7/16/2019

Primavera! (Conto), de Cláudio Basto


Primavera!

Embriagado de luz, de cor, de harmonia, de sol, — refugio-me na calma deste gabinete pequenino, para repousar meus nervos pletóricos de sensações... Uma claridade amarela, coada pelo transparente, adoça e doira o ar sossegado deste recanto solitário, aonde venho em busca da paz que minha alma, enfebrecida por este dia exuberante de Primavera, almeja com ânsia singular...

Inda trago em meus olhos visões da vida que se corporiza lá fora, ao bafo lustral e fecundante do sol, em vegetações túmidas, em ramos viçosos que se abraçam, em macias florescências que se namoram... Trago em meus ouvidos, pertinaz e vívido, o chilrear dos beijos que a passarada troca, o longo cicio das ramagens, o murmúrio gorjeante da água que escorre de pedra em pedra... Trago em meu espírito ainda o acordar tumultuoso da natureza, o latejar do coração da terra, as melodias, os rumores que flutuam no ar quente como suspiros de alívio, preces de gratidão, ais de felicidade, e que se diluem e se harmonizam por sobre a montanha ardente, por sobre as florações a sorrir, por sobre o verdor das árvores que esbracejam doidas de alegria...

O sol inunda o vale, cachoa pelos montes, insinua-se candente e poderoso pela terra dentro, a sacudir as seivas que o inverno adormecera, e golfa-as nos caules que, turgescendo como seios de noivas, gulosamente as sugam até às folhas...

E eu percebo, eu vejo até que as plantas intumescem revigoradas pela seiva que nelas repuxa, — banhando-se em sol, penetrando-se de sol, sob um dilúvio de sol arterializante: — ressurreição formidável de polens, de humores, de linfas, de essências...

A febre faz-me reviver, neste plácido retiro onde agora me refugio, as sensações que tive lá em cima, na montanha, entre esse espertar delirante e vitorioso da primavera num turbilhão de energias inexauríveis, — olhando em baixo a veiga encostada ao fulgente espumejar das ondas, a cidade faulante roçagada pelo rio manso e luminoso, os montes nítidos salpicados de casinhas brancas... e tudo alagado em luz, tudo explodindo em vida, pairando por sobre tudo não sei que murmurinho volátil, talvez desejos, soluços, confidências, promessas das plantas que se estorcem de volúpia, suspirando perfumes, lagrimejando flores, difundindo, em agitados sonhos de amor, os eflúvios das suas almas sensuais, vibrantes, ansiosas de paixão e de fecúndia.

Vejo-me ainda lá em cima, caminhando a medo, cautelosamente, para nem sequer magoar com os meus pés as corolas simples e alegres que esmaltam aquele recanto úbere da montanha, onde os pinheiros esguios, perfilados, se enfloram de penachos louros, onde os giestais se mancham vivamente de amarelo fulvo, onde as acárias gotejam ouro, onde as flores — néctares plasmados, essências cristalizadas — irrompem docemente através da aspereza dos carrascos, dos tojos, das ervagens bravas...: aquele recanto saudoso da montanha onde, à sombra opaca de uma sebe de mimosas ainda tenras, eu já estive contigo, — esquecidos os dois naquela rocha morena — lembras-te? — que os musgos aveludados estofam com os seus hieroglíficos desenhos...

O torvelinho vivo que lá fora vai — desvairo de cor, musical sussurro — persegue-me aqui, neste sereno remanso aonde venho em busca de paz...

Atiro-me, quebrantado, numa angústia indizível, para a moleza do sofá, — doente, quem sabe? de alguma intoxicação de sentimento, — querendo em vão repelir de mim as vibrações mórbidas que me subjugam e me dilaceram. E sinto mais forte, redobrando no zumbido do meu sangue, as canções das flores e das folhas, o correr da seiva, em jatos, pelas ramagens que inturgescem...

E da mesa — onde um dia hei de escrever o que nesta hora sinto com dor — uma tulipa, tombada, lassamente caída, vem, numa aparição súbita, exacerbar a revolta espiritual que me confrange.

Oh! aquela tulipa, cor de carne, quem na pôs ali? Olha-me, insistente e muda, através do ar pálido deste melancólico ninho... As pétalas, ondeantes como quadris de mulher, juntam-se num bico vermelho, quais lábios franzidos prestes a beijar...

A surpresa daquela flor admirável que me espreita, viva, pulsátil, veio juntar-se às impressões estranhas que numa farândola doidejante fervem em meu cérebro delirado. — Aquela flor, quem na pôs ali? E no sonhar impetuoso, indomável, que me arrasta a imaginação tumultuariamente, enlanguescendo-me o corpo exausto, o mistério daquela tulipa, abandonada ali, aflora de vez em quando, fugazmente dominador, como numa orquestração, inconexa e louca, um motivo musical...

Cerro os olhos, para fugir às impressões desesperadas que se corporalizam em minha volta, espectros sonoros, fantasmas de cor, — e logo elas ecoam vigorosas, avassaladoras, supliciantes dentro em mim, como se dentro em mim se acumulasse todo o seu tresvario, numa catadupa vertiginosa de alucinações.

E eu pressinto, perfurando a atmosfera que me estrangula e me trespassa, qualquer ilusão etérea, que da tulipa cor de carne se exala e se adensa... Para esse perturbador enigma, vago, insonhável, tenta convergir o meu espírito desvariado, com doloridos esforços de atenção...

Permaneço imóvel, petrificado, de olhos quase cerrados, numa expectação sufocante... Adivinho um não sei quê de indistinguível que emana da tulipa, talvez como um sutilíssimo vapor que se coagula... e que se aproxima de mim... e me toca já, parecendo-me sentir os acariciantes contatos das folhas filigranadas das mimosas, e sobre mim expira aroma, o aroma picante dos giestais em flor, e em minha boca, depois, de repente, num sobressalto, sorve um longo beijo efusivo, caloroso, fremente...

Foi uma rajada tônica, salvadora, que me sacudiu os nervos um a um, fibra a fibra, neles vertendo não sei que amorável filtro de ternura e de carinho... Evaporaram-se as quimeras doidas, e sinto-me agora arrastado, muito calmo, por um abismo negro e silente, de quietação absoluta, — não sem que, fulgindo nessa embaladora negridão, como uma estrela cadente riscando o céu profundo, se me revelasse num momento o segredo daquela tulipa cor de carne...

Fora a tua graça, o teu sorrir, o teu frescor, as ondulações harmoniosas do teu corpo, as curvas que fluidificam as tuas formas, o lampejo rubro de teus lábios quentes, fora tudo quanto em ti é precioso, rítmico, divinal, que, esparso em átomos neste gabinete pequenino, se condensou, se aglomerou e se modelou naquela tulipa maravilhosa, de pétalas ondulantes, cujas pontas vermelhas esboçam um beijo prestes a partir...

Viana-do-Castelo, abril de 1914.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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