Quem já se deu ao trabalho de examinar
a obra de Darwin, mais especificamente o seu livro “A Origem do Homem”, não
terá muita dificuldade em encontrar ali algum ponto em comum com as obras
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba" do nosso
genial Machado de Assis. Tanto o Humanitismo
quanto o Darwinismo atribuíam sentido
de evolução até mesmo às tragédias da vida. Machado de Assis, que foi
contemporâneo do naturalista inglês, fez uso da filosofia "Humanitas"
como uma espécie de caricatura para exemplificar a teoria evolucionista tão em
voga naquele momento, a qual exerceu grande influência entre os chamados "escritores
naturalistas", sendo, aqui no Brasil, o seu principal expoente, o
maranhense Aluísio Azevedo, cuja grande obra "O Cortiço" busca
realçar as principais características que marcaram essa ideologia no fim do
século XIX.
O trecho, a seguir, extraído do
"Memórias Póstumas de Brás Cubas", remete de algum modo ao famigerado
conceito de "sobrevivência do mais apto", ou como se diria naqueles idos
tempos: "sobrevivência do mais forte":
—
Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode
determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida,
por que a supressão de uma é a condição da sobrevivência da outra, e a
destruição não atinge o princípio universal e comum.
Daí
o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas
tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que
assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há
batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do
campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz,
nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação.
Uma
das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória,
os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações
bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se,
pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou
vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que
virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.
—
Mas a opinião do exterminado?
—
Não há exterminado. Desaparece o fenômeno; a substância é a mesma. Nunca viste
ferver água? Hás de lembrar-te que as bolhas fazem-se e desfazem-se de contínuo,
e tudo fica na mesma água. Os indivíduos são essas bolhas transitórias.
—
Bem; a opinião da bolha...
—
Bolha não tem opinião. Aparentemente, há nada mais contristador que uma dessas
terríveis pestes que devastam um ponto do globo? E, todavia, esse suposto mal é
um benefício, não só porque elimina os organismos fracos, incapazes de
resistência, como porque dá lugar à observação, à descoberta da droga curativa.
A higiene é filha de podridões seculares: devemo-la a milhões de corrompidos e
infectos. Nada se perde, tudo é ganho. Repito, bolhas ficam na água.
***
Daí
a pouco demos com uma briga de cães; fato que aos olhos de um homem vulgar não
teria valor. Quincas Borba fez-me parar e observar os cães. Eram dois. Notou
que ao pé deles estava um osso, motivo da guerra, e não deixou de chamar a
minha atenção para a circunstância de que o osso não tinha carne. Um simples
osso nu. Os cães mordiam-se, rosnavam, com o furor nos olhos... Quincas Borba
meteu a bengala debaixo do braço, e parecia em êxtase.
—
Que belo que isto é! dizia ele de quando em quando.
Quis
arrancá-lo dali, mas não pude; ele estava arraigado ao chão, e só continuou a
andar, quando a briga cessou inteiramente, e um dos cães, mordido e vencido,
foi levar a sua fome a outra parte.
Notei
que ficara sinceramente alegre, posto contivesse a alegria, segundo convinha a
um grande filósofo. Fez-me observar a beleza do espetáculo, relembrou o objeto
da luta, concluiu que os cães tinham fome; mas a privação do alimento era nada
para os efeitos gerais da filosofia.
Nem
deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo é mais
grandioso: as criaturas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros
manjares menos apetecíveis; luta que se complica muito, porque entra em ação a
inteligência do homem, com todo o acúmulo de sagacidade que lhe deram os
séculos etc.
Sobre esta questão escreveram Adrian
Desmond e James Moore, na obra "A Vida de um Evolucionista Atormentado:
Darwin", publicado aqui no Brasil pela Geração Editorial (1995):
Na
natureza de Darwin, os muitos caíam para que os poucos pudessem progredir. A
morte adquiria um novo significado — e havia bastante dela por toda a parte:
com o aumento no número de desempregados e desabrigados, os estatísticos
médicos estavam compilando seus “livros-caixa da morte” (estatísticas de
mortalidade) entre os moradores dos bairros pobres.
Os
livros-caixa da natureza estavam sempre abertos; o ceifeiro sentava-se, coberto
de negro, com a pena para riscar nomes permanentemente a mão. O progresso não
era tanto um hino à beneficência divina quanto um canto fúnebre que acompanhava
a luta selvagem. Tanto a ciência darwiniana quanto a sociedade da Lei dos
Pobres estavam agora reformadas de acordo com as linhas competitivas de
Malthus.
Mas
Darwin acreditava que a guerra colonial era necessária “para fazer os
destruidores se diversificarem” e se adaptarem ao novo terreno. A destruição
estava se tornando parte integrante de sua concepção malthusiana da humanidade:
"Quando
duas raças de homens se encontram, elas agem precisamente como duas espécies de
animais. — Elas lutam, comem-se uma à outra, trazem doenças uma para a outra
etc., mas, depois vem a luta mais mortal, a saber, a que faz a organização mais
adequada, ou os instintos (isto é o intelecto no homem), ganhar o dia".
Os
“mais fortes estão sempre extirpando os mais fracos” e os britânicos estavam
vencendo todos. A expansão imperial encerrou o isolamento das raças indígenas e
impediu seu desenvolvimento por outros caminhos.
Mas
a pressão populacional de Darwin empurrava as espécies até seu limite de outras
maneiras. A compressão era uma força criativa. O superpovoamento que enviava
barcos cheios para as colônias implicava que apenas os animais com uma vantagem
competitiva sobreviviam.
No outro romance de Machado de Assis,
“Quincas Borba”, a personagem Rubião, que tinha herdado toda a fortuna do
“filósofo” Quincas, morre pobre, louco e abandonado; contudo, em contrapartida,
como bem pregava a “filosofia” do Humanitismo, Palha e Sofia ficaram ricos à
custa da desgraça do miserável homem. Acerca disto escreveu o crítico Antônio
Cândido: “Os fracos e os puros foram sutilmente manipulados como coisas, e em
seguida são postos de lado pelo próprio mecanismo da narrativa, que os cospe de
certo modo e se concentra nos triunfadores.” No livro a personagem Rubião
inicia como um simples homem, em seguida perde o juízo e acaba como um pobre
bicho, fustigado pela fome e a chuva, no mesmo nível que o seu cachorro.
É isso!
IBA MENDES
São Paulo, 2008.
São Paulo, 2008.
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