1/07/2020

A Morte da águia, de Jaime Cortesão




CANTO I
O DESPERTAR DE UM DEUS

O despertar de um deus

Nasceu a Águia na Montanha.
O ninho foi hórrida brenha
Numa caverna exposta aos ventos,
— Hirta e petrificada boca,
Por onde uma Sibila de voz rouca
Prediz ao Mundo os novos sofrimentos. —

Átrio do Céu, assenta numa rocha,
Que arranca da Montanha e desabrocha
Como uma flor em plena imensidade;
Do pétreo cálix, das entranhas virgens,
Sai um perfume tal, que dá vertigens,
Que a flor tem por aroma a Tempestade.

Nicho de catedral, abandonado,
E penhascoso baldaquino armado,
Sem que um pobre santinho ali se acoite;
Ou donde foge algum ligeiro santo
Tentado pelo Céu, e voa tanto
Que só recolhe lá por alta noite.

Átrio do Céu, pra que entre e saia o Dia;
É lá que a Aurora se atavia
Para mostrar ao Mundo o claro rosto;
Átrio do Azul que a Madrugada escolhe,
Também ali se acolhe
O derradeiro raio do Sol posto.

De tão alto, sublime, etéreo assento,
Com que arrebatamento
O olhar agudo se estendia ao largo:
Píncaros, vales, azulados montes...
Líquidos horizontes...
O volutuoso abraço do Mar largo!...

Mal a Águia nasceu,
Fitou logo a Montanha, o Mar e o Céu:
Primeiro olhar, e de tal modo intenso

Que nunca o seu profundo coração
Sentiu Desejo, Dor, ou Comoção,
Que envergonhasse aquele espaço imenso.

Olhar dum deus que acorda
De triste e humano sonho, e que recorda
A sua gloriosa, eterna Vida,
E ao ver sua divina Criação,
Dentro de si retine a comoção
De toda a imensidade comovida.

Abismos, onde as cataratas soam,
Vales e montes, Mar, nuvens que voam,
Ninguém vosso desejo imenso acalma;
Nenhum de vós, erguendo a mesma prece,
A si mesmo ou aos outros se conhece:
Só os deuses entendem a voss'alma.

Águia divina, que entendeste o Mundo,
Tu viste como o Céu era profundo
E o Mar inesgotável,
Que tudo é Vida e toda a vida é Luta,
E, que arrancando a cada coisa viva
Sua virtude e espírito indomável,

Em ti reuniste as forças mais estranhas,
Tal a firmeza duma rocha bruta,
A vontade tenaz d'árvore altiva,
O arranco vitorioso das montanhas
E o ímpeto dum rio ou dum Vulcão.

Ah! quando o abismo mais era insondável,
Mais teu Desejo tinha de aflição,
Te erguia o voo, te crispava a garra
Num supremo transporte;
Como um navio que ao soltar da amarra
Toma o rumo da Morte,
Vira a robusta proa à imensidade
E larga toda a vela à Tempestade,
A quantos ventos há do Sul ao Norte,
Para que ao menos roto, espedaçado,
Algum destroço, inda animado
Daquele anseio etéreo,
Vá sobre as águas a boiar,
E enfim possa aportar
Às praias do Oceano do Mistério!



CANTO II
HINO À MONTANHA

Ai! a Montanha! que sublime esforço

Lhe agita o formidável dorso
E faz que altíssima se eleve,
Rasgando a toda altura o horizonte,
Até que lhe cinja a majestosa fronte
Um diadema puríssimo de neve!

As cúpulas, as grimpas arrojadas,
Flechas iguais às línguas das espadas,
Agulhas, obeliscos, coruchéus
Vestiram-se de nítidas alvuras
E sequiosos das alturas
Foram beijar os Céus.

Montanha, arrepiada fera hirsuta,
Inda raivosa duma antiga luta,
Tu sufocaste, derradeiro grito,
E tu petrificaste, gesto horrendo
Da Terra toda em fogo percorrendo
As frígidas estepas do Infinito.

Passaram anos, séculos, idades,
E sempre chuvas, neves, tempestades,
Granizos, avalanches, cataclismos
Foram aqui rasgando, abrindo brechas,
Ali erguendo pontes e altas flechas
E aqui, ali, além cavando abismos.

Assim a Terra, a Água, o Fogo, os Ventos,
Todos os bravos elementos,
Com o cinzel e o estro da loucura
Deram-lhe o rasgo, a inspiração suprema,
O ritmo dum bárbaro poema
Ou duma desvairada arquitetura.
Ah!... quem de perto visse e penetrasse
O atônito fulgor da pétrea face,
Que hórrida lava como o sangue tinge?!...

