9/29/2019

Franklin Távora e "Os Sertões" (Ensaio)



Franklin Távora e "Os Sertões"

Ao analisar a luta do homem pela terra, Euclides da Cunha tentou em sua obra Os Sertões, limitá-lo a várias regiões. Assim, desfilam os tipos antropológicos e físicos de um sertanejo, com os tipos díspares de um jagunço e um gaúcho, entremeados por um vaqueiro e um cangaceiro. Preocupando-se de maneira mais acurada à região que teve por palco o reduto de Canudos, Euclides traça o perfil do sertanejo, consubstanciado nas suas relações sociais e invoca uma série de teses, notadamente a premissa de que "a mestiçagem extremada é um retrocesso". Não deixou de analisar sucintamente a presença do cangaço, um ciclo glorioso dentro da nossa literatura, procurando através das páginas de O Cabeleira, ou O Matuto, do criador da literatura do norte — Franklin Távora — esmiuçar a característica de duas gênesis da mestiçagem. O cangaço implantando o terror nos aldeamentos sempre chocava-se com a justiça, surgindo, ora tratados de paz, ora verdadeiros morticínios. O vale do São Francisco iria desempenhar importante gênesis da nossa raça, onde "os estigmas hereditários da população mestiça se tem fortalecido na própria transigência da lei".

Euclides da Cunha ao citar Franklin Távora e o seu O Cabeleira prestava continência ao soldado literatura nortista, reconhecendo-lhe os méritos. Desse reconhecimento surge um rápido parágrafo, sintetizando o tipo de um cangaceiro e fixando-lhe as características e relações sociais, notadamente no período da guerra de Canudos:

"Porque o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico, com diverso nome. Distingue-se do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a Paraíba, de lâmina rígida e longa, suplanta a fama tradicional do clavinote de boca de sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o Sul, e os jagunços nas incursões para o Norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.

A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.

A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças, desvairadas, perdidas nos sertões".

Franklin Távora foi o criador da literatura denominada de "Literatura do Norte", ao escrever uma série de livros com temas sobre o cangaço. No prefácio de O Cabeleira (1876) o escritor exprime o desejo de criar uma literatura típica do Norte, libertando-se do jugo literário sulista, onde campeiam escritores de renome, tais como: Macedo, Alencar, Guimarães, Assis e outros. Numa de suas cartas expressa o pensamento de criar algo novo, preso aos dramas que afligem a região onde nasceu:

"Inicio esta série de composições literárias, para não dizer estudos históricos, com O Cabeleira, que pertence a Pernambuco, objeto de legítimo orgulho para ti, e de profunda admiração para todos os que tem a fortuna de conhecer essa refulgente estrela da constelação brasileira. Tais estudos, meu amigo, não se limitarão somente aos tipos notáveis e aos costumes da grande e gloriosa província, onde tiveste o berço". 

Estreando com A Trindade Maldita (contos), Franklin Távora inicia a sua vida literária numa escala sensacional, quando atinge o ápice com a trilogia sobre o cangaço: O Cabeleira, O Matuto e O Lourenço. O primeiro livro dessa trilogia se destacou, e hoje é o mais popular, enquanto o último atinge a culminância literária. A sua estrutura é perfeita e Sílvio Romero louva-lhe méritos. Deve-se ainda ao Távora um precioso trabalho sobre o nosso folclore, publicado em 1878, Lendas e tradições populares, na revista "Ilustração Brasileira". A trilogia e este trabalho contribuíram com parcelas preponderantes para maior destaque dos costumes da nossa terra. O cangaço com seu lado negativo, com seus crimes e aberrações aliadas ao canto épico obrigaram Euclides da Cunha a reverenciar ao menos em duas ou três páginas de Os Sertões descrições pálidas de um resultado complexo da nossa formação mística. Franklin Távora respingou com sua pena belas páginas da nossa literatura, descrevendo o terror dos bandoleiros e o fim trágico que encerra o ciclo de uma vida fatídica:

Fecha a porta, gente!
Cabeleira aí vem,
Matando mulheres,
Meninos também!

Lá vem o negro
Com o lenço na mão.
— Espera lá, meu negro
Não me mates, não!

Távora foi realmente o iniciador de uma literatura típica do Norte, fixando em ciclos a luta e os sofrimentos dos cangaceiros, tipos díspares, resultantes da premissa de uma mestiçagem complexa, aplicada ao meio geográfico desfavorável. Franklin Távora procura aconchegar-se aos trovadores ou trovistas, amalgamando em prosa escorreita a vida de um dos bandoleiros
de maior fama do Nordeste. Num comentário acerca do seu livro O Cabeleira, citado e apreciado por Euclides da Cunha, explica as razões do povo ao venerar a figura de um cabra, carregado de cangaço:

 "Cangaço é voz sertaneja. Quer dizer o complexo de armas que costumam trazer os malfeitores". A história do bandoleiro José Gomes é uma verdadeira epopeia, narrada em prosa e evocada em trovas populares. Távora numa carta evoca a figura central de seu romance e escreve:

"A musa do povo não cantaria um tão grande assassino se nele não descobrisse algumas dignas qualidades. A musa do povo não é torpe, não exalta o sicário infame e no todo desprezível. Por este chora o povo uma lágrima ao passar por ele, e afasta-se triste e mudo, não lhe dá um lugar na sua imaginação, não lhe consagra uma nota do seu melancólico e suavíssimo instrumento.

Seus treinos singelos e santificadores, se algumas vezes envolvem em si um nome odioso, é que este nome representa também alguma virtude grande, a que o sentimento do justo, mato no coração do povo, não é indiferente. O pai de Cabeleira não tinha nenhuma virtude digna desta distinção.

Os trovistas pernambucanos do século XVIII cantaram no Cabeleira, não o matador que fazia tremer populações como um cataclisma, cantaram o grande ânimo que, por desviado do bom caminho, chegou a pagar com a vida no patíbulo os crimes que a bem dizer pertenciam menos a ele do que a outrem."

Távora contribuiu com uma pequena parcela para a bíblia da nossa nacionalidade, quer através de descrições do nosso sertão, quer fixando quadras e trovas populares, imprescindíveis a todos aqueles que se interessam pela terra árida e ressequida. Euclides da Cunha cientificou-se do drama do cangaceiro e respingou as páginas de Os Sertões com algumas considerações, citando inclusive' trechos de O Cabeleira.

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HENRIQUE L. ALVES
Revista "Leitura", outubro de 1961.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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