
Celebrando
a Machado de Assis

Poeta, rimando sonhos nas manhãs da adolescência, ele aparece,
em momento de transição, entre os ultra-românticos ululantes ou possessos,
fracos herdeiros daquela forte geração que abriu o século, e os parnasianos da
Musa impassível, dispostos a lavrar o verso como matéria preciosa e fria; o
senso da harmonia — inato no seu espírito como no de um ateniense — ensina-lhe
a evitar, com igual zelo, ambos os extremos, mostrando-lhe bem que a estrofe
não pode ser o eterno tubo lacrimejante dos funerais arcaicos, ou o banal
porta-voz de retóricos furores, mas que também reduzir a poesia a mera arte
imitativa ou plástica é, não só baixar-lhe o nível, mas restringir-lhe ordinariamente
o horizonte. Em verdade, desde então, os seus versos revelam, como feição
predominante, um justo equilíbrio entre a essência e a forma, segundo se nota em
particular nas composições dos gregos. E com certos gregos tem ele pontos de afinidade;
não falo nos arroubos de Píndaro, ou nas exuberâncias fogosas de Alceu; mas não
o reconheceriam por parente Minermo, Simônides, Anacreonte? Justamente Uma ode de Anacreonte, que se lê nas Falenas, o velho de Téos não a faria com
mais elegância, nem com tanto sentimento. Semelhanças se acharão também entre
Machado de Assis e os bons quinhentistas, cujas redondilhas tão límpidas e
conceituosas especialmente lhe agradam. Mas, para diferenciá-lo dos gregos, há
o grande fato do Cristianismo, que, conquistando todas as gentes, a ninguém permitiu
mais ser pagão, nem a Gautier, nem a Carducci, nem ao mesmo Goethe; e, para
distanciá-lo dos quinhentistas, aparecem outros elementos, como a Reforma, a Enciclopédia,
a Revolução Francesa, e os graves problemas sociais que não preocupavam os
entendimentos naquela ara de navegações e descobertas... Mas vê-se que Machado
de Assis bebeu inspiração nas mesmas fontes que Garrett, de quem tem a graça
meditativa e mórbida, sem ter de certo as áscuas do seu candente lirismo. Ele
nasceu bem na sua época, e é deveras um moderno, a despeito de muita coisa que
o fere acaso nos modernos costumes, a despeito dos clássicos encantos com que a
sociedade antiga lhe acena dos seus longínquos nimbos. Excluo a Idade Média;
então o seu libérrimo espírito o tornaria suspeito a todos os tiranos, e o
apontaria aos rigores do Santo Ofício... Nas Falenas e nas Americanas,
como nas Crisálidas, já se manifesta,
traço saliente da sua estética, a melancolia; mas é a melancolia genérica do
sonhador, vaga e quase voluptuosa, não a melancolia característica do
pessimista, raciocinada e resignada a um tempo, que ressumbra em composições
ulteriores, como o Círculo vicioso e
a Mosca azul.
Também foi gradualmente que na prosa se desenvolveu a sua índole
de maravilhoso humorista, que no Brás Cubas atingiu o sumo grau de
originalidade e independência. Os prenúncios de tal pendor apenas se lhe adivinham
nos primeiros contos e romances pela preocupação psicológica e moralística; mas
ainda os caracteres humanos lhe fornecem antes recursos dramáticos para o
enredo e o desenlace da ação que estímulos para o exercício da sua magistral
ironia.
Essa flor amarela
e mórbida do desencanto, sem dúvida
uma forma, e das mais requintadas, da sabedoria, só pode ser, num indivíduo ou
num povo, resultado de longo cultivo, de complicada evolução. Como se engendrou
e desabrochou ela no espírito de Machado de Assis? Para a sua alma,
delicadamente, angustiosamente sensível, tanto como refletida e analista, a
experiência deve ter caminhado depressa ora, no espetáculo da realidade, dois fenômenos
capitais sobretudo o impressionam, quando ele considera o homem face a face com
a natureza a que pertence: um é a sua pequenez, a sua quase nulidade como fator
na ordem universal, sujeito qual está sempre a um encadeamento de leis que não formula
a seu talante e não pode suspender ou ab-rogar; outro é a sua insignificância
mesmo no foro íntimo, tantas causas conhecidas e desconhecidas concorrem lhe
para enfraquecer o livre arbítrio até nos mínimos atos.