Quem ouvisse pulsar-lhe o coração,
Soubesse que sublime comoção
Perturba o seio da calada esfinge?!...

Eu quando pouso o pé sobre a Montanha
E avisto o Céu e o Mar de erguida penha,
De súbito estremeço,
Fico mudo de espanto, empalideço
E logo grito, canto, choro e rio,
Tremo como se um vento me abalasse,
Ou a Montanha à volta me enviasse
O seu calafriante desvario.

Às vezes no caótico tumulto
Dos acidentes da Montanha
Algum arranca o vulto,
Projeta a sombra estranha
Na fauce do Infinito. Em torno a noite escura;
Só o relâmpago fulgura
No torvo Céu, onde não brilham astros;
E um navio — fantasma, a todo o pano,
Varrido pelo vento e pelo Oceano,
Por velas nuvens, píncaros por mastros,
Corre pelo Mar-fora, alucinado,

E naufraga por fim desarvorado
Nalgum abismo ignoto!
Ou formidável catedral
Baqueia, treme, abate-se afinal
Nas torvas convulsões dum Terremoto!

Toda a Montanha oscila de furor
Quando, como colérico fulgor
Da pupila do Céu,
Algum relâmpago ilumina o espaço,
Que o raio atravessa-lhe o espinhaço
Como um agudo arpéu.
E nessa luz lívida e fria
O leviatã enorme ondula,
E numa hórrida agonia
Tem calafrios na medula!

Visionam-se batalhas
Sobre ciclópicas muralhas
Entre hipógrifos e dragões;
Ou nos inóspitos Calvários
Rochedos — Nazarenos solitários,
Agonizam em rudes contorções.

Há rochas ajoelhadas,
Religiosamente concentradas
À beira das encostas;
Rochedos ogivais
Imploram de mãos postas;
Pungentíssimos ais,
Dilacerados gritos
São os agudos coruchéus;
E os abismos voltados para os Céus
Estão erguendo a alma aos infinitos.
Os áridos granitos,
Rudes fragas, plutônicas, curvadas
No seu fervor de humildes consciências,
Com seus cilícios d'urzes requeimadas,
Estão cumprindo duras penitencias.

Sonhos de Deus, esboços do Sublime,
Formas da primitiva criação!
Continuamente vos oprime
A dor da imperfeição!

Montanha! é tão profunda a tua dor,
Tão grande o teu impulso redentor,
O anseio de beleza em que te abrasas,

Que cada pesadíssimo rochedo,
Inabalável, taciturno e quedo
Tenta bater as asas!

E tudo se debate e tumultua
Com um tremendo esforço sobre-humano
Nessa petrificada Babilônia:
És a carne sangrenta, rocha nua,
O teu sossego — um revolver insano,
O teu silencio — uma contínua insônia.

Resto do Caos primitivo,
Encapelado Oceano
De tudo o que há tragicamente vivo!
Ali — talvez a forja de Vulcano
Onde é batido o raio fulgurante;
Ali — talvez o pórtico do Inferno,
Onde o gênio de Dante
Foi esculpir o desengano eterno.

Ali se desagregam duras fráguas,
Roídas pelas águas
De persistente força corrosiva;
Mas neves, águas, rochas das alturas

Jamais olvidaram pelas planuras
A ânsia primitiva.

A rocha que se funde e se derrama
Em terra, sedimento, escura lama
Vai da raiz à flor desabrochar,
E as águas que desceram das pendentes
Foram quedas, ribeiros e torrentes,
Por fim ondas altíssimas do Mar!

Ali, enquanto não assola a Terra,
Nas gargantas da serra
Ensaia a Tempestade os grandes coros ;
E sobre os píncaros agrestes,
Vagabundos celestes,
Vão descansar enfim os meteoros!

Ali — tudo o que é grande, forte, altivo:
A Águia pousa, a nuvem pára,
O ar é puro e vivo
O Céu é mais profundo e a luz mais clara!
Cariátide do Céu, Atlas gigante,
Alto e rude colosso de granito!

Que heroísmos, que assombros
Levantam a nossa alma delirante,
Ao ver que degladias o Infinito
E vem o Céu pousar-te sobre os ombros!

Às vezes ilumina-se o teu dorso
No gesto transcendente da verdade,
Gesto que ensina a religião do esforço
E aponta para um Céu de Liberdade!

