"Contos Gauchescos" e "Lendas
do Sul"
Estas
duas obras são impressas num volume só. São sem dúvida as duas maiores obras do
grande escritor patrício. Nestas obras ele mostra, sem dúvida, que é um dos
mestres mais alto do nosso regionalismo, em todos os tempos, vivendo e fazendo
o Rio Grande do Sul sentir, pulsar e sofrer em seus contos. Ele nos deu nestas
duas obras todo o panorama, a paisagem, a alma dos seus rincões. Abrindo estas
obras o que nos banha logo é um sopro desses imensos pampas do Rio Grande — com
sua cor local, com seus vaqueiros indômitos, com seus costumes que as vezes
diferem tanto do resto do Brasil, com sua linguagem meio espanhola, aberta,
graciosa, demorada e pitoresca, toda música. E concluímos que Simões Lopes Neto
é o único com capacidade peculiar de expressar o encanto secreto e vago da sua
gente. Cremos que não há no conto brasileiro muitas páginas que se igualem, em
emoção e ternura, a esta intitulada "O boi velho", síntese
maravilhosa da vida animal feito para servir em humildade e sinceridade, e do
coração do homem feito de ingratidão, de malícias, de perversidade, quando não
apenas de indiferença.
Simões
Lopes Neto é magistral em encontrar esses secretos mecanismos das almas dos
homens, das almas dos bichos, das almas das coisas e das paisagens. Se ele fosse
um escritor de outra língua, inglesa ou francesa, seu renome, hoje, correria o
mundo, como corre o de um Kipling.
Esse
dom de recuperação interior que o sortilégio de uma arte sem mistura tem o
poder de acordar em nós — e aqui se abre a perspectiva humana e universal do
regionalismo de Simões Lopes — nos lembra um dos passos mais comoventes de seus
contos. Blau Nunes, o campeiro de "alma forte e coração sereno",
perdera trezentas onças que não eram suas e estava desesperado. Quem é que ia
acreditar que as moedas não tinham sido escamoteadas por ele mesmo?... E assim
pensando, já engatilhava a pistola junto ao ouvido, para fugir à sua vergonha,
quando, ao olhar em torno, como quem se despede de tudo, eis que se dá o
milagre:
No
refilão daquele tormento, olhei para diante e vi... as Três-Marias luzindo na
água... o cusco encarapitado na pedra, ao meu lado, estava me lambendo a mão...
e logo, logo, o zaino relinchou lá em cima, na barranca do riacho, ao mesmíssimo
tempo que a cantoria alegre de um grilo retinia ali perto, num oco de pau!...
—
Patrício! não me avexo duma heresia; mas era Deus que estava no luzimento
daquelas estrelas, era ele que mandava aqueles bichos brutos arredarem de mim a
má tenção...
O
cachorrinho tão fiel lembrou-me a amizade da minha gente; o meu cavalo
lembrou-me a liberdade, o trabalho, e aquele grilo cantador trouxe a
esperança...
Eh-pucha!
patrício, eu sou mui rude... a gente vê caras, não vê corações...; pois o meu,
dentro do peito, naquela hora, estava como um espinilho ao sol, num descampado,
no pino do meio-dia: era luz de Deus por todos os lados!...
E
já todo no meu sossego de homem, meti a pistola no cinto. Fechei um baio, bati
o isqueiro e comecei a pitar."
Em
pleno fatígio de uma literatura "art nouveau", Simões Lopes, guiado
pela intuição de um artista nato, escrevia com uma sobriedade e com rasgos de
economia estilística que surpreendem.
É
possível que a experiência do teatrólogo, anterior à obra do ficcionista, leve
sua parte na extrema vivacidade de uma prosa por vezes tão dramática na contensão
de seus elementos expressivos, e sempre tão segura no seu poder de comunicação.
Vem daí que frequentemente damos por nós a ler os contos de Simões Lopes em voz
alta, como diante de um auditório. Seu verbo chega a contrair-se a tal ponto
que parece, aqui ou ali. deixar livres a ação ou a emoção que pulsam dentro
dele. É então, uma e outra, assim soltas, como que reclamam a participação
ativa do leitor. As imagens, os diálogos, as breves manchas de paisagem,
parecem que dispensam as palavras e saltam do texto numa animação de formas
vivas.
Moysés
Vellinho, em seu livro Letras da Província
nos diz: "São forte e puras as páginas de Simões Lopes. Sem qualquer contaminação
mórbida, sem compromissos com o insondável mundo das complexidades interiores,
sua pequena obra se oferece como um retorno ao paraíso perdido das coisas
simples. O que ela nos mostra, sob uma atmosfera saudável e viril, são
criaturas inteiriças, fiéis à lei do instinto, para o bem ou para o mal,
nenhuma mistura, pois a mistura leva à dúvida e à confusão.
Todos
caminhos são claros e abertos, e nos restituem a um mundo onde o milagre
acontece a cada momento: "Caiu a serenada silenciosa e molhou os pastos,
as asas dos pássaros e a casca das frutas".
Entretanto,
os tempos foram passando, e hoje, há quarenta anos do desaparecimento do grande
regionalista, aí está a impressionante trajetória que sua estrela já descreveu.
Quebrado o silêncio que sufocara o surto de seu nome, silêncio que nem o fato
da morte lograra romper, a figura literária de Simões Lopes Neto, como que aos
poucos emergindo de um quase anonimato, acabou transpondo os estreitos muros de
sua cidade e projetando-se muito além do simples âmbito regional.
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Jornal
"Pioneiro", 18 de março de 1978.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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