7/07/2019

Tísico (Conto), de Oscar Rosas



Tísico

Pelos bons dias de sol, anilados, claros, gloriosos e transparentes, ele deixava sempre o quarto, confortável aposento que sua mãe enchia de cuidados e de amor, e, trôpego, esgazeado e verde, lento como um caramujo lesmando a relva de um parque, encolhido e vegado em bodoque, com olhos cheios de fulgor e de saudade, uma menta azul ao pescoço, queimado a iodo, a barba crescida e um cigarro de palha à boca, ia para o jardim, acompanhando o criado que lhe levava o livro e a cadeira.

De grande sombra larga de uma folhuda mangueira da chácara fidalga em Santa Teresa via o mar, facetado e espelhento, rendendo-se em alvas espumas filigranadas sobre arrecifes à tona, amargo absinto de suicida, pátria adorada do marujo virulento da Albion, que o recorta, alta noite, silencioso e cauto, manchando-o com a vela nevoenta de uma galera veloz que tem por noite a estrela polar, brumoso diamante das regiões do urso branco; os navios do porto, a contravento, ensombrando a água, que os refletia de casco para o ar, arfavam as velas, carunchosas e remendadas, em estendais de mastaréus; ele sorria, serenamente pelos seus gastos pulmões ulcerados, pouco afeitos a uma temperatura de ar livre, asfixiados nas nossas construções doentias, as puríssimas lufadas salitrosas do vento da barra, que agitava no alto os coqueiros, arvorando-lhes plumas de esmeralda em apoteose; viu, ali bem em frente, suspender ferro para ir por mar em fora, a seguir correntes rápidas do gulf-stream, uma linda escuna soltar panos, extraordinária manobra de agilidade e ginástica, de vigor e de força que nos honra a espécie; percebeu o ruído fino das cordas assando pelas corrediças na grande faina de içar velas, acompanhou, vendo-os muito de perto, quase distinguindo feições, os marinheiros pelas vagas, o piloto ao leme, gritando, forçando tudo para encher o velame que batia, e o capitão, um mexicano sardento, de cachimbo aos dentes, a observar a perícia da tripulação, o céu, impostado de pelúcias e algodão de nuvens e a terra que ia ficar, e, quando uma mais forte rajada bojou todo o pano do barco, ainda parado, e o impeliu, adernando-o bizarramente, um ligeiro frisson agitou-o – o sopro de vida elétrico a empurrá-lo a despertá-lo ainda e a dar-lhe uns desejos de ir também, bronzeado à luz do Equador e cheirando a pesca, fazer a festa de Netuno, entre aclamações de uma maruja ruiva e forte que nos embebeda a baforadas de aguardente e a exalações alcatroadas de peixe; levantou então os seus encovados olhos cheios de febre e delírio e olhou a terra, embandeirada de tons, com linhas gigantescas de montanhas azuis no horizonte, cheia de rumor, cortada em casarios formando a cidade, com as suas casas de todas as cores, tão colorida, com as suas ruas estreitas e somente banhadas de um lado pelo sol, com as suas verduras tenras, com as amplas e rasas planícies, gramados, grandes campos de indústria pastoril, de boiadas, de rebanhos e cabras cinzentas a nivelarem a relva pastando-a, com as catedrais de zimbórios ovais porcelana, confusamente sombreando o firmamento e com as elevadas chaminés de tijolos vermelhos, a lembrarem vulcões, que baforassem gases negros de fumo torvelinhante e espiralado.

Tudo isso que ele via era a vida e ele sabia que ela estava para acabar, que não mais a cor, o aroma, a luz e o som o fariam vibrar, sentir, gritar intimamente, como um apunhalado.

Ele teve então uma grande saudade da natureza; ali mesmo, em derredor, nas polpas das dálias e das rosas, zumbia voluptuosamente todo um enxame de pássaros e de insetos a cantar triunfantemente a ária do amor, a canção do ninho, o ouro frio e fecundo do pólen e a grandeza da célula que guarda o óvulo, a poetizar enfim a reprodução da espécie.

As cigarras entonteciam-no; tal era a estridente cantaria que rebentava dos troncos e dos ramos; as encantadas flores dos flamboiants, que vinham, ladeira acima, em fila, desde baixo até sua casa, flores de carne palpitante, que enchem colmeias de mel e de perfume esquisito, lembravam-lhe, graciosa silhueta, o seu amor, uma dançarina trêfega e fresca que incendiava as plateias, levantando irritantemente a sua linda perna, que um saiote escarlate mais exaltava. Essa entontecedora papoula envenenou-o; a princípio todo um amor platônico ponteado de buquês de cravos e camélias enredou-os depois veio o beijo, o primeiro beijo dos amantes, fatal e inolvidável, que lhe levou a saúde, a força, o sangue e a vitalidade para aquela loba, que o estrangulava por noites consecutivas, nodoando-lhe a boca com chupões de tigre e afogando-o em louras goladas de champagne frapé, tomado com alarido pelas alcovas dos hotéis de crápula de bebedeira. Como ele achava a vida tão bonita! Levantou-se, e, a tossir, chegou até a grade, agarrando-a com as suas mãos magras, cheias de tecidos salientes e cor de cera de igreja.

Parecia-lhe que do azul, como uma fina sonoridade de cristal, raios do sol através caíam-lhe – harmoniosa chuva de sons de harpas celestes – as melodias do bailado, que ela, a dançarina, executava outrora no Lírico e reproduzia no ménage para encantá-lo para recriar o seu lindo amor.

