7/16/2019

Por que te não falo⁈ (Conto), de Cláudio Basto



Por que te não falo

E tu, meu Amor, quando mo perguntas, olhas-me com os teus olhos de luar, tristemente negros, embelecidos ainda mais — se é possível — pela estranheza com que me interrogas.

E eu fico na mesma, calado, junto de ti, beijando com o meu olhar o teu olhar...

Ah, deixa-me permanecer assim mudo, tão à tua beira, estonteado pela graça que de ti se evola, a reparar silenciosamente nos teus olhos tristes!

Eu não quero perturbar, nem de leve, a deliciosa vibração da minha alma toda. Eu quero-a auscultar em absoluto, quero-lhe sentir toda a expressão, toda a harmonia, todo o arroubo.

E as palavras quebram este doce encanto: elas são rudes, sempre rudes, por mais ternas que sejam, para esboçar sequer a vibração suprema da alma enamorada e perturbam-lhe sempre a sublimidade inexprimível do seu ansiar estranho. Só um som divino poderia cantar um êxtase de amor: — a lira de oiro de Orfeu, a harpa de ouro de Merlim...

Eu sou levado, olhando o teu olhar, na corrente deslumbrante dos meus sonhos, que se projetam nítidos, vivos, no silêncio. Vou como no deslizar de um rio plácido, à flor da sua água límpida, longe das margens que ignoro e do leito que julgo imundo, de lamas. E indo, a olhar o teu olhar, silentemente, no rio dos meus sonhos, — quem sabe se me espera o mar fatal da Morte?! quem sabe se abordo à ilha dos Amores?!... — mas vou sonhando sempre, esquecido na moleza acariciante da corrente dos meus sonhos...

Dispersos no ar imóvel, por entre a mudez e a beleza das coisas, brincam os gênios dos entusiasmos, das esperanças, dos devaneios, das aspirações, — os gênios do amor e da poesia. Foram gerados pela união apaixonada e pura das almas intemeratas, pelos olhares e carícias das afeições ardentes e simples, pelos beijos virginais dos lábios de fogo.

Esses gênios, esses espíritos cândidos, esses deuses suavemente melindrosos, todavia, só no silêncio descem da serenidade azul do céu e veem, através das flores e das árvores mudas, procurar a nossa alma comovida, para a levarem, pelo espaço e pelo tempo infinitos, às voluptuosas mansões da Idealidade, perfumadas do máximo amor, douradas de beleza e felicidade máximas.

E é a alma, só ela, que percebe e sente, no silêncio profundo, a harmonia dessas irrealidades que o Sonho vence e realiza. O silêncio tem então a sua melodia, a sua música: tem a sua expressão sonora, que só a hiperestesia da alma atinge e apreende.

A harmonia da garganta negra da noite morta, do sorrir luminoso da lua cheia, da soledade meiga dos sepulcros, da paz soturna dos bosques, da vastidão erma das montanhas, do arrepio eterno das estrelas de oiro... é a harmonia do Silêncio, cuja inefável sonoridade só a alma escuta, quando a comoção a um tempo a excita e enlanguesce...

E o teu olhar, a tua presença a respirar a tua doce alma, sobressensibilizam meu peito melancólico, — e os gênios do amor, da poesia, arrastam-me carinhosamente pela calma do silêncio, onde floresce o país dos sonhos e onde tênue música divina, num segredo íntimo, quase mata de tanta vida...

Sonhos, alvoroçados sonhos, no vago nevoeiro da imaginação tumultuosa, — conseguira eu, num poder sem fim, concretizá-los, mudá-los em realidade, perpétua e feliz!

Ventura a do escultor famoso, cuja inspiração gerou num bloco tosco de mármore as formas etéreas e cadentes de Vênus, e que, depois, apaixonado pela obra sedutora, esmolou da Deusa figurada que desse vida àquele mármore gentil que a sua própria vida era: — e na frieza da pedra correu o movimento, a alma, o amor...

Pudera eu, como o lendário artista, animar, realizar os sonhos que o meu sentimento idealmente escultura quando o Silêncio faz ouvir, à minha alma embrandecida, a sua voz de encanto, como escoada finamente das cordas da lira de oiro de Orfeu, da harpa de oiro de Merlim!...


Viana-do-Castelo, 23 de agosto de 1915.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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