Heróis! ungi as almas de beleza
E erguei dali na luz e na grandeza
Destroços feitos por um deus cruel:
Os broqueis dos ciclopes revoltados,
Armas partidas d'anjos despenhados
E as ruínas da torre de Babel!


CANTO III
A ÁRVORE TRÁGICA

No píncaro mais alto da Montanha
A Árvore crescera de tal sorte,
Como nunca se viu serra tamanha,
Nem crescer outra Árvore mais forte.

Ali, dessa Montanha erguida a prumo,
Onde o frescor da Vida era tão escasso,
A Tempestade decidia o rumo
E as águias abalavam pelo espaço.

Longe das mais e livre do escarcéu,
Que uma floresta murmura produz,
A Árvore embebia-se no Céu,
Afogava-se toda em plena luz.

Isolada no agreste e duro serro,
Tendo por cima o Céu, por baixo o abismo,
Era como os profetas no desterro
Abrasados de fé e misticismo.

Tinha o tronco torcido como um dorso,
Cada forte raiz, um duro flanco;
Toda vibrante dum heroico esforço,
Toda agitada dum supremo arranco.

Cada torcido ramo, longo braço,
Erguia-se convulso para o alto,
Como quem tenta erguer-se pelo espaço
Ou tomar um reduto pelo assalto.

Assim, desde a raiz ao fino tope,
Brandido como a língua duma espada,
Havia o salto heroico dum ciclope,
Que vai tomar o Céu pela escalada.

Nos ramos tinha roscas reluzentes,
Altas arrancas a silvar injúrias;
Lembrava a copa, a trança de serpentes
— A cabeleira trágica das Fúrias —.

Folhas bebendo a luz a grandes sorvos
Pela taça do Céu a trasbordar,
Tão negras, tão inquietas, como os corvos,
Quando pairam com fome sobre o ar.

Via-se o Sol a dar-lhe repelões,
A Terra a conservá-la inda mais presa,
Penetrava d'angústia os corações,
Chegava a ser sinistra de grandeza;

Assim, alguém que foi sepulto em vida,
A meio corpo fora, se corcova
E põe a força toda na saída,
Louco por se arrancar à horrível cova!

De noite projetava a sombra escura
Em plena fauce lôbrega do Empíreo;
E viam-se-lhe gestos de loucura,
Ouviam-se-lhe falas de delírio.

E, quando nessa abobada pelágica
Galopavam os ventos infinitos,
Aquela desvairada árvore trágica
Alucinada, alegre, dava gritos.

Se, na celeste, na profunda esfera,
Erguendo os braços hirtos como os mastros,
Caía a noite, vinha a Primavera,
Vestindo-a toda com as flores dos astros.

E toucada de sois ela ajoelhava,
Sacerdote do Azul, árabe crente,
Naquela torre audaz, feita de lava,
Abrindo os braços para a luz do Oriente.

Falas ardentes dos heróis de Homero
E tu, oh! alma trágica de Esquilo,
Para que possa interrogá-la, quero
O vosso poderoso e claro estilo!...

“Hércules vegetal, em que façanha
E temerária empresa te empenhaste,
Que ao píncaro mais alto da Montanha
O teu robusto corpo abalançaste?!...”

“Que hidra, que monstro, ou Onfale te eleva,
Te obriga a suportar todo o pavor
E desolada solidão da treva,
Que raiva, que desejo, ou que furor?!...”

“Ou seja que, até nós, venham contigo
Novas tormentas, novo Adamastor?!...
E que em silencio sofras o castigo
De rebeldia e desvairado amor?!...”

“Suspendei por momento a fúria louca
(Se me podeis ouvir e se falais)
Tornai mais branda a endurecida boca,
Abri os rudes lábios vegetais.”

“E olhai, que tendo forma e corpo vário,
Podemos ser irmãos pelo tormento:
Eu, como vós, sou duro e solitário
Arrosto o frio, o raio, a noite e o vento.”

Então (ainda tremo de contá-lo)
Torceu-se mais na trágica atitude,
Correu-a toda um temeroso abalo,
Mais alto ergueu ainda o corpo rude,

E, abrindo os braços rígidos em cruz,
Falou; e a sua clara voz dizia:

“Eu sou a crente mística da Luz
Eternamente ansiosa pelo Dia.”

“Nasci do mais informe e escuro lodo;
Mas, ponha o Sol em mim beijos felizes,
Estremece-me e vibra o corpo todo
Até ao mais profundo das raízes.”

“Posto que viva na mais alta serra,
E certo que nasci do lodo vil;
É sempre cela estreita — a larga Terra,
Dura grilheta — a rocha do alcantil.”