Um coleiro, cantando perto, despertou-o e ele sorriu, a espetar, num sorriso ósseo de caveira, as maxilas na face. Foi sentar-se. A tosse, impiedosa e seca, despejava-lhe, aos poucos, os pulmões, que a tuberculose fazia cuspir em escarros de sangue.

A mãe chamou-o – que o sol ia descendo e que não apanhasse muito vento, disse-lhe que se recolhesse e que mesmo na hora do remédio. Ele obedeceu, e, lento, grave, ruas floridas do jardim através, entrou em casa, levando no sangue, que latejava, uma alta tempestade de febre que lhe carbunculava os olhos.

***

Ao entardecer ele queimava, delirando estertoricamente, como que vendo dançar, ouvindo música, batendo palmas, aplaudindo alguém.

Espalhou-se logo em casa que amanhecia, o médico e dissera ao ver-lhe equimoses nas unhas e outros vários sintomas da morte.

Tinham chegado os parentes e amigos da família e dentro daquela casa a morte provocava um alarma sincero de prantos e lamentos.

Junto ao leito do tísico, sua velha mãe, afetando uma serenidade heroína de ânimo, acariciando-lhe a testa, confiando-lhe os cabelos, revoltamente emaranhados. Ele, inteiriçado no leito, coberto por um lençol, jazia em estado de coma e a sua magreza esquelética dava-lhe grandes semelhanças com um Cristo arrebatado à cruz.

De vez em quando tossia e expelia esverdeados catarros nauseabundos com os íntimos fragmentos dos seus pulmões, que a lesão espedaçava.

Davam-lhe, cordiais morfina para acalmar a grande canseira que a tosse lhe deixava e para que ele repousasse; entretanto, o desgraçado enfermo, com as descarnadas mãos segurando o peito, gemia, acusando uma dor crônica no tórax e nas costas, como se tivesse uma espada varando-o mortalmente de lado a lado.

A morfina não conseguia adormecê-lo e o seu delírio aumentava, rasgando-lhe, muitas vezes, na cova esburacada da boca, uns sorrisos dúbios, dirigidos a alguém que não estava ali, mas que ele via rodopiando e bicos agudos de sapatinhos de cancã.

Entrou a querer levantar-se, sentando-se continuamente no leito, para logo cair, abatido pela fraqueza e, gesticulando, em altas vozes, pletórico, ele descrevia danças, ritonelos de valsas e bailados.

Na vizinhança havia festa numa casa rica e uma orquestra tocava. A cada clarinada, a cada silvo de pistom, a cada nota de ofcleid ou de trompa, que lhe chegava através da distância, o doente parecia arrepiar-se alucinadamente, e arregalava os olhos para fitar alguma coisa, que, num fantástico canário de época lírica, em deslumbramentos de cenografia, pasmava uma multidão, que só era atingível à sua ótica. Vestindo gases e filós prateados, dourados de lantejoulas, polvilhado à poeirada de ouro, que caía de cima, um fulvo bando alegre de aéreas mulheres cor de rosa, mas nos braços e no colo, nas pernas e nas coxas, ao ritmo estrelejado de compassos de música harmoniosa e doce, surgia-lhe, descrevendo pela cena, toda iluminada, passos difíceis de uma tarantela divina. Terníssimos arrastados violinos, de uma orquestra colossal, alemã, vibravam, enfeixando o ar de sonoridade e harmonia e, à proporção que os arcos roçavam nas cordas, que as fazia sibilar, rugir, gemer histericamente, as dançarinas, como bandos festivais de andorinhas, iam e vinham, para a frente e para trás, cancaneando diabolicamente. Os trombones e os rebecões enchiam a sala de tempestades melodiosas, e ele, então distinguia bem, no que lhe boiava continuamente na pupila e que mudava de cor, ou matizava-se em muitas, quando lá de dentro, por maquinismos de palco, lhe ativaram golpes de luz elétrica, verde, branca, amarela, azul, roxa e encarnada.

Continuava um solo de violinos na orquestra, habilmente domesticada à batuta de um saxônico de quem mal o tísico via as feições; agora extasiavam-no aquelas originalidades musicais, trêmulas, nervosas, quase com afetações, como a voz de uma menina, e, de repente, ele também pôs-se a cantar a música que ouvia – canto trôpego pela gangrena que lhe estrangulava a voz, tristíssima canção do tísico, ave-maria, ouvida silenciosamente, através de estepes, pelo campônio eslavo e católico – e que nada tinha de musical, porque era a ronqueira da morte que chegava, atropelando-lhe os sons na garganta e dando à agonia um uivo sinistro.

Parou de cantar, e, de mão ao ouvido, a abrir ansiadamente a boca dilatada pela protopineia, escutava ainda esse bailado original e estrangulante, que se diluía no seu ouvido à proporção que o sangue lhe gelava, música que se vaporizava nele como uma serenata em barco que se afasta, alta noite, com luar e estrelas, silencioso, por um longo rio sonolento e um zigue-zague; abriu, porém, mais os braços, que se agitavam como caudas de serpentes, mais atento buscou ouvir as clarinadas e caiu, enrijado e podre, sobre as almofadas do leito muito alvo, quando um padre, pálio aberto e olhos semicerrados, como um gato voluptuoso, chegava, fazendo tilintar, cristalina e metálica, pelo corredor, uma campainha do Santíssimo Sacramento.

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