7/16/2019

Margens do Rio Douro (Conto), de Cláudio Basto


Margens do Rio Douro

Em Sanhoane,
pelas Vindimas.

Pachorrentamente, a égua trepara o caminho de Sant’Ana, cavado fundo no terreno íngreme. Fora calcando com segurança igual o piso desigual, ora de terra lisa ora de pedra solta, até cima à estrada que circunda o teso da Senhora do Monte.

E por essa estrada, naquele alto quase plaina, com a velha égua a passo, saboreadamente fui olhando, absorto e maravilhado, a Encosta soberba de Fontes, majestosamente desdobrada em arco do outro lado do vale. Pousava-lhe imóvel, nas corcovas altas, aos farrapos e como se fosse leve exalação da terra cansada — uma neblina rasteira e fluida, que velava azuladamente pedaços da Encosta sem a esconder nunca.

O sol da tarde, caindo quente para sobre o rio Douro, para entre as duas províncias abundosas, manchava de sombras, caprichosamente, os montes sem fim. Para o sul, parecia que uma gigântea mão de sombra agarrava o topo da Encosta magnífica, avançando-lhe pela correnteza dos cimos, num arremesso de rapina, os dedos negros, colossais...

Por trás, ao longe, lá para o fundo clara pedra preciosa entre o verdume escuro das montanhas, luzia uma nesga do rio Douro; — assim encravada na convergência das faldas de dois montes que se erguiam e se afastavam, simetricamente se recurvando, era como uma borboleta de corpo de safira, brilhantíssimo, a levantar as estupendas asas verdes até topetarem os céus — céu de Trás-os-Montes, céu da Beira-Alta.

E, cavalgando a velha égua a passo, saboreadamente eu olhava a Encosta soberba...

Soutos densos escalando a vertente, confundidas as copas arrendadas em segredos amoráveis; romagens de pinheiros, alegres e esbeltos na sua pequenez, coleantes pela Encosta arriba até o alto dos cabeços; e azevinhos, castanheiros, medronheiros... às chusmas, esverdeando-lhe em tons vários as lombas suaves, cujo solo raro se descobria afofado e amarelido pelo roço, com ferrujentos bordados de fetos murchos... E vinhedos, — vinhedos por toda a parte! Vinhedos em cepas, do chão erguendo as hastes viçosamente curvas para aqui, para ali, numa confusão espessa, como um jogo indestrinçável de mil jatos verdes que em mil sentidos, emaranhando-se, repuxassem da terra... Vinhedos em bardo, alinhados em filas rigorosas, perfilados, hirtos, quais formaturas imensas de soldados em sentido... E oliveiras, bichas serpeantes de oliveiras, demarcando as propriedades, as terras de cada qual...

Ao meio da Encosta ubérrima, toda a cantar vida e fecundidade, — Fontes, anichada lá junto das cristas, numa quebrada. E para o sul desse grupo alegre de casas, mancha de cor fresca, — por uma prega da Encosta abaixo, loirejavam nos socalcos leiras de milho escanado: era uma torrente de oiro pálido a descer aos saltos de valo em valo...

E casinhas brancas, umas solitárias, cismadoras, como ermidas, — outras em bandos aconchegados, como raparigas ao soalheiro, brilhavam por aqueles montes seivosos, à luz serena do sol da tarde, amochadas entre pomares...

A égua escala um muro derruído, trepa em solavancos para o teso da Senhora do Monte, até junto da capelinha alva debruada a amarelo cru, — e, andados uns passos felizes, na frescura do ar tônico, surge desde a raiz, do fundo luxurioso de um vale e muralhando o horizonte, — o Marão!

Eis lá cima, perfurando o azul firmamento, o pico da Águia, — e eis o colosso, acaçapado pesadamente na feracidade dos vales, erguendo como um titã os lombos fortes para a concha do céu.

É uma brutalidade de terra, quase improdutiva, excrescendo desarmonicamente destes férteis e concordes outeiros que empolam sem descanso a doce região dos frutos.

Ora se arredonda em amplas corcovas macias, e se tem uma impressão terna do seu contato acetinado pelo vermelho das urzes, ora se alcantila asperamente em agulhas selvagens, escarnadas, que mostram o arcaboiço de rocha, forte e reluzente como aço. E para o contraste ressair mais vivo nesta barreira enorme de terra, acastelaram-se as rudezas numa irregularíssima pirâmide formidável que vai afilar-se no pico da Águia, até onde galgam, por aqui, por ali, sulcos das enxurradas, barrancos a prumo, retos, que parecem os tendões retesados do gigante no esforço louco, satânico, de se roçar pelo céu, — e, para os lados, preguiçosamente, alargam-se as redondezas suaves, em contínuo e lento curvear de seios, que as urzes embebidas de sol mais ainda amimam, com um fofo e luminoso afago de cor...

E na ternura azul, que do alto abençoa toda a terra, recorta-se a longa cumeada, semelhante ao fio de um cutelo monstro, esborcinado, cheio de bocas fundas e extravagantes...

Venho agora descendo pela estrada, a caminho de Sanhoane, arredado de córregos e atalhos.

Desvanece-se pouco e pouco a aragem, e o calor do sol bafeja cada vez mais o ar que se imobiliza.

