9/15/2019

O historiador Alexandre Herculano (Ensaio)



O historiador Alexandre Herculano

O amor da verdade é a principal qualidade do historiador. Foi esta qualidade, associada a muitas outras, que fez com que Herculano fosse um dos maiores historiadores do mundo. Eu não quero dizer que ele não se enganasse, porque isso seria contrario à natureza humana; não há ninguém infalível, a não ser o padre santo para os partidários do neocatolicismo ou do catolicismo influenciado pela Companhia de Jesus. O que é certo é que Herculano examinava com a mais profunda atenção tudo quanto escrevia, empregava todos os meios de não falsear a história, tudo sacrificava ao amor da verdade, fazia falar os fatos, não enchia a história de generalizações falsas, intempestivas e absurdas; tudo quanto dizia firmava-se em documentos que ele criticava com a maior severidade e de cuja autenticidade estava profundamente convicto; não fazia sínteses que não se estribassem na mais profunda e rigorosa análise. O mais analisado analista histórico que Portugal tem produzido teve sempre receio de cair nessa laboração subjetiva, falsa e imaginosa, que caracteriza muitos espíritos do século dezenove.

Quantas obras históricas se não têm escrito, que, em vez da verdadeira filosofia da história, nos apresentam a filosofia dos seus autores! Os trabalhos históricos de Herculano foram incomparavelmente mais sintéticos do que tudo quanto no seu gênero se havia escrito anteriormente em Portugal; mas, se a generalização filosófica não existe neles mais copiosamente é porque ainda se não tinham realizado com a amplitude indispensável as investigações eruditas sem as quais toda a filosofia da história seria apenas um edifício sem base; é porque ainda escasseavam os materiais suficientes para se poderem fazer em larga escala sínteses profundas, exatas e rigorosas.

Quantas sínteses formuladas no século dezenove não serão matéria de riso para o século vigésimo! Os escritores gongóricos e nebulosos, que têm falsificado a história com sínteses falsas e temerárias, parecem-se com aquele fidalgo da Mancha, chamado D. Quixote, que em cada moinho de vento via um gigante, em cada rebanho um grande exército; no seu furor de generalizar, os modernos gongoristas em cada fato veem uma lei.

Diz o Sr. Teófilo Braga que Herculano não possuía disciplina filosófica; eu estou profundamente convicto do contrário. Foi a disciplina filosófica que deu a Herculano o mais excelente método no modo de escrever história; foi ela que fez com que o nosso grande historiador procedesse sensatamente, começando pelo exame rigoroso dos documentos, passando à análise exata e minuciosa dos fatos e por fim à generalização filosófica, de que ele usou com a devida sobriedade. Os historiadores que, em vez de ter o máximo rigor na investigação dos acontecimentos, enchem a história de sínteses fantásticas e plagiadas, é que revelam falta de disciplina filosófica.

O método seguido por Herculano está em perfeita harmonia com as doutrinas de um dos maiores luminares da filosofia, o grande Bacon, que sustentava que a generalização se devia fazer vagarosamente, considerando as sínteses feitas à pressa como um grande obstáculo ao progresso das ciências e uma causa poderosa da multiplicação das polêmicas.

Só um gênio histórico verdadeiramente prodigioso como Herculano, poderia realizar em Portugal o que lá fora se fez com muito mais elementos. O eminente historiador estava num país atrasadíssimo em estudos históricos e filosóficos, num país em que uma parte do clero ora roubava documentos ora se recusava energicamente a entregá-los, num país em que os monumentos históricos dispersos pelas colegiadas e mosteiros desapareceriam completamente se Herculano os não tivesse coligido. Pode alguém, diz Oliveira Martins, avaliar o trabalho do obreiro sem ferramenta nem trabalho são?

