9/29/2019

“Ao vencedor, as batatas” (Análise)



“Ao vencedor, as batatas”

Quem já se deu ao trabalho de examinar a obra de Darwin, mais especificamente o seu livro “A Origem do Homem”, não terá muita dificuldade em encontrar ali algum ponto em comum com as obras "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba" do nosso genial Machado de Assis. Tanto o Humanitismo quanto o Darwinismo atribuíam sentido de evolução até mesmo às tragédias da vida. Machado de Assis, que foi contemporâneo do naturalista inglês, fez uso da filosofia "Humanitas" como uma espécie de caricatura para exemplificar a teoria evolucionista tão em voga naquele momento, a qual exerceu grande influência entre os chamados "escritores naturalistas", sendo, aqui no Brasil, o seu principal expoente, o maranhense Aluísio Azevedo, cuja grande obra "O Cortiço" busca realçar as principais características que marcaram essa ideologia no fim do século XIX.

O trecho, a seguir, extraído do "Memórias Póstumas de Brás Cubas", remete de algum modo ao famigerado conceito de "sobrevivência do mais apto", ou como se diria naqueles idos tempos: "sobrevivência do mais forte":

— Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, por que a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum.

Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação.

Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

— Mas a opinião do exterminado?

— Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo, e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.

— Bem; a opinião da bolha...

— Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa. A higiene é filha de podridões seculares: devemo-la a milhões de corrompidos e infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, bolhas ficam na água.

***

Daí a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.

— Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.

Quis arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido, foi levar a sua fome a outra parte.

Notei que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada para os efeitos gerais da filosofia.

Nem deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo é mais grandioso: as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a inteligência do homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os séculos etc.

Sobre esta questão escreveram Adrian Desmond e James Moore, na obra "A Vida de um Evolucionista Atormentado: Darwin", publicado aqui no Brasil pela Geração Editorial (1995):

Na natureza de Darwin, os muitos caíam para que os poucos pudessem progredir. A morte adquiria um novo significado — e havia bastante dela por toda a parte: com o aumento no número de desempregados e desabrigados, os estatísticos médicos estavam compilando seus “livros-caixa da morte” (estatísticas de mortalidade) entre os moradores dos bairros pobres.

Os livros-caixa da natureza estavam sempre abertos; o ceifeiro sentava-se, coberto de negro, com a pena para riscar nomes permanentemente a mão. O progresso não era tanto um hino à beneficência divina quanto um canto fúnebre que acompanhava a luta selvagem. Tanto a ciência darwiniana quanto a sociedade da Lei dos Pobres estavam agora reformadas de acordo com as linhas competitivas de Malthus.

Mas Darwin acreditava que a guerra colonial era necessária “para fazer os destruidores se diversificarem” e se adaptarem ao novo terreno. A destruição estava se tornando parte integrante de sua concepção malthusiana da humanidade:

"Quando duas raças de homens se encontram, elas agem precisamente como duas espécies de animais. — Elas lutam, comem-se uma à outra, trazem doenças uma para a outra etc., mas, depois vem a luta mais mortal, a saber, a que faz a organização mais adequada, ou os instintos (isto é o intelecto no homem), ganhar o dia".

Os “mais fortes estão sempre extirpando os mais fracos” e os britânicos estavam vencendo todos. A expansão imperial encerrou o isolamento das raças indígenas e impediu seu desenvolvimento por outros caminhos.

Mas a pressão populacional de Darwin empurrava as espécies até seu limite de outras maneiras. A compressão era uma força criativa. O superpovoamento que enviava barcos cheios para as colônias implicava que apenas os animais com uma vantagem competitiva sobreviviam.

No outro romance de Machado de Assis, “Quincas Borba”, a personagem Rubião, que tinha herdado toda a fortuna do “filósofo” Quincas, morre pobre, louco e abandonado; contudo, em contrapartida, como bem pregava a “filosofia” do Humanitismo, Palha e Sofia ficaram ricos à custa da desgraça do miserável homem. Acerca disto escreveu o crítico Antônio Cândido: “Os fracos e os puros foram sutilmente manipulados como coisas, e em seguida são postos de lado pelo próprio mecanismo da narrativa, que os cospe de certo modo e se concentra nos triunfadores.” No livro a personagem Rubião inicia como um simples homem, em seguida perde o juízo e acaba como um pobre bicho, fustigado pela fome e a chuva, no mesmo nível que o seu cachorro.

É isso!

IBA MENDES
São Paulo, 2008.

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