7/05/2019

Quem escuta... (Conto), de Brito Camacho



Quem escuta...
Se alguém lhe tivesse dito, noutro tempo, que ele ainda havia ser bafo, não se teria zangado, antes o próprio excesso da injúria atenuar-lhe-ia a gravidade a ponto de o fazer encolher os ombros com desdém, ou desatar a rir como um perdido.
O bufo, na sua opinião, é um polícia degradado, com um enorme coeficiente de baixeza, a expressão última do rebaixamento moral ao serviço dos poderes constituídos.
Pois ali estava armado em bufo, sem o clássico chapéu mole e a bengala grossa, como os bufos vulgares de Lineu, mas um bufo da melhor sociedade, vestindo como um gentleman, afetando quase os ares de um adido de embaixada passado à disponibilidade.
A gente sabe lá para que vem ao mundo.
Tinham-lhe corrido mal os negócios, e como perdesse o lugar numa Companhia em que estava empregado, vira-se quase de um dia para o outro sem recursos, a não ser o magro recurso de ir empenhar no Montepio alguns objetos de valor, que tinha em casa.
A mulher, filha de gente pobre, mas educada até ao casamento em casa de gente rica, tinha hábitos de viver bem, e ele não queria sujeitá-la a privações de qualquer espécie. Muitas vezes se lamentava de a não terem ensinado a trabalhar, que mais não fosse tratar dos arranjos da casa, remendar o fato do marido e confeccionar alguns artigos da sua toilette, os de menor importância. Era precisamente quando ela fazia tão justificadas lamentações que o marido sofria mais da sua pobreza a raiar pela indigência, sem reservas que lhe valessem até conseguir emprego ou ocupação de que tirasse os meios de subsistência. E então recorria ao prego, empenhando os objetos de valor que tinha em casa, fingindo a mulher que não dava pela sua falta. Um dia, tendo-lhe pedido dinheiro para uma sobrinha, cem escudos, ele declarou-lhe que não dispunha de tão avultada quantia, e lembrou-lhe que na loja do Grandela vira pela manhã, numa das montras, sombrinhas muito bonitas e muito mais baratas.
— Se hei de vestir como as sopeiras, então o melhor é concertar-me ou trabalhar a dias.
O melhor seria cingir-se às despesas absolutamente necessárias, aos gastos inevitáveis, aguardando resignadamente tempos menos difíceis. Não lho quis dizer, mas sentiu que não haveria mais paz no seu lar se continuasse desempregado, sem dinheiro para as despesas mínimas da sua casa, já quase sem o cômodo recurso do prego, porque lá tinha ido pendurar, em repetidos momentos de angústia, os objetos de valor que possuía, alguns de muito apreço artístico. E passava um dia atrás doutro dia, uma semana atrás doutra semana sem que luzisse uma esperança na tenebrosa escuridão da sua vida. A mulher deixara de ter exigências, mais conformada com a sua triste sorte, menos irritante e menos irritável, multiplicando os seus magros recursos por forma a ele acreditar no milagre do pão e dos peixes. Mas ele bem via que se aproximava a hora tenebrosa, a hora fatídica em que um dedo invisível, molhado em tinta, escreveria em todas as paredes da sua casa desguarnecida — Nada! Nada! Nada! — como no festim bíblico.
Foi quando um amigo o procurou, conhecedor da sua situação difícil, a convidá-lo para aquela torpeza, que era em todo o caso uma boia da salvação no oceano revolto da sua miséria negra.
Aceitou, está bem de ver.
Tinha certos quinze tostões por dia, mas arranjava outro tanto com emolumentos. Despesa com carros, para seguir um fulano, despesa nos cafés, para surpreender conversas, tudo isto lhe era abonado de fora parte, e com isso arredondava a sua diária por forma a viver à larga, como nos tempos das vacas gordas.
Ninguém desconfiava dele, vendo-o trajado com um rigor de gentleman, sem o chapéu mole e a bengala grossa dos bufos vulgares da Parreirinha. De modo que se aproximava de toda a gente sem acordar suspeitas, e quem o via à mesa de um café, rilhando o seu charuto e lendo o seu jornal, nem por sombras desconfiava de estar ali um bufo. Assim ele era o mais bem informado de todos os seus colegas, e em tão alto conceito o tinha o bufo supremo, que mais de uma vez pensou em o chamar para junto de si, tornando-o seu auxiliar e confidente.
Ora sucedeu que uma noite, estando sentado a uma mesa do café, rilhando o seu charuto e lendo o seu jornal, dois gomosos foram sentar-se à mesma mesa, não encontrando outra mais livre, e prosseguiram! sem fazer caso dele — um gentleman! — a conversa em que vinham da rua.
—... É de primeiríssima ordem. Tem recatos pudibundos de Vestal, e ao mesmo tempo tem a effronterie canalha de uma Vênus de prostíbulo.
— Bonita?
— De uma beleza que fala à alma e aos sentidos, que é, por assim dizer, feita de luxúria a de castidade. No seio esquerdo, junto à aureola mamilar, tem uma nodoazinha preta, como fosse a pelica de um i, e na coxa do lado direito, em tatuagem natural, uma espécie de malmequer, de um vermelho esmaecido, pondo uma nódoa simpática na alvura da sua pele macia.
— Solteira.
— Não, casada; mas vivendo numa grande liberdade. O marido é bufo, de modo que passa os dias e as noites por fora de casa, a espionar — quem sabe? — os amantes da mulher.
E mora?...
— Mora na rua de... nº tantos, segundo andar, lado esquerdo. Se quiseres...
Muito pálido, com bagas de suor na testa, o bufo ergueu-se a muito custo, como se estivesse pregado à cadeira, e saiu a cambalear como se estivesse embriagado. Levava nos ouvidos, como se fosse chumbo derretido, aquela revelação cruel, e se muito lhe custara afazer-se à condição de bufo, sentia que muito mais ia custar-lhe agora afazer-se à condição de veado.

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Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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