Assim, os personagens de Machado de Assis são geralmente
caracteres indecisos, hesitantes, atormentados pela moléstia da dúvida; incoerentes? contraditórios? de acordo; mas
verdadeiros por isso mesmo. O ziguezague está mais na lógica real que a linha
reta; nada tão comum como a dualidade, a multiplicidade até de uma alma humana;
algumas há de uma só peça, mas são tão raras! Também ninguém melhor que Machado
de Assis acompanha e traduz as modificações lentas que sofre uma ideia até
tornar-se volição e ato. Vede o caso dos cinco contos de réis no Brás Cubas, e o da Atalaia com o Rubião do Quincas
Borba, e ainda o estudo magnífico do Enfermeiro
nas Várias Histórias. Compreendo que,
por vezes, os comentários do escritor se vos afigurem perversos, sendo somente justos.
Um único homem ousou desnudar-se ante a posteridade, mostrar-se tal qual era;
foi Rousseau nas Confissões; e fez
logo a impressão de um monstro... Machado de Assis por sua parte, descobrindo em
flagrante certos cantinhos obscuros de humanidade, ilumina-os de súbito com uma
frase fulgurante. O leitor protesta, ofende-se, brada: Maldizente crítico! E,
entretanto, ali não há mais que a tranquila constatação de um fato. Basta, por
exemplo, um trocadilho; como quando ele diz: "Marcela morria de amores pelo
Xavier. Morria, não. Vivia. Viver não é o mesmo que morrer, segundo afirmam
todos os joalheiros deste mundo..." A atitude do autor é a de juiz
severamente minucioso no inquérito e indulgente na sentença, porque, no seu
critério, as circunstâncias atenuantes não escasseiam; mas estas só aproveitam
a cada indivíduo, e não ao conjunto dos seres, à maneira por que está
organizado o mundo, onde a parte do erro suplanta a da razão... Tudo isso já
indica bastante que a sua filosofia não pode ser alegre. Eu acredito que a
princípio o estoicismo secretamente o atraísse como o ideal das escolas. Mas
nem todos chegam à perfeição de professar que a Dor é uma ilusão; Machado de
Assis não tem o caráter duro que o estoicismo pede, e para ele a Dor é uma indubitável
e inevitável realidade; o prazer é que não passa, acaso, de dor abortada... Ora,
se nos cumpre a todo o transe suportá-la, suportemo-la ao menos com espírito; e
se nenhum esforço nos subtrai ao jugo férreo do Destino, mostremos a nossa superioridade
de entes racionais, não envergonhando-o, que ele tem a face rija e cínica, mas
escarnecendo-o sem cólera... Então, a ironia é a grande arma; simplesmente, é
uma arma de dois gumes, que fere também os que usam dela.
E a ironia de Machado de Assis é particularmente acerba.
Comparai-o com os humoristas ingleses, sobretudo com Sterne, a quem o ligam
algumas semelhanças de forma; aqueles são mais zombeteiros e menos profundos,
interessando-se especialmente pelos contrastes graciosos e grotescos; Machado de
Assis busca antes, ou encontra sem os buscar, contrastes moralmente trágicos; o
próprio Heine não vai tão longe como ele nesse ponto, nem Anatole France, que
em não poucas páginas recentes lembra assaz o nosso autor. Portugal tem hoje o
seu grande humorista: Eça de Queirós; mas este não é porventura tão amargo no
brilho violento e militante dos seus períodos, como Machado de Assis na
mansidão quase ingênua com que expõe os seus trechos de doutrina. Há tal capítulo
no Brás Cubas que, à primeira vista, desperta
irresistivelmente o riso; e depois deixa nos lábios um sabor de fel —
recordando o riso provocado por aquela erva venenosa... precisamente: o riso sardônico. Machado de Assis é,
pois, de algum modo, um demolidor de ilusões e talvez de teorias, demolidor sem
ódios nem exageros. Mas, em compensação, quantos e que altos monumentos de estilo
tem construído! Porque o estilo é uma das condições superiores que asseguram a
imortalidade à sua obra. Antes de tudo, ele possui na linguagem um instrumento
admirável de expressão, conciliando a pureza castiça do idioma clássico com a
maleabilidade, a precisão, a força sintética que exige a literatura moderna.