“Não há robusto tronco por altivo
Que a cúspide mais livre se arrojasse,
Mas quanto mais a Vida intensa vivo,
Tanto deparo a Morte face a face.”

“Oh! que aflição, que horror, ficar sozinho,
Todo afogado em treva pela noite,
Enquanto o vento passa em redemoinho,
Despedaçando em mim o aéreo açoite!...”

“Os meus irmãos do bosque, se anoitece,
Buscam-se com a longa ramaria,
Povo que pelo tato se conhece,
E fazem uns aos outros companhia.”

“ Mas eu, se a noite cai, tremo de medo;
E como só em pedras duras toco,
Começo a empedernir, volto a rochedo,
Fico-me inerte e solitário bloco.”

“Só quando rompe o Sol de madrugada
De novo corre em mim a seiva quente
E o tronco, feito pedra regelada,
Ressurge carnação adolescente.”

“E eu que do claro Sol e da Luz vivo,
Alargo a imensa copa em plena graça,
Sôfrego bebo a luz, alegre e altivo,
Sou único a beber na minha taça.”
 
“Sim, escolhi o píncaro mais alto,
Enraizei-me, quieta e recolhida;
E quanto mais me afundo, mais me exalto,
Mais em mim bate o coração da Vida.”

“Aqui trazem mais ímpeto as rajadas,
Mais pode o raio rápido ferir-me;
Não vem cantar-me as aves nas ramadas
E as trepadeiras tremem de florir-me;”

“Sou por duros trabalhos combatida
Desta Montanha na elevada aresta,
Mas vale mais uma hora desta Vida
Que toda a vossa vida da Floresta.”

“Que brilhe o raio e sopre o vento forte...
Mais o meu livre coração se expande;
Quanto mais perto da fecunda Morte,
Tanto mais sinto como a Vida é grande.”

“Mais luz!... que o meu espírito veloz
Voo mais livre e mais sublime ensaia;
Sou como um rio que não tenha foz,
Como um Oceano que não tenha praia.”

“Mais luz!... Eu sonho, eu sinto para além
Uma outra Vida superior à minha:
Formas, espíritos, visões...? Alguém
Que num País mais lúcido caminha.

“Há outra, inda mais Vida. Eu bem na sinto,
E tão real que quase me incomoda,
Estendo as mãos, pergunto por instinto:
“Quem fala, quem palpita à minha roda?”

“Desejo é já princípio doutra Vida,
O Tempo — uma cegueira da Matéria...
Vou ser a Luz, a Alma comovida,
Espírito, Princípio, Essência etérea!...”

“Ardo, deliro, anseio!... Luz enfim!...
São labaredas os meus ramos nus;
Há fogo a crepitar dentro de mim...
Pairo, alumio e vejo,... Sou a Luz!...”

Disse. Vi ondular-lhe a copa a prumo;
Figurou atirar-se a um precipício;
Súbito ardeu, foi chama, depois fumo,
A névoa espiritual dum sacrifício.

Eu fiquei só e mudo sobre o cume,
Que erguia a fronte solitária e rasa,
E, como a pedra d'ara, onde houve lume,
Senti toda a Montanha ainda em brasa.


CANTO IV
A VIDA HEROICA

A Águia — o gênio das montanhas —

Ardia numa febre de heroísmos;
Brotara-lhe das férvidas entranhas,
Era o grito de angústia dos abismos.

Ia pousar nas cristas alterosas
Com atitudes majestosas
Duma estátua em soberbos pedestais;
E quando as asas negras se alargavam
As remijes agudas faiscavam,
Para fender o ar como punhais.

Que heroica aparição,
Quando surgia vigorosa, ardente,
Na cúspide do monte!
Despedia de si o súbito clarão
Dos astros no Oriente,
Quando rasgam as brumas do horizonte;

Ave de preza,
Que fila e que arrebata
Com verdadeiro amor ao perigo;
Duma estirpe real que adora a luta acesa:
Tem júbilos cruéis enquanto mata,
Canta sobre o cadáver do inimigo.

Palpita-lhe no rude e altivo porte,
Todo talhado em formas duras,
A energia suprema duma raça;
Brilham-lhe as penas rígidas e escuras,
Envolvendo-lhe o peito alto e forte
Numa ardente couraça.

Salta-lhe o coração no vasto peito,
Cárcere estreito
Pra tão indômito pulsar,

Indo de encontro ao rígido broquel,
Como numa caverna o irado tropel
Dos vagalhões do Mar.

