Ao
analisar a luta do homem pela terra, Euclides da Cunha tentou em sua obra Os Sertões, limitá-lo a várias regiões.
Assim, desfilam os tipos antropológicos e físicos de um sertanejo, com os tipos
díspares de um jagunço e um gaúcho, entremeados por um vaqueiro e um cangaceiro.
Preocupando-se de maneira mais acurada à região que teve por palco o reduto de
Canudos, Euclides traça o perfil do sertanejo, consubstanciado nas suas
relações sociais e invoca uma série de teses, notadamente a premissa de que
"a mestiçagem extremada é um retrocesso". Não deixou de analisar
sucintamente a presença do cangaço, um ciclo glorioso dentro da nossa
literatura, procurando através das páginas de O Cabeleira, ou O Matuto,
do criador da literatura do norte — Franklin Távora — esmiuçar a característica
de duas gênesis da mestiçagem. O cangaço implantando o terror nos aldeamentos
sempre chocava-se com a justiça, surgindo, ora tratados de paz, ora verdadeiros
morticínios. O vale do São Francisco iria desempenhar importante gênesis da
nossa raça, onde "os estigmas hereditários da população mestiça se tem
fortalecido na própria transigência da lei".
Euclides
da Cunha ao citar Franklin Távora e o seu O
Cabeleira prestava continência ao soldado literatura nortista,
reconhecendo-lhe os méritos. Desse reconhecimento surge um rápido parágrafo,
sintetizando o tipo de um cangaceiro e fixando-lhe as características e
relações sociais, notadamente no período da guerra de Canudos:
"Porque
o cangaceiro da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico, com diverso nome.
Distingue-se do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a Paraíba, de lâmina rígida e longa,
suplanta a fama tradicional do clavinote de boca de sino. As duas sociedades irmãs
tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o Sul, e
os jagunços nas incursões para o
Norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo
Afonso.
A
insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.
A
campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças,
desvairadas, perdidas nos sertões".
Franklin
Távora foi o criador da literatura denominada de "Literatura do
Norte", ao escrever uma série de livros com temas sobre o cangaço. No
prefácio de O Cabeleira (1876) o
escritor exprime o desejo de criar uma literatura típica do Norte,
libertando-se do jugo literário sulista, onde campeiam escritores de renome,
tais como: Macedo, Alencar, Guimarães, Assis e outros. Numa de suas cartas
expressa o pensamento de criar algo novo, preso aos dramas que afligem a região
onde nasceu:
"Inicio
esta série de composições literárias, para não dizer estudos históricos, com O Cabeleira, que pertence a Pernambuco, objeto
de legítimo orgulho para ti, e de profunda admiração para todos os que tem a
fortuna de conhecer essa refulgente estrela da constelação brasileira. Tais
estudos, meu amigo, não se limitarão somente aos tipos notáveis e aos costumes
da grande e gloriosa província, onde tiveste o berço".
Estreando
com A Trindade Maldita (contos),
Franklin Távora inicia a sua vida literária numa escala sensacional, quando
atinge o ápice com a trilogia sobre o cangaço: O Cabeleira, O Matuto e O Lourenço. O primeiro livro dessa
trilogia se destacou, e hoje é o mais popular, enquanto o último atinge a
culminância literária. A sua estrutura é perfeita e Sílvio Romero louva-lhe
méritos. Deve-se ainda ao Távora um precioso trabalho sobre o nosso folclore,
publicado em 1878, Lendas e tradições
populares, na revista "Ilustração Brasileira". A trilogia e este
trabalho contribuíram com parcelas preponderantes para maior destaque dos
costumes da nossa terra. O cangaço com seu lado negativo, com seus crimes e
aberrações aliadas ao canto épico obrigaram Euclides da Cunha a reverenciar ao
menos em duas ou três páginas de Os
Sertões descrições pálidas de um resultado complexo da nossa formação mística.
Franklin Távora respingou com sua pena belas páginas da nossa literatura,
descrevendo o terror dos bandoleiros e o fim trágico que encerra o ciclo de uma
vida fatídica:
Fecha a
porta, gente!
Cabeleira aí
vem,
Matando
mulheres,
Meninos
também!
Lá vem o
negro
Com o lenço
na mão.
— Espera lá,
meu negro
Não me mates,
não!
Távora
foi realmente o iniciador de uma literatura típica do Norte, fixando em ciclos
a luta e os sofrimentos dos cangaceiros, tipos díspares, resultantes da
premissa de uma mestiçagem complexa, aplicada ao meio geográfico desfavorável.
Franklin Távora procura aconchegar-se aos trovadores ou trovistas, amalgamando
em prosa escorreita a vida de um dos bandoleiros
de
maior fama do Nordeste. Num comentário acerca do seu livro O Cabeleira, citado e apreciado por Euclides da Cunha, explica as
razões do povo ao venerar a figura de um cabra,
carregado de cangaço:
"Cangaço é voz sertaneja. Quer dizer o
complexo de armas que costumam trazer os malfeitores". A história do
bandoleiro José Gomes é uma verdadeira epopeia, narrada em prosa e evocada em
trovas populares. Távora numa carta evoca a figura central de seu romance e
escreve:
"A
musa do povo não cantaria um tão grande assassino se nele não descobrisse
algumas dignas qualidades. A musa do povo não é torpe, não exalta o sicário
infame e no todo desprezível. Por este chora o povo uma lágrima ao passar por ele,
e afasta-se triste e mudo, não lhe dá um lugar na sua imaginação, não lhe
consagra uma nota do seu melancólico e suavíssimo instrumento.
Seus
treinos singelos e santificadores, se algumas vezes envolvem em si um nome
odioso, é que este nome representa também alguma virtude grande, a que o
sentimento do justo, mato no coração do povo, não é indiferente. O pai de
Cabeleira não tinha nenhuma virtude digna desta distinção.
Os
trovistas pernambucanos do século XVIII cantaram no Cabeleira, não o matador
que fazia tremer populações como um cataclisma, cantaram o grande ânimo que,
por desviado do bom caminho,
chegou a pagar com a vida no patíbulo os crimes que a bem dizer pertenciam
menos a ele do que a outrem."
Távora
contribuiu com uma pequena parcela para a bíblia da nossa nacionalidade, quer através
de descrições do nosso sertão, quer fixando quadras e trovas populares,
imprescindíveis a todos aqueles que se interessam pela terra árida e
ressequida. Euclides da Cunha cientificou-se do drama do cangaceiro e respingou
as páginas de Os Sertões com algumas
considerações, citando inclusive' trechos de O Cabeleira.
---
HENRIQUE L. ALVES
Revista "Leitura", outubro de
1961.
Pesquisa
e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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