No complexo cultural rio-grandense, destacaremos, hoje, a contribuição da literatura no Rio Grande do Sul como fato de uma cultura permanente.
Assis
Brasil, o grande rio-grandense, o mais autêntico dos maragatos que cruzaram nosso
pampa, quando dizia: "o arado educa a terra, o livro amaina a alma",
talvez tivesse em mente o escritor gaúcho que, ainda hoje, melhor representa
aquilo que o Rio Grande do Sul guarda de mais real, no âmago telúrico de suas
tradições: João Simões Lopes Neto.
Muitos
anos depois de haver caído sobre o corpo e a memória do escritor, a lápide
final, quando Simões Lopes Neto era, em Pelotas, na sua própria terra natal,
apenas, uma recordação dos amigos e uma imprecisa lembrança popular, por uma
daquelas transfigurações temporais, repetidas mas incomuns, a História se
levantou e, suspendendo os juízes falazes, manejando o raio olímpico dos
julgamentos definitivos, levantou da tumba o pálido e tímido escritor
provinciano, amparou-lhe os passos, insuflou-lhe luz no olho morto, e animou a
máscara angulosa, um pouco imprevista, e, afastando os circunstantes para surpresa
de todos, inclusive do próprio escritor, deu ao pobre e humilde rapsodo dos "Contos
Gauchescos", publicado em 1912, e"'Lendas do Sul", publicado em
1913, o lugar iluminado de primeiro regionalista do pampa.
Tudo
quanto Simões Lopes Neto fizera, pela palavra falada ou palavra escrita, salões
e jornais de sua cidade, só ressuscitou depois de sua consagração inesperada. Foi
o produto de pesquisa paciente e da devoção intelectual dos especialistas. E
assim renasceram "Os Causos do Romualdo".
O
suporte invencível de sua memória, a certidão de batismo de seu gênio, foi o
livro: o livro modesto embora, de circulação limitada, empoeirada por muitos
anos no alto das estantes comerciais, em cujas as páginas fermentava a mensagem
contida e ignorada, na espera incontida de um acaso, de uma formulação crítica
mais cuidada, de um piparote inicial capaz de desvendar o encanto de sua poesia
crioula, de ritmo crepitante e das manchas quase vulgares, de suas cenas e de
seus personagens, transformados, de repente, com impetuosidade íntima, escondia
sob a forma serena nos vultos e nos momentos shakespearianos da sua obra imortal.
Guilhermino
César numa crítica a Simões Lopes Neto diz: Fazendo, hoje, serenamente, o
cálculo das probabilidades, sou dos que pensam que Simões Lopes Neto seria,
agora, apenas, um desses tantos escritores de que foi pródiga Pelotas, se
devesse ser avaliado, unicamente pela sua obra de jornalista, conferencista,
teatrólogo e professor. Tenho para mim, que sob qualquer desses prismas,
através dos quais, note-se bem, era ele visto pelos pelotenses, Simões Lopes
Neto não ganharia as imensas proporções de seu renome atual. A sua obra e sua
fama ficariam adstritas à terra natal, à lembrança de algumas gerações, à
saudade de amigos distantes e as referências sucintas dos levantamentos
cronológicos.
Houve
algo, porém, na vida de Lopes Neto que os coetâneos praticamente não
perceberam: o seu momento regionalista.
Esse
regionalismo, por surpreendentemente que pareça, foi de fato apenas um momento
na obra do escritor.
Ele
foi mais um homem de cidade do que um homem do campo, onde passou parte da
infância e ao qual regressava ocasionalmente, como é próprio do gaúcho.
Ele
descobriu, porém, em certos instantes, o cerne nativo do Rio Grande e escreveu
pondo no estilo o sabor acre da terra e o cheiro perfumado das coxilhas".
Vejamos,
pois, uma pequena análise acerca do quanto de regionalismo há em Simões Lopes
Neto, especificamente no seu "Cancioneiro Guasca".
Trata-se
de uma coleção da popular gaúcha, com prefácio e numerosas notas elucidativas
do autor, e mais um suplemento musical. A seleção contendo os textos
considerados originais e as suas respectivas variantes obedece à seguinte
classificação: Motivos do fandango, motivos da trova e descante, motivo da
Guerra dos Farrapos, poesias gauchescas.
Embora
existisse na primeira metade do século XX fenômenos marcantes na literatura rio-grandense,
o surto da chamada Escola Universalista, por meio da pena vigorosa de vários
escritores abriu olhos ao mundo e, buscando temas e ambientes extra-regionais,
soube produzir obras de força suficiente para se projetar no país e no estrangeiro.
Há obras gaúchas vertidas para o francês, inglês, italiano, alemão, espanhol,
húngaro; sueco, etc... Tudo isto não conseguiu sufocar a literatura regional, o
que aliás não se tinha em mira, mas pelo contrário permitiu paralelamente a
existência da Literatura Guasca que continua a merecer a simpatia de círculos
sociais e literários.
Não
só as obras de fôlego, mas também programas radiofônicos, televisionados,
seções de revista, clubes regionalistas, etc.... de caráter gauchesco são
olhados com o mesmo carinho com que o são o chimarrão, a acordeona, o pingo e os
desafios.
Sem
dúvida, entre as obras regionalistas o "Cancioneiro Guasca" se
destacou naquela época e muito mais se avultou na época atual.
É
enorme, diz o autor em nota da 2º edição, e aí anda esparso o curioso cervo
poético, ora ingênuo, ora engenhoso, ora altivo, ora planejante, mas sempre
característico, que a legaram; foram pena que se perdessem os elementos do
talvez mais rico contingente do cancioneiro popular do Brasil.
Concretizando
seu pensar Simões Lopes Neto inclinou-se sobre a fonte exuberante de folclore e
registrou, com arte de mestre, antigas danças, quadras, descantes, poemetos,
poemas, trovas, poesias históricas, desafios, dizeres, etc... ordenando-os num
volume O Cancioneiro Guasca, que
desejou fosse um escrínio onde fulgisse o "metal duro e puro" das
tradições gaúchas.
O
próprio Simões Lopes parece ter amado bastante esta empresa sua e em Pró-Memória, que aparece na terceira
edição, assim se exprime:
"Como
uma velha joia, pesada e tosca, que a mola repulsa e entende arcaica, assim a
antiga estirpe camponesa que libertou o território, e fundou o trabalho social
do Rio Grande do Sul, assim — essa velha joia pesada e tosca — acadinhada pelo
progresso, transmutou-se.
Usos
e costumes, asperezas, impulsos, e logo aspirações, tão outras que as primeiras
e incompassíveis, formam agora diferente maneira de ser, dos descendentes dos
continentistas.
Nada
impede porém que, carinhosa e filial piedade procure construir um escrínio onde
fulgir possa o metal — duro e puro — que é herança sua.
---
Jornal "Pioneiro", 11 de março de 1978.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019).
Jornal "Pioneiro", 11 de março de 1978.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019).
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