Se via as outras Águias na amplidão,
Sulcando todo o Céu num voo forte,
Cheio de majestade e de harmonia,
Pulava-lhe de fúria o coração,
E atirava num súbito transporte
Arrebatados gritos de alegria.

Um desejo sem fim, um contínuo transporte
Lhe dilatava o coração;
Na sua veemente exaltação
Desafiava com desprezo a Morte.

Vivia a Vida trágica e profunda.

Heroica, aventureira, vagabunda,
Rasgando sempre espaços novos,
E ignorando as fronteiras
Que dividem os povos,
Percorreu as longínquas cordilheiras,
Atravessou o Mar e os Céus distantes,

Lançando em cada serra
Os seus gritos de guerra
Bárbaros, percucientes, terebrantes.

Carne que a chama fulgida consome,
Quando sentia a fome,
Partia das altíssimas arestas,
Abria as asas sobre a rocha escassa
E, corsário do Azul, partia à caça
Dos animais bravios das florestas.

Se via a presa, os seus instintos
Erguiam-se coléricos, famintos,
 E despedia lume pelo olhar;
E com os olhos fitos sobre a presa
A devorá-la co a pupila acesa
Descia de vagar.

Mas ei-la que se arroja de repente,
Vertiginosamente,
Rangendo o bico pontiagudo;

E cai co as asas encolhidas
E as garras estendidas,
Fendendo, abrindo o ar num silvo agudo.

Rápida flecha em direitura à meta,
Ei-la que abala, corre e se arremessa,
Desaba sobre a presa e já lhe espeta,
Lhe finca e crava as garras na cabeça.

Depois, tinta de sangue e olhos em brasa,
Erguia a presa, desfraldando a asa,
Ia pousá-la sobre as altas penhas;
E, ébria duma divina crueldade,
Atirava o seu canto à Imensidade
Do cimo das montanhas.



CANTO V
O CANTO DAS ÁGUIAS

“A vida dos heróis

Faz-nos luzir os olhos coruscantes
Com a firmeza rude dos diamantes
E o brilho ardente e fúlgido dos sóis.”

“Nós fitamos o Sol sem que os seus raios
Ceguem, fulminem mais que o nosso olhar...
Nunca temos vertigens, nem desmaios,
Abrindo a nossa asa resoluta
Pelas regiões altíssimas do ar,
Ou quando o sangue corre em plena luta!”

“Astros ardendo no zênite,
Tal como o abismo, o Céu, o livre espaço,
Nossos desejos nunca tem limite;
Desprezamos a órbita traçada:
Aí — o ar mais livre é-nos escasso
E a trégua por mais doce é-nos pesada!
E a cada passo
Desejos mais profundos
Erguem-se em nós gritantes d'ansiedade,
Consumindo na chama novos mundos,
Indo até onde vai a Tempestade!”

“Que tumultuoso e arrebatado anseio!...
Em nós toda a vontade satisfeita
Tem um sabor amargo...
Trazemos a rugir dentro do seio
Duma contínua fúria insatisfeita
O coração raivoso do Mar largo!”

“Se a fome e a sede toda se levanta,
A onda dos desejos nos inunda
Em haustos tão aflitos,
Que vem do coração para a garganta,
E é tão profunda
Que nos sufoca os gritos!”

“É tanta, é tanta, que não cabe em nós,
E dentro do mar íntimo, disperso
Cada onda emotiva ganha voz
E anseia a Vida plena do Universo.”

“Para além, para além...
Ó cumes solitários,
Somos as vossas sentinelas,
É este o nosso toque de clarim;
Andamos pelo Azul como os corsários:
Abrir as asas é soltar as velas
Pelo Mar-fora, pelo Céu sem fim.”

“Para além, para além, fúria do imenso,
Fogo que nos abrasas!...
Raiam auroras de desejo intenso
Vibram heroicas tubas de alegria
Quando abrimos as asas
Na luz do Sol, ao ar das ventania!”

“A guerra a guerra, a luta, a vida forte;
Só ama a Vida quem despreza a Morte;
Não há desastre que o valor nos quebre;
Em frente do mais válido inimigo
Ou quando mais nos ameaça o perigo
Sobe até ao delírio a nossa febre!”

“Soltai os halalis, clarins da glória;
Voemos todas nas regiões empíreas
A busca do triunfo e da vitória,
Como a coorte alada das Valquírias.”

“Para além, para além!... Só no mais alto cume
A nossa carne, ébria de gozo,
Encontra a neve e o frio
Pra que se apague mais o eterno lume
Que nos devora o coração sequioso,
Como as searas no estio.”

