente, enquanto lá fora faiscavam as ferraduras das parelhas e os plebeus voltavam
a pé, com as mãos nos bolsos e as golas levantadas.
E vinham depois os bailes do Cassino,
o Jóquei-Clube, os passeios à Tijuca, os verões em Petrópolis. E que horizonte
político! uma cadeira na Câmara, o coleguismo das notabilidades, e, mais tarde,
a curul do Senado, o direito de sentar-se ao lado de Otaviano e de pedir pitadas
ao Sr. Abaeté e oferecer outras ao Sr. Jaguari, que não as dá.
Tinha também a ideia de proteger
as letras, favorecer a empresa do "Cenáculo", alcançar uma comenda
para o Artur de Oliveira e uma pensão ao Ferreira de Menezes para escrever mais
a miúdo e outra ao C. — para nunca mais escrever! E, para mostrar-se bem do seu
partido e da sua.classe, maquinava tomar a assinatura do "Apóstolo";
e, se o apurassem muito, era homem para uma conferência na escola da Glória:
para a fazer e, até, para a ouvir!
Chegou a achar que era uma
afiança desigual a, sua com a corujinha das apólices, e pensou vagamente em uma
formosura real, cujo retraio vira na almanaque de Gotha, princesa da Dinamarca;
mas isso não deixava de ser complicado; demais, conservava ainda alguns preconceitos
democráticas: optou pela fluminense.
Uma noite, apresentou-se ao
titular, com bom padrinho, e obteve a mão da namorada; mas o homem, pelo
seguro, impôs que o casamento fosse depois de recebida a herança. O herdeiro
dos Drummond saiu desconsolado; acudiu-lhe, porém, uma esperança: conseguir
logo da menina o que a prudência paterna adiava. A primeira vez que se viu a
sós com ela, disse-lhe que não podia esperar tanto pelo casamento, que o pai o ofendia
duvidando do seu direito, e insinuou perversamente que era capaz de levar a
outra os seus brasões.
Procurou também deslumbrá-la com
a exibição do seu rico futuro: podiam ir morar para a.
Escócia, um país de legenda, um
castelo antigo entre os rochedos, entre a vegetação fantástica dos alamos e dos
pinheiros, ouvindo à noite gemer a alma dos heróis nas lástimas do vento.
Ela achou bonito, com a condição
de se pintar de novo o castelo, e de pinhões não queria saber: sempre ouvira
dizer que era muito quente; quanto aos fantasmas, podia-se fechar a janela.
Mas uma coisa ficou-lhe — a
possibilidade, que ele mostrou de vir a ser conde. "A Sra. condessa!",
"a condessa de Stogbal!" já via os esplendores do seu luxo e a inveja
das amigas. Lembrava-se da sua viagem à Europa, logo que saíra do colégio, e
imaginava-se outra vez a bordo, nas tardes do tombadilho, na vasta alegria do
mar, comendo ameixas passadas, sua gulodice predileta. E via-se chegando aos
seus domínios, esperada no seu castelo, caminhando entre alas de velhos lacaios
de libré; e havia de ter aias inglesas, asseadas e discretas, e uma música
suave, como a banda dos alemães do Passeio, que tocasse todas as tardes no
pavilhão do jardim...
Não, positivamente, já não podia
ser menos que condessa na Escócia; cumpria casar, e já, para que outra não fosse
condessa com o Marcelo.
É um velho recurso muito
explorado e sabido, mas ainda assim infalível com os pães de coração fraco:
amuou dias inteiros, sem comer ou comendo às ocultas, e chorando como quem não tivesse
mais que fazer. Não havia meio de a consolar, senão dar-lhe Marcelo;
deu-se-lhe. Assim casou, há meses, este meu parente, primeiro que desfruta o
tio da Escócia.
É hoje outro homem: não entra nos
cafés onde almoçava "de assobio", nem passa pelas lojas de roupa
feita da rua do Hospício; foi admitido ao Grêmio do Bernardo, e já tem assinatura
de camarote para a Companhia lírica a chegar. Breve o temos na Glória. E vá se
preparando o "Apóstolo" para o milagre de mais um assinante.
No baile do casamento, foi visto
a conversar com um ministro: suspeita-se-lhe a intenção de representar a nação
por Mato Grosso ou Goiás, ou de ser lente substituto na Escola Politécnica, lugar
para o qual está provado que se não exige nem exame de francês.
Projeta uma economia que talvez o
leve ao ministério — suprimir, a pasta da marinha. E nas horas vagas, que são
hoje todas as suas horas, inventou um jogo em que se procura, não onde está o
gato, mas onde está o barrete frígio de certo jurisconsulto.
Tal era o homem que se perdia na
obscuridade da pobreza e na ociosidade dos cafés, por falta unicamente de uma
herança. Bastou-lhe a notícia de uma, ei-lo elevado à altura do seu destino.
Encontrou-se comigo, há dias, na
rua, e já não me conheceu, esquecido, tão cedo, de que toda a prosperidade lhe
veio do nosso tio comum. Deixa-te estar, vilão, que também, há de chegar o meu
dia; já a esperança, a musa profética, mais doce que o mantuano, segreda-me na
hora dos sonhos: "Tu Marcellus eris" Também nós seremos gente, e
nutriremos na alma cívica a aspiração generosa de ir salvando a pátria a cinquenta
mil réis diários.
Até lá perdoai-me, ó manes do meu
rico tio, e fazei com que venha a mim, sem demora, o meu quinhão dos brasões e
mais das libras, principalmente das libras, de nossa ilustre casa!
Rio, junho de 1878.
---
Lúcio Eugênio de Meneses e Vasconcelos Drummond Furtado de Mendonça (1854-1909)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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