Sóbrio, exato, singelo por gosto e não por pobreza de vocabulário, ele não
descura as qualidades musicais do período; tem o habito da frase bem feita, de
tal jeito que as suas crônicas, e não raro as suas cartas, se podem ler como páginas
de livro. Aqui e ali, muita gente lhe achará capítulos pouco claros, ou
excessivamente pálidos; mas isso acontece quando o pensamento mesmo é cheio de
reservas e distinções, ou sutil demais, quase intraduzível em palavras. De
resto, convenho em que pessoas simplicistas se desesperarão com frequência, ao
ler alguns dos seus livros. Lembra-me um amigo desta classe a quem emprestei o Brás Cubas; restituiu-mo ao fim de
poucas horas. "Não o entendo — disse-me — perdi quatro ou cinco vezes o
fio da ação." E tinha razão; porque a ação para Machado de Assis não vale
por si própria, como para os romancistas dramáticos;
vale unicamente como motivo de
interpretação. Por isso ele não se apressa, como não se apressa o sábio que
estuda um fenômeno curioso, e se preocupa só com as condições do experimento. Também
trata de quando em quando o leitor com essa absoluta sem-cerimônia que desnorteia
os Acácios, e não trepida em mistificá-lo
se é preciso. Il ne se gêne pas. "Não
é impossível que eu desenvolva este pensamento antes de acabar o livro; mas também
não é impossível que o deixe como está." Em outro ponto, depois de narrar episódios,
intrigas, conseqüências de um baile, interrompe-se para notar de passagem : "Este
baile — ia-me esquecendo dizê-lo — era em casa do Camacho." Outra coisa
que ele desdenha são os efeitos retóricos; detesta a ênfase e a hipérbole tanto
como a banalidade. Assim é que numa página do Brás Cubas, tendo exposto certa opinião em frases levemente oratórias,
logo zombando, acrescenta: "Vive Deus! eis! um bom fecho de capítulo!"
Há leitores que não perdoam essas liberdades...
Compreende-se que, com tais tendências, ao seu estilo falte
por vezes movimento, ao menos movimento físico, ainda que o delírio de Brás Cubas nos dê em traços
de Buonarotti a marcha épica das idades. Ajuntarei a propósito que as suas
comédias são animadas, lépidas, ligeiras, sem digressões nebulosas que tolham a
viva cidade do diálogo, e a distribuição bem cabida das cenas uma dela, o tu, só tu, puro amor, considera-o Teófilo
Braga a melhor composição dramática existente sobre Camões. Mas eu imagino que
Machado de Assis se trabalhasse habitualmente para o teatro, destinaria as suas
peças a um auditório sumamente restrito, por que, assim como a hilaridade
grosseira, lhe repugnam os lances violentos que entusiasmam o povo; as situações
emocionantes que ele prefere são todas de nuanças e há nuanças terrivelmente
trágicas... Do teatro antigo o drama favorito para Machado de Assis é suponho
eu, o Prometeu e do teatro moderno o Hamlet. Um concretiza a sua concepção
humana, o outro fala a linguagem do seu temperamento.
Os recursos descritivos não entram na sua esfera usual de
observação; não que ele rejeite a descrição quando o assunto lha impõe; mas não
se compraz nela, nem a procura intencionalmente. Os objetos lhe interessam
menos pelo aspecto pitoresco que pelo sentido íntimo e pelas relações mútuas.
