Aluísio cursou as aulas primárias que aludi quando falei de Américo. Não consegui averiguar se estudou humanidades. Se o fez, foi irregularmente. Adquiriu, assim, por si a cultura que mais tarde veio a ter.
Muito
jovem, foi colocado pelo pai, como caixeiro, no escritório dum despachante da
Alfândega de São Luís.
Ele,
porém, que tinha invencível ojeriza ao comércio, dava largas ao gosto pelas
coisas de arte, aprendendo desenho, nas horas vagas, com o professor italiano
Domingos Tribuzi.
Mas
na aula, narra o ilustre João Afonso Nascimento, seu contemporâneo e amigo, era
um revolucionário, que se insurgia contra as regras e a rotina do mestre, paro
obedecer à impetuosidade do seu ardor juvenil, que o impelia o tentar obras que
somente artistas já feitos se atreveriam a empreender.
Foi
assim que, não conhecendo ainda regras elementares de desenho, pintou — a óleo!
— uma truculenta, uma pavorosa cena de barricado, a que não faltava imaginação,
e em que abundavam cores berrantes.
Mais
tarde, ao manejo, — em que se adestrou, — do pincel e do lápis, deveu ele, um
dos mais altos méritos de escritor. É que, antes de descrever os personagens
que nos seus livros se movimentam, ele as pintava, a aquarela, se eram belas e
boas, e caricaturava-as, a lápis, se eram ridículas ou más.
Esse
"processo", escrevi eu, “foi de certo o que lhe construiu um dos lados
mais vigorosos da obra literária, com a criação ou adaptação dos tipos que nela
vivem, sofrem, chovam, riem, palpitam, fremem e dominam, com o cunho
inconfundível que denuncia o artista, com a marra indelével que faz dos seus
gracejos imagens reais da existência e do meio, provocando uns o carinho,
outros a piedade, e assim, eles triunfam dentro da obra vencedora.
Embarcou
Aluísio para o Rio, e ali ficou dois anos, trabalhando, caricaturista, no
"Fígaro", no “Mequetrefe" e na "Revista Ilustrada”. A occisão
era muito ácida.
De
um lado, acontecimentos como a viagem de D. Pedro II à Europa, e a ruidosa
questão chamada “os trinto botões", provocada por uma charge com que
Bordallo Pinheiro suscetibilizou os melindres nacionais, davam ensejo à
atividade do seu lápis humorístico, e aos comentários feitos nas legendas das caricaturas
pela sua pena incisiva.
De
outro, Artur Azevedo estava no galeria da fama, com a representação sucessiva,
por mais de cem vezes, da peça filha de "Maria Angu", tradução e
adaptação célebre ópera cômica de Lecocq, "La fille de Madame Angot".
Aproveitando
a sua "récita de autor” e as estrondosas homenagens que então recebia,
Artur, chamado várias vezes à cena, trovou, em uma delas, da mão de Aluísio,
que se achava nos bastidores, levou-o ao palco, e disse à plateia: “Apresento
ao generoso público fluminense (naquele tempo ainda não se dizia
“carioca") Aluísio Azevedo, irmão do pai da filha de Maria Angu".
E
a plateia ovacionou freneticamente os dois.
Embora
assim acolhido no Rio. Aluísio retornou ao Maranhão, em 1879.
Então,
o caricaturista se fez jornalista, primeiramente em "A Flecha”, redigindo
uma seção humorística e assinando “Pitribi"; após, fazendo crônicos
cintilantes, em "O Pensador", jornal anticlerical, de um grupo de
moços (e cujo título ficou sendo a antonomásia pela qual era vulgarmente
conhecido Eduardo Ribeiro, que se faria engenheiro militar e seria governador
do Amazonas), e, mais tarde, assinando o pseudônimo “Lhinho", na
"Pacotilha", a resenha crítica dos outros Jornais da terra.
Ainda
nesse período de atividade na imprensa, publicou “Uma lágrima de mulher", farta
novela, vazada nos deliquescentes moldes românticos do tempo, moldes que logo
quebrou, seduzido pela escola naturalista, que transplantou para as letras
nocionais, e da qual foi uma das mais altas expressões no Brasil.
Em
1881, deu a lume “O Mulato".
Não
sei de outro romance-estreia que tão cedo e tão galhardamente tenha empolgado o
público letrado no nosso país.
Os
homens de letras mais eminentes e os críticos mais severos do Rio saudaram o
livro com carinho e entusiasmo.
E
o mesmo se deu em todas as outras Províncias.
No
Maranhão não foi assim, e, aliás, bem se explica por que assim não foi.
Por
uma parte, toda a sociedade local estava visceralmente interessada na questão
religiosa e na questão do elemento servil, e Aluísio, abolicionista convicto e anticlerical
ardoroso, carregando um tanto a mão nas tintas com que, ao sabor e ao impulso
das suas convicções, pintou certas cenas e certos tipos, teria forçosamente que
irritar aqueles que alimentavam ideias contrárias às suas, e eram a maioria.