“Ciclones, tempestades, furacões
Quando cingis no vosso largo açoite
As trêmulas florestas pela noite,
E quando vão os lívidos clarões

“Apunhalar o coração da Treva,
Logo a purpúrea chama
Da vida ardente em nós se eleva,
E num incêndio súbito ateado
Valor, nobreza, audácia, intrepidez,
Tudo que há de profundo em nós se inflama
E deixa o peito imenso dilatado
De fúria, de loucura e de embriaguez!”

“Para além, para além!... Ó cumes d'altos montes
Estais abrindo os largos horizontes
Aos nossos valorosos corações!
Quando a Noite no Céu mais se condensa,
Sobe de fúria a nossa vida intensa
E vamos-lhe arrancar constelações!”

“Quando a alma dos fracos desfalece,
Porque anda a Tempestade pelo Empíreo,

Como o corcel da Morte a toda a brida,
Dá-nos o raio o fogo do delírio,
E só em nosso peito resplandece
O facho ardente e trêmulo da Vida!”


CANTO VI
A TEMPESTADE

Cai fogo e cinza. O Céu é turvo e baço;
Veste esse manto imenso um deus oculto,
Que dança e rodopia sobre o espaço;

Agora num alígero tumulto,
Logo em ondulações vertiginosas,
Ora cingindo o véu desenha o vulto,

Relâmpagos de formas vaporosas,
Que brilham para logo se apagar
Na primeira espiral das nebulosas.

O célere, invisível voltear
Dos pés divinos tão de leve pisa
Aflora, palpa, acaricia o ar,

Como uma pluma que levanta a brisa;
E, apesar disso, oprime e esmaga o Mundo,
Que um silêncio de chumbo imobiliza
Num meditar extático e profundo.

O taciturno espírito dos montes,
O indizível espetro que delira
E enche de seu delírio os horizontes,

Aos mais fundos abismos se retira;
Agora pára, espera, escuta a medo
E de tão quieto e mudo nem respira.

De longe, cada tácito arvoredo
Na inércia teatral das verdes comas,
Lembra a mulher de Ló, ígneo rochedo,
A predizer o incêndio das Sodomas.

O bailado divino já vem perto
E o vulto velozmente arrebatado
Mostra-se às vezes quase a descoberto;

O Mundo, como um peito sufocado,
Em aflitivas convulsões d'horror,
Respira o ar quase petrificado.

Mas pouco a pouco um gélido terror
Esfria o Céu, transtorna a face à Terra,
Perturba-lhe a feição, muda-lhe a cor,

E, como alguém que um pesadelo aterra,
Ou louco, ou visionário, ou epilético,
Assim árvore, nuvem, alta serra

Tem o semblante lívido e patético,
Como se nas mais hórridas posturas
Tudo caísse em sono cataléptico

Num hospital imenso de loucuras.
Enquanto os brutos animais ferozes,
Buscam de medo as negras espessuras,

Os alciões, gaivotas, e albatrozes,
— As aladas sibilas da tormenta,
Soltam no Mar as agourentas vozes;

E numa estranha exaltação violenta,
Que as ergue, as arrebata, as precipita,
A pouco e pouco a sua voz aumenta

Em furiosa, alucinada grita,
Tão cheia de visões e de presságios,
Como se fora a revoada aflita
Dos derradeiros gritos nos naufrágios.

Anjos anunciadores,
Espíritos alados e videntes,
Messias, Visionários, Percussores,

Ei-los que passam lívidos, trementes,
Pisando toda a Terra a largos passos
E deixando no pó rastos ardentes;

Ei-los abrindo à frente outros espaços,
Com a fúria do Mar, quando iracundo,
Rebenta os diques todos em pedaços;

Ei-los mais longe, além, ao largo, ao fundo...
Envoltos já nas brumas do mistério,
Erguendo em peso, arrebatando o Mundo;

E logo cheios dum esforço etéreo
Aceleram-lhe o giro até lhe dar
O primitivo resplendor sidéreo.

Ei-los que pairam, voam a cantar
Coa voz alucinada dos Profetas,
Tão forte que o seu eco é secular;

Ou dando vida e fala às formas quietas
E erguendo-se às visões originárias
No inspirado delírio dos Poetas.

Ei-los: seguem as vias solitárias...
Já lhes desponta a luz do Dia eterno
Sobre as divinas frontes visionárias,

Espalha-se à roda o seu clarão interno
E assim iluminados, como Dante
Vão a todos os círculos do Inferno
Mostrar o Paraíso inda distante.