O amor da verdade e da justiça predominava de tal modo em Herculano que seria capaz de sacrificar-lhe todos os outros afetos do seu coração; ele punha a verdade acima de tudo. Herculano nunca teve em mira sacrificar a sua consciência ao serviço de qualquer seita ou partido; no seu rigoroso espírito a paixão pela verdade estava acima da religião e do patriotismo. A grande imparcialidade com que Herculano apreciava não só os papas mas também aqueles homens a quem a igreja canonizou, mostra-nos evidentemente que o espírito católico não sufocou nele a paixão mais nobre do verdadeiro historiador, o amor da verdade. O seguinte trecho do segundo volume da História de Portugal é uma prova da veracidade da minha asserção:

"Ao passo que um homem de gênio, Inocêncio, se assentava no solo pontifício para manter a ação da hierarquia sacerdotal, surgiam da obscuridade outros dois homens que haviam de hastear de novo a bandeira da abnegação e fazer abraçar pelos seus sectários a rigorosa pobreza repelida das congregações monásticas, instituindo em frente delas as congregações mendicantes. Ninguém ignora os nomes destes dois indivíduos: Francisco de Assis e Domingos de Gusmão: aquele, humilde mas abastado burguês italiano que, depois de convertido ao misticismo, seguia com tanto ardor a vereda da mortificação como antes seguira a espaçosa estrada dos deleites; este, nobre e altivo espanhol, já revestido de dignidades eclesiásticas e que se arrojara à grande empresa da reforma sem perder os caracteres da sua raça. Austero e inflexível, homem cujos avós pelejaram sempre contra os sarracenos com o ferro numa das mãos e o facho do incêndio na outra, dir-se-ia que mal sabe combater de diverso modo os que não creem como ele. A sua exaltação religiosa é intolerante: a luz suave do Evangelho não pôde vê-la senão reflexa na espada polida, senão retinta em sangue. O gemido do herege no patíbulo é para ele um hino ao manso cordeiro do Calvário: para ele o algoz exerce um sacerdócio."

Neste eloquentíssimo paralelo, um dos mais concisos, enérgicos e claros de todas as literaturas, mostra-nos Herculano a profunda diferença que houve entre os fundadores das duas ordens dos franciscanos e dominicanos. O fanatismo do terrível São Domingos de Gusmão foi por ele estigmatizado num estilo vigorosamente poético; o fato da igreja ter posto este homem feroz, cruel e sanguinário no número dos santos não impediu Herculano de pintá-lo com toda a fidelidade.

É de admirar que, referindo-se o eminente historiador a estes dois vultos da igreja, não fizesse a mais leve menção do santo mais popular para os portugueses, de Santo Antônio, que não só pertenceu à ordem franciscana mas também viveu no reinado de D. Afonso II e cuja glória o clero português quase que olvidou durante séculos deixando-o envolto na lenda milagreira e chegando apenas a ocupar-se dos seus escritos e a enaltecer a sua influência social quando pretendeu fazer manifestações reacionárias e jesuíticas. Estou pro- fundamente convicto de que, se o grave historiador, apesar de ser eminentemente cristão e patriota, não se ocupou do referido santo, é porque, relativamente a esta glória nacional, não encontrou nos cartórios que tão ativamente revolveu documentos que satisfizessem o seu espírito extremamente severo e rigoroso. Aquele grande filósofo, a quem o Sr. Teófilo Braga chama católico ferrenho, punha sempre o amor da verdade acima do próprio catolicismo. Até no modo de considerar a religião cristã se revela a poderosa autonomia da sua vasta e profunda inteligência. Com que energia não combateu Herculano as ambições clericais, a política da igreja! O catolicismo, que ele apreciava não só poeticamente mas também debaixo do aspecto prático, não o impediu de tirar conclusões, como pretende o autor da História do romantismo. O espírito de Herculano era ainda mais positivo do que o de alguns positivistas que se deixam seduzir pelas miragens da sua imaginação e muitas vezes da imaginação alheia.

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DIOGO ROSA MACHADO
"Alexandre Herculano, Conferência Pública realizada no Ateneu Comercial de Lisboa", 15 de Julho de 1900.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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