Por
outra, o "maneira" realista não poderia deixar de ser chocante para quem
estava então acostumado a ler Lamartine, Pinheiro Chagas e Macedo.
Há
ainda que, em várias personagens do romance, notaram flagrantes semelhanças com
personalidades importantes de São Luís, e que eram indicadas, em voz alta, por
toda a gente, o que aumentava ainda mais a irritação, já reinante, com a dos
modelos apontados.
Ao
contrário de Coelho Neto, que era um fantasista, Aluísio era um impressionista.
Aquele escrevia o que a sua poderosa imaginação ideava; ele, o que a sua visão
aguda observava.
Provável
é, assim, que não poucos dos tipos que se veem em "O Mulato", sejam,
realmente, fotografias uns, e caricaturas outros, de gente que a toda hora via em
torno de si, e feitas, umas propositadas, outras quase inconscientemente.
Esse
acúmulo de circunstâncias criou para o livro um ambiente entre frio e hostil,
embora os amigos e companheiros do romancista recebessem com alacridade o seu
triunfo conquistado extra-fronteiras provinciais.
Um
só crítico, aliás poeta de mérito, a quem Aluísio aludiu no prefácio da 2ª edição
do romance (e não lhe repito aqui o nome porque sei quanto ele mais tarde se
arrependeu, e como se penitenciou da injustiça e da virulência da crítica), lá se
ocupou do romance, paro, em períodos ácidos, aconselhar o romancista a que largasse
a pena e fosse para a lavoura.
Aluísio,
como se sabe, rejeitou o conselho. Não sei se com a recusa foi prejudicada a
agricultura nacional... Sei é que as letras brasileiras muitíssimo lucraram.
Felizmente
com o escoar dos tempos, as paixões serenaram, os antipáticos arrefeceram. E
hoje não há no Maranhão quem não se envaideça haver sido um maranhense que
escreveu "O Mulato".
Esse
livro é, lá e fora de lá, tido muita gente, como, dentre quantos compôs Aluísio,
o melhor e o mais completo. É, realmente, admirável. Bastaria a fazer a
reputação de um romancista.
Mas,
de mim, hesito em dizer qual o mais bem feito dos seus romances: se "O Mulato",
ou se "O cortiço".
Pendo
— sempre que os leio — para aquele... que estou a ler, tanto me aprazem os dois
como, quase tanto, a "Casa de Pensão" e "O livro de uma sogra".
Voltando
para o Rio, Aluísio se fixou no romance, abandonando por completo o lápis de caricaturista,
e quase inteiramente a pena de jornalista.
Escreveu,
é exato, vários contos, e colaborou com Artur em diversas peças teatrais, obedecendo,
neste particular, à influência do irmão que, aos 15 anos de idade, em São Luís,
já escrevia a deliciosa comédia "Amor por anexins", longamente
aplaudida pelas plateias do Brasil inteiro.
Mas
romancista é que ele foi mais que tudo, e como tal sobre tudo vale.
Dos
seus romances, eu desejaria falar minuciosamente aqui dando um rápido resumo do
entrecho pelo menos de alguns.
Mas
quem de vós não os leu?
Quem,
entre todos vós, não se deliciou com os seus trechos descritivos, especialmente
da Natureza, como que "transplantada" para o papel pela propriedade
da sua adjetivação, e pela firmeza do seu estilo, que, na claridade singela e
honesta, deslumbra como um raio de sol?
Das
suas personagens, quem é que não se recorda de muitas, e não há topado com
algumas no tumultuar da vida?
Amiúde com
elas nos acotovelamos nas ruas, e temos a impressão de que foram arrancadas de
seus livros para a existência real.
Aqui,
é "Amância”, a velha irrequieta e nervosa, tagarela e maldizente, metediça
e desbocada, que passo pelas páginas de “O Mulato", indagando de tudo,
sabendo tudo e falando de tudo quanto havia pela cidade, barafustando por todas
as casas e sarilhando por todas as ruas, chocalhante e peçonhenta qual uma
cascavel.
Ali,
é o "Coqueiro", da "Casa de Pensão", indivíduo frouxo e
dessorado, amorfo e sem vontade, que se transforma bruscamente em herói, por um
crime a que o arrosta o achincalhe duma situação humilhante e ridícula.
Acolá,
é o "Jerônimo", o português cavouqueiro de "O Cortiço”, rude e
honesto, sóbrio e trabalhador, que o ambiente amolecedor da estalagem e os
capitosos atrativos da mulata "Rita Baiana" transmudam em desordeiro
e criminoso, devasso e beberrão.
Mais
adiante, "Olímpia" de "O livro de uma sogra”, mulher despida de
preconceitos e muito avançada do seu tempo, que, ignorada no que tem de
inteligente e de afetiva, arrosta com a inimizade e o ridículo, sem se importar
de que a tomem por caprichosa e má, desde que faça a felicidade da filha, a
quem ama com um amor profundo e raciocinado, feito de devotamento e de ternura.