Há quanto, há quanto tempo que os heróis
De noite afiam gládios e punhais,
Laminas d'aço a rir, bélicos sóis;

Lobos famintos, fúrias, canibais
Mais doidos, mais raivosos, mais cruéis,
Rangem de fome os dentes, uivam mais.

Já, sobre o peito os rígidos broqueis,
A custo doma a hoste mais altiva
O piafar inquieto dos corcéis.

Há quanto, um mar de raiva corrosiva,
Ruge e encastela as ululantes vagas
E quase atinge agora a maré viva.

Dos peitos retalhados por mil chagas
Às bocas más de risos instantâneos
Afluem maldições, gritos e pragas.

Ao calor tropical da febre, os crânios
Erguem no escuro a selva das visões;
Escancaram-se ocultos subterrâneos;

E os Quasímodos, cheios de aleijões,
Desorbitando as lúcidas pupilas,
Sacodem a rebate os carrilhões.

Então retumba o canto das Sibilas
Num eco que de monte a monte vai:
“A pé, a pé, heróis! cerrai as filas,

Erguei os braços válidos, cantai!
Abri vosso estandarte ao vento forte,
Agora avante, à frente, eia, abalai!...
À Luta, à Guerra, à Tempestade, à Morte.

De súbito, deitando fora o véu,
No auge do bailante rodopio,
O dançador divino larga o Céu.

Que nunca vista graça e novo brio
Lhe faz pairar, correr, zunir a prumo
O tempestuoso corpo fugidio!

É ela a Tempestade!... Ergue-se um fumo
De cúmulos, o pó que se alevanta
À roda, à frente, a indicar-lhe o rumo...

É ela a Tempestade!... Baila e canta!
E todo o Mundo, à sua vista e voz,
Acorda de repente e se levanta;

E em febre, amor, delírio ou medo atroz,
Formando a mais demente multidão,
Tudo vem vê-la em seu girar veloz.

Das espirais do aéreo turbilhão
Já se entrevê a rápida figura,
Feita de vento, fogo e exaltação.

Matéria que o delírio transfigura
Seu corpo agora é todo espiritual,
Plásmica labareda, Essência pura.

Tão alta se nos mostra que afinal,
Posto que o vulto enorme esteja perto,
E quase a arrebatar-nos na espiral,

Nosso aturdido olhar não sabe ao certo,
Se alguma parte, membro ou forma etérea
Ficará coas estrelas encoberto.

Figura anímica, espectral, aérea,
Que os olhos d'alma só podem fitar,
E nunca os olhos baços da Matéria;

Éter divino, que penetra o ar,
Hálito, fluido, emanação divina,
Assim domina a Terra, o Céu e o Mar;

Carne de fogo, e fogo de neblina,
Olhos só de relâmpago e clarão
E olhar que mais comove, que ilumina;...

Pé, que de mal pisar é furacão,
Braço, como o de Júpiter tonante,
ígneo feixe de raios traz na mão;

Voz, de que ouvimos só o eco distante,
E apesar disso todo o Mundo abala
Num trovejar contínuo e retumbante;

E olhai a flor que o seu cabelo engala —
Rosa dos Ventos, rosa de delírio,
Que um perfume de espanto e Dor exala,

Rosa de assolação e de Martírio
Cujas pétalas são de tal altura,
Que abraçam e penetram todo o Empíreo!...

Oh! que sublime e trágica figura,
Que faz horror, sendo a divina Graça,
E espalha a treva, quando mais fulgura!

Ai! que horrível deserto onde ela passa,
Onde só paira agora o fumo denso
Da Morte, da Miséria e da Desgraça!...

É que onde toca o seu bailado imenso,
Tudo ela arranca e de seguida arrasta,
Em seu aéreo turbilhão, suspenso;...

Nem mil cidades que o tufão devasta,
Nem Mar e Terra, súbito varrida...
Incêndios, Morte, horror... nada lhe basta;

Acossa, estuga a lívida corrida,
Até que a rocha tenaz se faz em pó,
E o pó corcel de fogo a toda a brida.

E a cada volta da terrível mó,
A cada rego do medonho arado,
A cada novo espanto e novo dó;

A cada novo círculo enroscado,
Que os olhos quase arranca de fita-lo
E empolga o pensamento arrebatado;

A cada novo embate e novo abalo
Daquela formidável catapulta,
Que o mesmo sangue gela de escutá-lo,

Mais o delírio do bailado avulta,
Mais a espiral se alarga e rodopia
E mais o alegre deus bailando exulta.