A terra, vestida completamente de vegetação, sem horizontes largos, é um ninho tépido, cariciosamente agasalhador, ofegante de perfumes, pelo qual se passa com enlevo, numa difusão da alma embevecida.

Vê-las aí estão as cepas, baixas, tão baixas, envergadas para o chão de cor barrenta, a conchegarem os cachos de uvas morenas, uvas doiradas, uvas com translucidez de sangue, uvas pretas empoadas de prata... e vê-las aí vão, as cepas, a que o outono começa de amarelecer os pâmpanos, subindo, subindo as encostas, trepando os socalcos, os escalões infindáveis, até o coruto dos montes em festa, como se o céu as chamasse para a Deus ofertarem os seus néctares!...

E por meio delas, as fiadas de oliveiras, com os tufos pratejados pelo sol, coleando, torcendo-se, estirando-se por entre as propriedades, que se beijam, que se dão as mãos, que se confundem numa fraterna amizade...

A espaços, tapetes fulvos de roço, fetos rosados, urzes enroxadas de flores, tojos aljofrados de amarelo, pés de mato como estrelas, como crisântemos estranhos, como estranhas anémonas de um verde túrgido...

De vez em quando, avançam até às margens da estrada, árvores isoladas, — umas, de tronco direito, que lembram solitários empenachados de verdura; outras, debruçadas como a ver quem passa, curiosas e míopes... — e os capas-rotas, espreitando, entremostram as gengivas num bom riso de gaiata saudação...

...Quando olho a terra amarelenta, de aspecto pobre e feio, cismo em como dela pode sair o perfume, a doçura, a cor dos frutos numa superabundância admirável! No seio da terra, de aspecto assim pobre e feio, há por certo mouras encantadas, espíritos benfazejos, divindades fertilizadoras, as belas ninfas dos montes, preparando com as sotis mãos fadadas a seiva mágica que faz o milagre destas frutescências preciosas!

De longe em longe, entre esta aleluia de verduras, perdulariamente dadivosas, soerguem-se — a contrastarem com as casinhas novas e com os cardenhos queimados do tempo — descuidadosos palácios a esmantelar-se, tocados já de ruína. Com a sua aparência grave de fidalguia velha, reçumando pelas chagas das paredes a nobre tradição de outras eras, afiguram dormir a saudade do seu fausto longínquo. Olhando-os, sentimo-nos levados a tempos de amor e poesia: vemos passar, revolteando cavalos ardentes, moços gentis de capa e espadim; vemos renovarem-se os ferros das sacadas, agora tortos e ferrugentos, sob o pulso de castos seios amorosos; — e as ervagens amarelecidas, que se escoam das pedras desconjuntadas, parece virem repetir-nos lindos segredos de amor, como hoje não sabemos murmurar, surpreendidos à complacente luz das estrelas cheias de sono...

Do mistério destas casas mortas sai, revivida, a recordação de festas sumptuosas, — sussurro de sedas, requinte de galantarias, delicadeza de canções, tilintar de cristais... Revivem festas de amor, — revivem dramas de amor, sonhadoramente empoados de romantismo! Aos seus portões, ulcerados de velhice, ainda ressoa o eco de lâminas, audazes e liais, brandidas heroicamente por mãos artistas e perfumadas!...

Caminho, molemente cavalgado na égua a passo, com a imaginação, alheia à realidade e história, a esvoaçar inquietamente por estes ares calmos, banhados de sol e de saúde, por estas prolificas terras irregulares, cobertas dos vales aos vértices por uma romaria de plantas carinhosas e fartas...

Homens a um de fundo, em longas fiadas, passam vagarosamente, encurvados para o chão sob o peso brutal de enormes gigos acogulados de uvas. Magros, tristes, de torturados rostos exangues, passam vagarosamente, vagarosamente, como se mal pudessem despegar os pés da gleba que os traz escravizados e para onde aquele peso brutal, cangando-lhes a nuca, lhes dobra tiranicamente a cerviz resignada.

Passam vagarosamente, a um de fundo, sempre em fio, como formigas, como processionárias, agora uns, logo outros, raro alinhados na estrada, quase sempre calcorreando ladeiras pedregosas e íngremes, calvários constantes, — e às vezes destas bocas sem frescor, de onde a alegria fugiu para sempre, sai, em coro grave, uma canção triste, melopeia dolorosa, onde só a amargura põe doçura melancólica...

E vão passando vagarosamente, agora uns, logo outros, derreados, a suar, esqueléticos, de faces de fome e de morte, — por entre o viço cantante da vegetação riquíssima, os míseros tântalos do século XX, os míseros escravos do século da liberdade!...

Ao cimo de um cômoro, até onde sobem, como por toda a parte, degraus amplos de cepas, — um velho, com largo chapéu de palha, mira a terra vagamente, encostado ao sacho inseparável. O sol, batendo com o seu ardor naquela figura negra, dolorida, escravizada, sem eira nem beira, sem revoltas nem aspirações, nimba-a de um halo divino, e, faiscando-lhe na palha amarela do chapéu, como que lhe põe um resplendor de oiro. Assemelha, assim, um santo num altar de verdura, — o Santo Cavador! o Mártir do Trabalho!...


Sanhoane (Penaguião), 29 de setembro de 1916.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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