É
ainda o "André", de “O Coruja", personagem que Aderbal de Carvalho afirma
ser irreal e meramente imaginária, quando é certo que ele é, apenas disfarçada
por alguns traços, a de um bacharel desfortunado e alcoólico, que vegetou no Maranhão
pela primeira metade do século passado, e que, por vestir sempre roupas usadas,
que antigos colegas mais felizes lhe davam, era conhecido pela alcunha de
"Roupa Velha".
Paro
que citar mais?
Tipos
como esses, magistralmente traçados, se encontram vários nos aludidos e nos
demais livros de Aluísio,livros que todo o Brasil que lia, leu quando foram publicados.
Com
os anos, os exemplares foram rareando nas livrarias, o que ficou sendo uma
ameaça ao devido conhecimento da obra do romancista pelas gerações
porvindouras.
Felizmente,
porém, o espírito empreendedor dos editores Briguiet-Garnier já encetou a
reedição de todos os seus romances e contos, e teve a boa intuição de confiar a
direção do trabalho à incontrastável aptidão e à infatigável atividade de M.
Nogueira da Silva, pronto sempre por a sua inteligência e a sua boa vontade a
serviço de tudo quanto se relaciona com as nossas letras, e, em particular, com
o cantinho que nascemos.
Há
ainda na obra de Aluísio dois méritos a realçar.
Um,
as dificuldades com que a realizou ele, que vivia, premido por aperturas
financeiras, numa casa de cômodos, mas não se privava de passear à tarde pela
rua do Ouvidor, trajado como “dândi", de cartola branca, fraque cinzento e
botinas de verniz, — às vezes pertencentes a companheiros de "república",
fato de que Coelho Neto dá testemunho em "A conquista".
Outro,
a honestidade de escritor que, apanhar com fidelidade cenas e tipos, não
hesitava em enfiar um casaco enodoado e umas calças remendados, e meter-se num
quarto sordidíssimo que alugou num cortiço, onde esteve ameaçado de travar
relações com a navalha dum "capoeira" convencido de que ele não era
senão um "secreta" disfarçado, desde que o viu, casualmente, na rua,
em elegante indumentária.
Tal
sistema de vida, de falso conforto e de privações reais, levou-o a procurar (ainda
os engrossadores solertes não haviam inventado o verbo "cavar"...),
um pouso estável e remunerador.
Após
efêmera passagem, como oficial-maior, pela Secretaria de Estado Fluminense, e
com a intercalação de uma nova era de aperturas, foi nomeado: vice-cônsul em Vigo
(1895 ), em Yokohama (1897) e no Solto (1899); cônsul em La Plata (1903),
Cardiff e Nápoles (1906); cônsul geral em Assunção (1910) e, (191 1),
cumulativamente com estas funções, adido comercial junto a todas as legações na
América do Sul, para servir nos quais fosse designado.
Despendeu
assim, na carreira consular, oito anos, dos cinquenta e seis incompletos que
viveu (14 de abril de 1857-27 de fevereiro de 1913).
Fato
curioso: colocado, mais nada, ou quase nada escreveu, pois desse período só se
lhe conhece, publicado, um admirável estudo comparativo da mulher japonesa com
a mulher norte-americana, e o qual vem na "Biblioteca Internacional de
Obras Célebres".
Porque
tamanha e tão lastimável inação, quando teve o pão garantido?
Várias
hipóteses se hão formulado para o explicar.
Alvitram
uns que ele escrevia, não por gosto, mas por necessidade, e, assim, quando não
mais necessitou, não mais escreveu. Outros, que, afastado do Brasil, sentiu que
lhe faltava o “meio" boêmio em que se fez, e fora do qual não sabia criar.
Ainda outros, que estacou no ansiado desejo de realizar uma obra de integral
perfeição artística, obra que imaginava, mas receava não poder escrever;
perfeição que, nos seus sonhos, ia duma fabulação absolutamente original a uma forma
literária impecável, e, mesmo, até uma caprichosa fatura material do livro.
E
foi assim que, na atividade burocrática, e na inatividade artística, escoaram
os derradeiros anos da sua existência, ensombrados por uma tênue nuvem de
melancolia, cuja causa ele não devassou nunca a ninguém.
Mas
gente de aguçada argúcia, ou gente daquela a quem agrada romantizar às vezes as
coisas mais prosaicas da vida deduziu o seu entediamento da separação de alguém,
em cujo retrato a aquarela, pintado em seda, e que não saía de cima da sua
banca de trabalho, se viam um “Quimono" bordado de crisântemos, e uns
doces olhos amendoados. Recordação de uma suave figura japonesa, a quem se
ligou em Yokohama, e que não o quis acompanhar mundo afora, no desejo de não
deixar sós os pais, velhinhos e encarquilhados, para os quais eram indispensáveis
o seu sorriso de "gueixa” a sua meiguice de "mussmé”.
---
Jornal do Comércio, 11 de abril de 1937.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Jornal do Comércio, 11 de abril de 1937.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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