E, no auge da frenética alegria,
Ébrio de Graça e de sublime Encanto,
Em si mesmo se afunda e se extasia,
Até que entoa este divino canto:

“Cósmico e primitivo Turbilhão,
Sou quem fecunda o Caos, dando origem
A toda a Criação.”

“Mundos, formas e vidas se dirigem
A meu seio, palpando a escuridade,
Cegos pela vertigem.”

“E Nebulosa, Gênio ou Tempestade,
Minha espiral fecundadora ondeia
E enrosca a Imensidade;”

“Voa, delira, zune, arde e volteia
E átomos, mundos, almas, leis supremas
Meu atrito incendeia,”

“Para depois nas contorções extremas
Lançar ao seio livre do Universo
Os Astros e os Poemas.”

“O Universo é um grande Mar disperso,
Cheio de redemoinhos menos fundos
Em meu vórtice imerso;”

“Abismos, Céus e pélagos profundos,
Onde o meu torvelinho vai gerando
O equilíbrio dos Mundos.”

“Tudo quanto ao redor vou devastando,
Mais em meu seio lúcido concentro
E vou purificando;”

“Exalto, elevo, arrasto para dentro
Até que a Alma universal consiga,
Pois trago Deus no centro.”

“Cósmica força, hereditária, antiga,
Eu sou aquele forte e eterno laço,
Que a Deus o Mundo liga!”

“Vinde a mim, vinde a mim por todo o Espaço
E atirai-vos de todo o coração
Ao meu fecundo abraço!”

“A mim, ao Fogo, à Vida, ao Turbilhão!
Só morre quem tem medo à própria Vida;
Nunca o que expira a arder de exaltação
E esperança desmedida.”


CANTO VII
A MORTE DA ÁGUIA

Mal a Águia divina ouviu o canto,
Que unia a Morte à Vida e que do Empíreo
Nos infinitos vales reboava,
Ergueram-se-lhe as asas por encanto,
Porque a espiral de fogo e de delírio
Para o seio da Luz a arrebatava.

Sentiu correr-lhe o sangue de roldão,
Como se cada artéria fosse o leito
Dum rio caudaloso;
E o largo, intumescido coração
Batia-lhe de encontro ao forte peito,
Como na costa dura o Mar iroso.

Bateu as asas como um largo açoite
A fustigar ainda a Tempestade
Para que o Turbilhão fosse mais forte;
E ao afundar-se nessa imensa Noite
Sentiu, último dom da divindade,
A alegria da Morte.

Alegria da Morte! A derradeira
Dos que numa agonia dolorida
Fitam os olhos num país sidéreo,
A última alegria e a primeira
Dos que ao despedaçar a própria Vida
Despedaçam as portas do Mistério.

Alegria da Morte! a mais ardente
De todos quantos buscam a Verdade,
De todos os que morrem por amar:
Dos que olham o Destino tão de frente,
Que pondo a vida toda na vontade,
Obrigam-no a parar!

Alegria do Sol em pleno ocaso,
Que ao cair para o Mar,
Ao esconder-se na serra,

Sabe que dentro de bem curto prazo
De novo há de raiar
E aquecer toda a Terra!

Outro Mazeppa no corcel em fuga,
Buscando a glória na miséria extrema
Numa carreira alada e desabrida,
Que a noite, as feras e o pavor estuga,
Pois não há sombra que o corcel não tema,
Nem faça correr mais a toda a brida,

Assim a Águia voa arrebatada,
Assim devora abismos de repente
E como sombra lívida perpassa,
Até que no mais alto da abalada
Um raio fulge, abrindo um sulco ardente
E em pleno Turbilhão a despedaça.

O coração da Águia foi queimado,
Fez-se um clarão da mais divina esperança,
Que espalhando-se em toda a imensidade
Foi abraçar o Céu de lado a lado
Num arco-íris, o arco da Aliança,
Que alumia depois da Tempestade.

Os Lázaros do sonho irrealizado,
Os que morrem à míngua de ventura
E nunca ouviram cantos de vitória,
Acordam vendo o Céu iluminado,
Sentem abrir-se a antiga sepultura
E surgem de repente em plena glória.

Aleluia! Aleluia! grita o Mundo
E logo a Terra atira das entranhas
Tesouros mil sepultos;
Enquanto do profundo,
Do recôndito seio das montanhas
Correm à luz os mananciais ocultos.

Das esquecidas mas leais sementes
No regaço amantíssimo dos montes
Uma Floresta triunfal se eleva;

Há flores mais rescendentes,
Nascem mais vivas e abundantes fontes
E os astros incendeiam mais a Treva!

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