Para ele, certamente, "a paisagem é um estado de alma". Isso não significa
que Machado de Assis trate os seus personagens como simples sinais algébricos,
ou meros símbolos imaginários. Gosta de no-los apresentar principalmente quando
valem a pena disso, como a formosa Virgília: "Era dessas figuras talhadas
em pentélico de um lavor nobre, rasgado e puro, como as estátuas, mas não apática
nem fria. Ao contrário tinha o aspecto das naturezas cálidas, e podia-se dizer
que na realidade resumia todo o amor..." Os seus olhos "davam uma
sensação singular de luz úmida", e a sua boca era "fresca como a
madrugada, e insaciável como a morte". As mulheres evocadas por Machado de
Assis — para quem o eterno feminino é um vasto elemento moral — têm de
ordinário uma soberania de beleza, de sedução, de resistência ou mesmo de
virtude, que lhes confere a vitória na luta com o sexo rival. Perversa não vejo
nenhuma; perturbadoras há muitas, e de penosa decifração. Se é licito tomar uma
comparação à pintura, — direi que essas mulheres não semelham às Sibilas hercúleas
de Miguel Ângelo, às suaves e sadias camponesas de Rafael, nem às donzelas
esguias e místicas de Fra Angélico, nem às ninfas robustas e sensuais de Rubens;
semelham às criaturas estranhas e complexas de Leonardo de Vinci. Leitor, se
algum dia viste no Louvre a Gioconda,
esquecer-lhe-ás jamais o sorriso singularmente enigmático e cético, o mesmo da Leda que na Villa Borghese reina, com a
sua nudez triunfante, dourada carinhosamente pelo tempo?...
E as conclusões do filósofo? São de um pessimismo consumado.
O Brás Cabas termina assim : "Há
um saldo a meu favor: Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o
legado da nossa miséria". Reparai agora como acaba o Quincas Borba: "Chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas.
Se só tens riso, ri-te. É a mesma coisa. O Cruzeiro do Sul, que a linda Sofia
não quis fitar como lhe podia Rubião, está assaz alto para não discernir os
risos e as lágrimas dos homens".
Portanto, a existência é miséria, e os astros contemplam indiferentes
os nossos infortúnios. Mas não haverá para alem dos astros alguém compassivo e
remunerador — essa Justiça imanente que é ao mesmo tempo imanente Misericórdia?
Cuido não errar afirmando que Machado de Assis, na sua consciência, tem a fé
intensa com que se apela das iniquidades transitórias para a Suprema Sabedoria,
que concerta e harmoniza as aparentes contradições do universo. Demais, ele
está longe de ser um blasé. Zombar de
certas ilusões não é dizer que tudo seja ilusão, como discutir aparências de
virtude, não é negar a virtude mesma. Ele acha seguramente que a vida, apesar
dos seus lados mesquinhos tem muita coisa digna de afeto e culto; crê nos sentimentos
fundamentais do homem, crê também na Arte nessa Musa consolatrix, de quem fala com paixão não menor que a de Cícero
celebrando os seus caros estudos no meio das discórdias civis. A ela, à suprema
apaziguadora, à mágica deidade que "muda o agudo espinho em flor cheirosa",
à meiga e carinhosa enfermeira que sana todas as feridas e consola de todas as
decepções, deve Machado de Assis os seus momentos de mais grato e produtivo sossego,
longe do frívolo combate em que as gentes se digladiam para conquistar bens efêmeros,
cuja posse, as mais das vezes, não corresponde à intensidade do desejo...
Deve-lhe também a imensa vantagem de partilhar todos os gozos espirituais deste
século tão rico deles, sem ter sabido nunca do seu recanto sul-americano; pois
uma fina e rara intuição substitui na sua mente o proveito das viagens; de tal
modo que o meio nacional, ou antes fluminense, dominante nas suas obras,
adquire, através de tão especial temperamento, sem perder a sua exatidão, uma
peregrina transcendência que o tornaria interessante para os estrangeiros como
para nós mesmos. De resto ser bom é ainda um dos meios mais seguros de ser
feliz, e Machado de Assis é nobremente, essencialmente, bom. Quando um artista
está como caráter abaixo do seu próprio engenho, o público nada tem a ver com
isso, porque os vícios dele não devem prejudicar o brilho da sua obra. Mas a
superioridade moral em equilíbrio com a superioridade intelectual forma um tão
belo conjunto que provaria mau gosto, mesmo estético, quem o olhasse com indiferença.
E essa esquisita harmonia que faz do Presidente da Academia Brasileira o
orgulho dos seus amigos entre os quais me honro de ser contado; e ela é também para
mim a garantia de que quantos o prezam e admiram terão em ler este estudo o
mesmo prazer com que eu o escrevi.
---
MAGALHÃES DE AZEREDO
Revista
Moderna, 5 de novembro de 1897.
Pesquisa
e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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